#36O MasculinoArteCulturaLiteraturaMúsica

Narciso ao espelho: a masculinidade em Luís Capucho

por Rafael Julião

Fotos: Ana Rovati

1.

O primeiro registro das canções de Luís Capucho, embora só lançado em disco em 2003, aconteceu em um show no Rio de Janeiro em 1995. O álbum, chamado Antigo, apresenta uma das primeiras descrições explícitas do masculino em sua obra. A canção “Amor é sacanagem” afirma:

Felinos têm o desenho do rosto mais belo
Que o desenho do rosto dos homens
Quanto ao resto do corpo, homens são mais concentrados
Quando olho o corpo e o rosto de um gato sei ver
Mas quando olho você
Com seu corpo concentrado
Assim desse modo fico louco, eu sou louco, sou vulgar
Sou vulgar no amor
O amor é sacanagem
Não tem poesia, nem matemática, o amor é magia

A “magia” da transfiguração é elemento fundamental do processo de criação de Luís Capucho. Movido por uma espécie de pulsão do olhar, o compositor tudo transforma por meio dos sentidos, dando relevo à potencial estranheza de todas as coisas. A canção começa com a imagem dos felinos, tão marcados por sua inteligência arisca, sua precisão de movimentos, sua sensualidade espontânea. Ainda que estes tenham o desenho do rosto mais belo, os homens são descritos como “mais concentrados”, em uma caracterização estranha tanto em si como na comparação. 

Vejam que, de um lado, o corpo masculino aparece carregado de densidade física e simbólica e, de outro, revela-se o caráter central que a visão da masculinidade ocupa no olhar desejante dessa voz que canta. Declaradamente despido da idealização poética ou da lógica matemática, é por meio dos sentidos aguçados – concentrados – que o real se transfigura. Ou seja, é justamente na vulgaridade (desdobrada entre suas dimensões de banalidade e erotismo) que a magia se realiza.  

2.

Além das canções, Luís Capucho também ficou conhecido por seus romances, dentre os quais destaco o Cinema Orly,de 1999. O livro é uma narrativa de evidente caráter autobiográfico, na qual acompanhamos as incursões do narrador-personagem nos cinemas pornográficos do centro do Rio de Janeiro, especialmente o que dá título à obra. Assim, somos apresentados ao espaço e seus frequentadores e assistimos à saga do protagonista em busca de prazer, mas também de um namorado. 

A descrição do ambiente comenta os filmes pornográficos que se passam na tela, mas está concentrada no que acontece na contratela, entre as poltronas do cinema. Assim, o sexo eminentemente heterossexual da pornografia (onde homens másculos performam uma sexualidade viril) refrata-se na plateia sob a forma de experiência homoerótica. Nesse jogo de espelhos, evidencia-se o culto narcísico e falocêntrico da masculinidade, que está na medula deste livro e também é tema de destaque nas canções de Luís Capucho.

Já no primeiro parágrafo do texto, o narrador registra seu deslumbre em “ver na tela homens jovens nus com paus grandes, pernas abertas, muito grandes e gostosas, e sacos onde se pressente a umidade e o odor, deixando o nosso peito incandescido e a respiração inflamada”. Em outro momento, afirma: “Antes de beijar um homem, achava que vê-lo nu, aberto, os pelos amaciando a atmosfera, saco e pau escancarados junto ao tufo de pentelhos era encontrar Deus”.

O cinema e o sexo, na tela e na contratela, exibem-se como espetáculo de imagens, cheiros e sensações, que são captados tanto em sua beleza erótica como em sua atmosfera grotesca de suor, penumbra e fumaça, formando um conjunto obsceno em que o horror e a maravilha conjugam-se em vez de se oporem.

3.

O jogo de espelhos entre o que se passa dentro e fora da tela não é o único que se desenvolve no livro de Capucho. Nesse sentido, é fundamental pensar na centralidade do tema da masculinidade para a compreensão de sua obra. Em dado momento de Cinema Orly, afirma-se:

A masculinidade, representada por um caralho, era tudo que eu queria possuir, que eu invejava, que achava bonito, como se eu fosse uma mulher, como se eu fosse uma criança, um anjo, um bicho, uma ave e do que mais gostava era ir ao cinema Orly e, sendo tudo isso, ver minha imagem refletida em sua lagoa, como na história de Narciso, ou de Eros e Psiquê de Fernando Pessoa.

Nessa passagem, ficam evidentes os componentes narcísicos e falocêntricos da representação da masculinidade em Luís Capucho. A centralidade do falo é uma forma de atingir a transfiguração do ser e das coisas, fazendo desse sujeito mulher, criança, bicho, ave e, na projeção almejada, homem, masculino. Não por acaso as citações de Narciso (cujo lago se sobrepõe ao próprio Cinema Orly) ou de “Eros e Psiquê” de Fernando Pessoa, em que um príncipe que sonhava com a princesa descobre, ao final, que “ele mesmo era a princesa que dormia”. O texto de Capucho vai representando, assim, a fruição livre do prazer que conduz o sujeito à sua emancipação, à sua essência.

Já nas páginas finais do livro, o narrador nos conta que, quando criança, observava um rapaz lindo de vinte anos, sobre o qual diz: “Para mim esse rapaz era o símbolo da virilidade adulta e sonhava ansioso que eu completasse vinte anos para, enfim, estar possuído da graça de ser um homem”. E conclui:

Pois o Orly trouxe-me, antes do tempo pensado, essa masculinidade adulta tão esperada, embora não passasse de uma bicha. […] No Orly, não era uma bicha feminina nem masculina. Para mim, esse nada que eu era, a ausência de formação de imagens sensuais no meu espírito era a masculinidade, contribuía para ela meu corpo, minhas roupas, meus pelos, minha voz. 

O gênero romance, como nos ensina Lukács, é uma narrativa em que o protagonista atravessa uma jornada em busca de conquistar sua essência. O fragmento acima, posto na parte final do livro, deixa claro que essa masculinidade, definida de modo particular, como um processo a um só tempo interior e exterior, é o ponto de chegada dessa aventura, ainda que as reiteradas incursões no cinema pudessem nos levar a crer, equivocadamente, que o sexo homossexual ou a conquista do namorado eram os objetivos últimos da empreitada.   

O livro Cinema Orly é, desse modo, uma representação da homossexualidade masculina mas, sobretudo, da masculinidade homossexual, impulsionada também por um processo de identificação narcísica. Assim, o objeto desejado é também espelho, onde se encaram o desejo de ter e de ser. 

4.

O livro Cinema Orly tem uma obra-irmã que liga o Luís Capucho escritor ao compositor de modo mais explícito. Trata-se do disco Cinema Íris de 2012, em referência a outro célebre cinema pornográfico do centro da cidade. A canção-título fala na “moça que faz striptease no cinema íris (…) enquanto homens masturbam-se na neblina do cinema”. Em dado momento, esses homens aparecem assim descritos:

Homens muito gordos, com barrigas enormes
Homens maravilhosamente magros e altos
Muitos masculinos
Muitos femininos
Jovens com carisma, com charme
Com pernas muito gostosas abertas
Aqueles tinham caras de veados
Homens com caras cabeludos
Homens com caras de bigode
Homens com caras travestidos
Homens com caras de hospício
Homens com caras de mal

A repetição de “homens” aponta para uma multiplicidade adjetiva girando em torno de uma mesma força substantiva. Apesar de opor, em dado momento, os homens “masculinos” aos “femininos” (o que nos dá a dimensão do quanto essa distinção é facilmente compreendida e naturalizada), a canção se empenha no caráter concentrado dos “homens” e na atração que exercem sobre o sujeito. 

Descrição muito semelhante aparece em Cinema Orly, reforçando o parentesco entre as duas obras e as duas formas de expressão de Capucho:

Havia homens muito velhos, mancos, com uma das pernas decepadas, muito gordos com barrigas enormes, homens maravilhosamente altos e magros. Muitos masculinos, muitos femininos, jovem com carisma, com charme, com cara de hospício, homens de bigode, de barba, imberbes, antipáticos, nojentos com cara de idiotas, louros, morenos, negros, mulatos, cabeludos, carecas, homens banguelas, fedidos, com nariz grande, homens robustos, mignons etc.

5.

Voltando ao disco Antigo, a canção “Mamãe me adora” faz um curioso jogo edipiano de espalhamentos, em que mais uma vez se exercita o caleidoscópio descritivo de homens. A letra começa com “Mamãe me adora/ profundamente ela me quer/ mais do que quis outros homens que ela também amava/ que ela também devorava”, e se desenvolve na constatação: “eu também sou feliz com homens/ como os que amou mamãe”, para chegar a uma lista extensa de contemplação do masculino: “homens que são cheios de tensão/ como diabos”, “homens que são como aparição/ como nossa senhora”, “homens que são belos e bons, sentados, homens em pé, fortes, feios, gordos, galantes, machos, motoristas, rudes, ruins… delicados, generosos, gentis, bravos, brutos, crespos, lisos, presos, soltos, suaves, sofisticados, simples, soldados, ciganos, pedreiros, patrões”.

Em um arco entre o diabo e a santa, o olhar sobre o masculino se multiplica novamente entre diversos adjetivos, todos unificados e conjugados em uma dimensão essencial – o masculino. 

6.

Outras duas canções de Luís Capucho ajudam a pensar o masculino em sua obra, ambas unidas pelo signo da flor. 

A primeira delas, “São flores”, afirma: “os rapazes são deuses pra mim/ que tudo são flores/ os caralhos são flores pra mim/ são deuses com flores/ são flores pra mim”. Novamente, observamos o culto falocêntrico que atravessa Cinema Orly , reverberando a citação em que o “caralho” aparece como representação da masculinidade. Outra vez, também, a masculinidade aparece complexificada pela aproximação com uma atmosfera lírica e sagrada, conduzindo à beleza e à contemplação. É notável, no fragmento, o apelo à imagética clássica, que conjuga a natureza e o divino, interseccionada pelos corpos expostos e bem-feitos dos deuses entre flores.

Isso nos leva à canção “Homens flores”, parceria com Marco Sacramento, em que se afirma:

Os mundos são mais belos
Quando olhados pela janela
E as colinas estão repletas de homens fortes
E eu olho pra elas porque elas são o mundo inteiro
E eu olho pra eles porque eles são o mundo inteiro
E eu olho pra elas porque elas são meu terreno
E eu olho pra eles porque eles são meu terreno
Onde eu vou plantar
Onde eu vou plantar
Flores homens
Homens flores

A imagem, posta em tela pelo quadro da janela, apresenta colinas repletas de homens fortes, em mais uma pintura verbal de natureza classicista. A arquitetura da composição é igualmente equilibrada, em frases límpidas e inversões de referentes que provocam todo um efeito. O sujeito olha para elas, as colinas, e para eles, os homens, conjugados como síntese do mundo inteiro e como “terreno” onde se podem plantar “flores homens”, “homens flores”. 

Aqui, feita a aglutinação entre homem e natureza, os termos “flores” e “homens” são explorados em suas dimensões substantivas e adjetivas, reivindicando o paradoxo do masculino – símbolo de virilidade e beleza, força e delicadeza, estranheza e alumbramento. A masculinidade, posta assim ao espelho (flores homens/ homens flores), funciona como objetividade e transfiguração, visão exterior e revelação interior, unidade e multiplicidade.   

A propósito, narciso é nome de uma flor.