Saio de casa para caminhar. O frio corta meu rosto e arde meus olhos, mas o sol brilha sobre a neve caída ao chão, criando cristais incandescentes, como que vistos através de um caleidoscópio. Logo me deparo com o primeiro deles, um homem solitário, caminhando lentamente, sua respiração gerando pequenas nuvens de vapor no ar. Alguns passos adiante avisto mais dois, estes andando a passos largos e rindo de alguma piada compartilhada. Continuo em frente, contornando a margem do mar Báltico, admirando a beleza resplendente da cidade que se revela pouco a pouco à medida que o sol esvaece os últimos resquícios da névoa matutina. Ali em frente à sede da prefeitura, um dos recantos mais bonitos da cidade, estão agrupados mais três homens. Parados, em silêncio, admiram a vista. E, quem sabe, aproveitam também um momento precioso de silêncio vindo dos carrinhos de bebê na sua frente.
Não é nada incomum encontrar homens – sozinhos, em duplas ou pequenos grupos – empurrando carrinhos de bebê pelas ruas de Estocolmo. São os chamados “lattepappas”, os “papais com cafés”, e são unidos por uma obsessão nacional: a igualdade de gênero.
Em 2020, o Índice Global de Desigualdade de Gênero elaborado pelo Fórum Econômico Mundial colocou a Suécia em quarto lugar no ranking mundial, com 0,820 pontos e atrás apenas da Islândia, Noruega e Finlândia. O índice varia de 0 (total desigualdade) a 1 (total igualdade). O Brasil, para ter-se ideia, está na 92˚ posição, com 0,69 pontos, atrás de países como a Bósnia-Herzegovina, Burundi e o Cazaquistão. Na América do Sul, o Brasil fica apenas à frente do Paraguai (o índice não apresenta dados para a Guiana). Não podemos esquecer que o índice mede apenas a desigualdade entre os gêneros, sem levar em consideração o desenvolvimento do país, e que isso gera uma certa distorção no ranking – não há dúvida de que a Suécia está longos passos à frente do Brasil, e de grande parte do mundo, neste quesito. Mas por quê?
Existe uma preocupação nacional com essa desigualdade, e há décadas o Estado elabora políticas especificamente para combatê-la. Essas políticas vão mudando e sendo ajustadas à medida que a percepção de igualdade e de gêneros muda. Um bom exemplo disso é licença-maternidade/paternidade, lei que deu origem aos lattepappas que perambulam pelas cidades com seus filhos. Hoje, na Suécia, o casal (seja heterossexual ou homossexual, casados ou apenas morando juntos) tem direito a 480 dias de licença remunerada quando tem um filho, seja este biológico ou adotado. O nome já diz muito – a lei é conhecida como föräldrarledighet, uma composição de föräldrar, ou pais (palavra neutra e sem gênero, ao contrário do gênero masculino do termo em português) e ledighet, licença. A licença pertence a ambas as partes, e deve ser compartilhada por ambas as partes, mas custou algumas décadas e algumas mudanças na legislação para chegar aqui.
Em 1974, a Suécia se tornou o primeiro país a oferecer a licença-paternidade remunerada aos pais. Eles teriam direito a seis meses de licença-paternidade juntos, receberiam remuneração do Estado em até 90% do valor de seus salários e teriam o direito de decidir como dividir estes seis meses entre eles. Em 1978, a lei aumentou o tempo para 9 meses de licença e, em 1980, para 12 meses (9 com 90% da remuneração e 3 com uma remuneração baseada no salário mínimo). Em 1989, a lei novamente mudou, aumentando o tempo de licença para 12 meses com 90% de remuneração salarial e mais 3 meses de remuneração base. Metade destes 15 meses era reservada para cada parte, ou seja, 7,5 meses para um parceiro e 7,5 para outro. Nos anos 1990, o valor da remuneração baixou para 80% do salário, com um teto após o qual o empregador deveria completar a remuneração feita pelo Estado. O objetivo dessas mudanças foi dar aos pais a oportunidade de ficar mais tempo em casa com seus filhos e, também, diminuir a desigualdade entre homens e mulheres. O Estado pretende que a opção de ter um filho por parte da mulher não prejudique sua vida profissional e que as mulheres possam ter seus empregos e suas carreiras garantidos assim como os homens.
Nas primeiras décadas da lei, as mulheres ainda usavam a maior parte da licença. Seus parceiros optavam por transferir sua metade para que as mães ficassem em casa. A ideia da licença-paternidade entrava na consciência social, mas, na prática, os homens continuavam voltando ao trabalho muito antes das mulheres. O Estado decidiu intervir mais uma vez, mudando a lei para que cada parceiro tenha um período de 90 dias reservados de licença, formando um total de 180 dos 480 dias. Os 300 dias restantes da licença ainda podem ser divididos conforme o casal preferir. Se o pai não usar seus 90 dias, estes serão perdidos; não poderão mais ser transferidos para a mãe ou o outro parceiro. No primeiro ano de vida da criança, os pais podem tirar a licença juntos por um período de apenas 30 dias. Todo o resto deve ser separado. Essa mudança na lei acabou gerando uma mudança de comportamento. Em 1974, a licença-maternidade era 100% utilizada por mulheres. Em 2020, os homens utilizam 27% da licença. Em torno de 80% das crianças na Suécia hoje têm dois pais que trabalham.
Em janeiro de 2018, o Estado sueco criou a Agência de Igualdade de Gêneros para implementar políticas concretas a fim de minimizar a diferença entre os gêneros. Eles definem a igualdade de gêneros como: “homens e mulheres terem os mesmos direitos, responsabilidades e oportunidades em todos os âmbitos da vida” e acreditam que, para obtermos a igualdade de gêneros, não basta termos números iguais de mulheres e homens em cada área da sociedade; precisamos mudar as atitudes, normas, valores e ideais que governam a sociedade.
O que mais me interessa é que sempre acreditei que as leis de um país refletem os valores de sua sociedade. Jamais tinha pensado que, na verdade, as leis também têm o poder de mudar o pensamento da população. Somos todos produtos das nossas sociedades, das nossas famílias, oportunidades, condições socioeconômicas, cultura, religião, etc. Minha experiência na Suécia comprovou isso de forma aguda. Sou brasileira, católica, tradicional, de uma família do Sul do país. Estou beirando os 40 anos de idade. Sou de um lugar e de uma geração bastante patriarcal, de uma família bastante machista. Sou caçula e, embora minha mãe tenha trabalhado durante anos após ser mãe da minha irmã e do meu irmão, na minha memória ela já era uma dona de casa dedicada – arrumando, orientando, cozinhando, comprando coisas para a casa, escolhendo a decoração. Enquanto isso, meu pai trabalhava longas horas em um escritório que exalava masculinidade – sofás de couro, cheiro de charuto, retratos de grandes obras e miniaturas de escavadeiras; um mundo do masculino que me parecia misterioso e distante. Preferia ajudar minha mãe a montar uma mesa perfeita, convidativa, agregadora e demonstrar amor pela família através de grandes almoços no domingo.
Meu marido sueco tirou quatro meses de licença-paternidade quando nossa filha nasceu aqui em Estocolmo em 2018. Foram quatro meses essenciais. Tive um parto complicadíssimo, uma cesárea de emergência que me deixou com dores insuportáveis por meses. Longe da minha família, sem o apoio de empregados domésticos ou babás, fiquei em casa tentando sobreviver ao furacão da maternidade e da vida doméstica. E, por mais que meu marido tentasse limpar, cozinhar, lavar roupa, passar, ir ao supermercado e à farmácia, cuidar do nosso cachorro, servir refeições e outras tarefas de Sísifo, eu o criticava porque ele não fazia nada daquilo ao meu gosto, ao meu patamar. Minhas noções de limpeza eram outras, mais brasileiras que suecas; minhas refeições mais equilibradas, bem servidas; as roupas passadas além de limpas. A casa deveria estar impecável e, com a neném em casa e eu de cama, ela estava de pernas para o ar. Isso me deixou enfurecida. Como ousava aquele homem entrar no meu campinho e deixar de chegar ao meu nível de exigência. Eu sabia melhor, eu fazia melhor, e o lugar dele era fora de casa.
E aí está parte do problema. Meu marido é muito menos machista do que eu e, para ele, também foi difícil entender essa minha obsessão com a casa. Não importa, ele dizia, que está uma bagunça. O importante é que estamos juntos, curtindo nossa filha. Mas eu não conseguia curtir nada com o peso do fracasso da minha “profissão” – a de ser mãe e dona de casa. Essa divisão de gêneros que existe na minha cabeça, onde enxergo as metades em branco e preto, onde a casa e os filhos são meus e o escritório é dele, é produto de como fui criada e fruto da minha personalidade. Essas ideações enraizadas custam a ser mudadas, mas, após alguns anos de Suécia, estou aos poucos me amainando. Já não julgo os pais que vêm à escolinha da minha filha deixar sua prole descabelada e melequenta. Ou não muito. Afinal, estão fazendo o seu melhor para criar uma sociedade onde as mulheres possam ter a oportunidade de ter ambos, família e carreira – coisa que não conseguiremos sem o apoio e sacrifício dos homens e, crucialmente, sem o apoio e o julgamento de outras mulheres. E nisso o Estado sueco está realmente à frente da maioria.