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#36O MasculinoArteArtes Visuais

A Esfera Imaginal de Alex Červený

por Rodrigo Petronio

Desde a Antiguidade, artistas e preceptistas se preocupam com duas formas de imitação: a icástica (física) e a fantástica (metafísica). Como alternativa à hegemonia da pintura icástica greco-latina, o historiador de arte Jurgis Baltrušaitis (1903-1988) identificou na arte medieval um dos pontos culminantes do fantástico. Não as catedrais, a retidão românica, as ogivas e os vitrais. Mas as iluminuras, as gárgulas, os livros de horas, a planimetria, as anamorfoses, os bestiários, as tanatologias, o mundo às avessas, a carnavalização. 

Baseada em premissas metafísicas, a fantasia atravessa ordens distintas de realidade, enaltece a analogia, gira a grande cadeia dos seres e joga com o cosmos, em um louvor às metamorfoses. Não se preocupa em representar a natureza. Preocupa-se em representar o continuum da natureza. Os animais e os minerais, os vegetais e os humanos, os seres animados e os inanimados, o objetivo e o subjetivo: todas as substâncias participam umas das outras e se interpenetram neste drama divino. 

A partir dos séculos XVI e XVII, com a ascensão da perspectiva, do ponto cêntrico albertiano e daquilo que Marcel Duchamp definiu como arte retiniana, começa um novo ciclo hegemônico do icástico. O fantástico, denegado, migra para os tratados de alquimia e de magia, os livros de rebus e a hieroglifilia, as empresas e os emblemas, as teofanias heterodoxas, os labirintos de conceitos, os enigmas e os tratados de hermetismo, os gabinetes de curiosidades, as ilustrações naturalistas de uma fauna e de uma flora inexistentes, os relatos dos viajantes.

Nessa mesma época ocorrem dois fatos decisivos: a emergência do racionalismo e a conquista da América. Por isso, alguns autores identificam aqui um paradoxo fundamental. Enquanto a Europa coroa a cisão cartesiana entre sujeito e objeto, alicerce do projeto expansionista, a América se dedica a um movimento de contracolonização. Para tanto, reorganiza os signos flutuantes da fantasia e expande as fronteiras do imaginário, em poderosas operações de anacronismo deliberado (Didi-Huberman). 

Na esteira da grande arte dos séculos XX e XXI, brasileira e mundial, a obra de Alex Červený se baseia nestes dois movimentos complementares: navega na contracorrente dessa fratura entre sujeito e objeto e desbrava territórios imaginários livres, potencializados pela herança americana e pelo atavismo de uma fantasia robusta. 

Em Todos os Lugares, temos uma curadoria preciosa tanto da variedade formal quanto da riqueza imaginativa de seu universo. A exposição da Casa Triângulo abrange aspectos e fases da obra como um todo. O livro homônimo, publicado pela editora Circuito, concentra-se nas imagens e nas descrições de cidades ao redor do mundo visitadas pelo artista, intenso viajante. São visões complementares sobre o universo visual de Červený. Ambas abordam a multiplicidade de camadas e os caminhos apresentados por esta obra singular e multifacetada. 

Os lugares de Červený são entrelugares: espaços de intersecção. O grande campo vivo desses lugares-imagens relacionais é o corpo. Entendido como entidade fantástica, o corpo é orgânico, mas não biológico. É uma esfera animista de animação. O ponto privilegiado onde os seres da physis se reúnem e se dispersam, em movimentos de expansão e contração: o editus e o reditus de que falam os místicos. 

Ao enfatizar a figuração e a planimetria metafísica, desprezadas por muitos modernos, a obra de Červený ganha duplamente. Primeiro porque se vê livre para transgredir os pressupostos da ilusão realista e tridimensional. Segundo porque passa a atuar, de saída, em um espaço sem fronteiras, sem bordas e sem limites. Habita a identidade absoluta entre real e imaginário. A partir do místico sufi medieval Ibn ‘Arabī, podemos chamar essa esfera de mundo imaginal (mundus imaginalis). 

A variedade de técnicas, suportes e materiais da obra de Červený é admirável e singular na arte contemporânea. Parte da colagem, da assemblage, dos palimpsestos, das esculturas e das intervenções, passa pelos diversos tipos de gravura, incluindo clichê em vidro (cliché verre), técnica francesa rara do século XIX, e chega à pintura, à aquarela, à ilustração (Darwin, Boccaccio, Collodi) e ao desenho propriamente dito. 

Nesse sentido, o desenho pode ser visto como fio condutor do pensamento-imagem de Červený, não por acaso um exímio desenhista. Não o desenho entendido apenas como técnica, mas a linha explorada como conceito. Diferente do senso comum, a linearidade não é uma cesura, um corte, uma contenção. A linha é o prolongamento do olhar em direção ao indeterminado e ao inextenso. Em uma palavra: em direção ao infinito. 

Essa zona de indiscernibilidade linear se encontra no âmago desta obra. E se manifesta em uma de suas principais matrizes formais: a relação imagem-letra. Se as palavras e as coisas, os signos e seus referentes, a linguagem e o mundo nunca se romperam pela fratura aberta entre sujeito e objeto, um fino fio de ouro de Homero (aurea catena Homeri) conecta letra e natureza, texto e mundo, significantes e imagens, imagens e escrita. 

Por isso, corpos se fundem a letras. Letras emolduram o sexo. O umbigo aflora em um R. Um H divide o corpo de um humano. Um pênis é englobado em pleno gozo por um Q. Como queria Derrida, a escrita é anterior à fala porque a letra (gramma) é linguagem. Mas a escritura também é grama: as folhas simples da relva em que pisamos. A natureza é um livro anônimo. O mundo, uma assinatura infinita das coisas. 

Esta cosmologia singular de Červený transborda as demarcações constitutivas do texto e da textura, do grâmico e do gráfico, da granulação e da frase, da semântica e da cor. Por isso sua obra consegue operar modulações entre elementos aparentemente tão distantes quanto versos dos Lusíadas de Camões, duas gravuras de Cornelius de Bruyn (c. 1715), Aleppo e Jafa, um panfleto da revolução cultural chinesa e referências a telenovelas, a canções populares, ao cinema, à cultura pop e sobretudo aos signos circenses, um dos esteios e das principais inspirações desta arte do imaginal em estado puro. 

Jung definiu a alquimia como a linguagem do inconsciente. Červený define o inconsciente como a linguagem da arte. Por extensão, arte, inconsciente e alquimia têm em comum o fato de serem operações anímicas de pura transferência. Tudo nesses regimes é derivado, deslocado, flutuante. Não há sentido próprio. Há apenas significantes apropriados. A revelação profana da alquimia visual de Červený consiste nisso: uma misteriosa transmutação dos seres, entre a natureza e a linguagem, entre a letra e a figura, do nigredo ao albedo, rumo a uma improvável transfiguração.

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