Na narrativa mítica, na orientação espiritual e cotidiana do Tronco Pankararu, há uma visão de uma figura feminina vista como mãe do criador e da criação, a mãe natureza, que compreende e protege os espaços onde há vidas. Todos os seres vivos humanos e não humanos, também as pedras, as águas e espíritos sagrados femininos e masculinos. O entendimento e conhecimentos deixados por nossos antepassados: os saberes tradicionais.
Introdução
Ao constituir essa composição, procuramos buscar elementos a partir de dois contextos. O primeiro momento foi mergulhar no interior das aldeias e, assim, encontrar essências que fazem essa trajetória entre o passado e o presente. O segundo momento foi tecer um olhar acerca do que está conjugado sobre questões indígenas atualmente. O objetivo foi encontrar, a partir dessas reflexões, a importância da presença das mulheres nesses lugares.
A princípio, nosso lugar de fala é o território sagrado do Povo Pankararu. Nesse sentido, podemos dizer que vivemos em uma sociedade matriarcal também, dada a presença de grandes lideranças femininas que atuam nos mais diversos campos, seja na tradição ou em questões de políticas públicas.
Dessa forma, voltando a meio século atrás, ou um século, o convívio na aldeia teve, em diferentes momentos e espaços, várias mulheres que hoje seriam chamadas de lideranças, mas que naquele contexto eram mulheres de notoriedade, portanto figuras emblemáticas, que conduziam as demais pessoas no sentido de orientá-las individualmente e atuavam à frente de atividades coletivas.
O Povo Pankararu tem um histórico de lideranças femininas de bastante destaque em todos os campos. Desde a atuação com os saberes tradicionais e a organização social, de cunho interno, até outros campos diversos e políticos, como a participação em estâncias municipais, estaduais e nacionais, bem como a atuação no movimento indígena no que diz respeito a questões como educação, saúde e outras demandas que acontecem em espaços externos.
As mulheres da Tradição
Conforme os ensinamentos dos mais velhos e mais velhas, que são passados de geração a geração, existem seres sagrados em forma de mulheres, com hábitos de mulheres. Portanto, somos seres divinos na nossa representação e, no mundo dos mistérios espirituais, a essência feminina se faz presente em um mesmo patamar que os seres sagrados masculinos.
Muitas são as mulheres Pankararu que possuem a qualidade de guardiãs e detentoras de saberes tradicionais, que recebem ensinamentos da Mãe Natureza que chamamos de “dom”. São práticas que se traduzem através dos conhecimentos sobre a medicina tradicional em toda a sua diversidade e os procedimentos de cura. As mulheres também são capazes do conhecimento dos rituais e dos cantos de contato com os encantados, além de tantos outros procedimentos ligados a esses costumes.
Nossas mulheres conhecem e podem participar dos processos de cura, podem conduzir e zelar pelos objetos e rituais sagrados que simbolizam a crença, cozinhar a comida sagrada para os rituais e outras atividades. Devido aos saberes que essas mulheres detêm, elas são consideradas sábias, na mesma dimensão dos homens que detêm esses saberes e ocupam esses espaços considerados sagrados.
O encontro do tradicional com a contemporaneidade
Como os tempos vão passando e a história permanece, pensamos na contemporaneidade sob vários aspectos e vertentes, mas sem fugir da valorização e do fortalecimento da cultura Pankararu. As mulheres emblemáticas que, no passado, eram rezadeiras, curandeiras, parteiras, artesãs, chefes da tradição, chefes de família vão atravessando um caminho no tempo em que vão se encontrando com outras mulheres que são caciques, pajés, lideranças políticas, profissionais de saúde e de educação escolar, representantes de organizações de estudantes, de mulheres, associações, etc.
Nesse sentido, a contemporaneidade não tira o espaço do tradicional, mas se soma a este e se torna um conjunto de ações de fortalecimento, de luta por direitos, de valorização aos aspectos da cultura. Podemos encontrar diversas pessoas que protagonizam esse campo, ou esses campos tão diversos, mas que se encontram e se articulam.
Um dos tantos exemplos que trazemos aqui é que o Povo Pankararu é considerado um dos povos que atualmente têm o costume e a valorização do parto feito por parteiras do lugar, hoje chamadas de tradicionais. Esse fenômeno se deve ao fato de termos na história famosos nomes de parteiras, lembrados e seguidos como exemplo até os dias de hoje.
O que fez com que essa tradição continuasse, já que o nosso acesso a bens da modernidade aumentou? Pois então! Não estou falando apenas de mulheres que fazem partos em casa, mas, sobretudo, mulheres que trazem consigo uma boa parte dos saberes diversos citados acima. Por isso inspiram confiança; pela ligação de fé e a relação com o sagrado que possuímos.
O que vem à nossa memória agora é a influência e a participação ativa que algumas mulheres do povo tiveram nos movimentos e atividades coletivas com a institucionalização das políticas públicas para saúde e a educação escolar indígena, embora, em relação à questão da terra, ainda haja uma complexidade de luta maior. A importância dessas poucas mulheres presentes é que, gradativamente, esse quantitativo vai aumentando.
Para o movimento indígena, essa questão é a mais importante, no sentido de que “a luta pela terra é a mãe de todas as lutas”. Na história Pankararu, a luta pelo território não seria diferente. E a participação das mulheres sempre foi efetiva, desde a década de 1930. Por exemplo, na Constituinte de 1988, Quitéria Binga Pankararu, que lutou juntamente com outras lideranças pela regulamentação do território e foi vítima de ameaças, mas faleceu em sua cama. Sua história é um grande exemplo e legado de lutas e conquistas do povo. Ainda hoje nossas lideranças femininas estão ameaçadas, por isso estão sob proteção dos defensores dos direitos humanos.
A luta pela terra por parte das mulheres começa com o zelo pela terra como mãe de todos os seres humanos e não humanos, árvores, vegetais e minerais. A proteção da terra é o que garante nossa sustentabilidade física, cultural e espiritual. É um território sagrado, morada dos nossos ancestrais, local dos espaços e rituais sagrados. Nossas mulheres têm uma identidade com a terra, com a narrativa mítica, por isso sua participação é tão expressiva em todos os contextos sociais, em Pankararu e além do território Pankararu.
As aldeias são os pontos de partida que dimensionam a construção dessas personalidades; a relação de convivência com pessoas mais velhas e o envolvimento nos movimentos internos são estruturas que norteiam essa trajetória. Para além da vivência, se constitui indiretamente uma relação de aprendizado dos saberes passados através das pessoas sábias nos povos. Nesse sentido, é importante mencionar os diferentes espaços de representatividade em que diferentes mulheres atuam, buscando na história, a partir da memória de nossas interlocutoras até a atualidade.
Assim, traçamos uma caminhada aos espaços que essas mulheres ocupam e como suas atitudes marcam suas presenças, traduzindo, através de um contexto momentâneo, o histórico de diversas formas organizativas no estado de Pernambuco e além deste.
Apresentaremos aqui organizações de mulheres e outras instituições de caráter e mistos, que atendem homens e mulheres, e outros coletivos que se destinam a uma população que inclui índios e não-índios. Nesses espaços, as mulheres se destacam na defesa da presença indígena, na busca de seus direitos e no reconhecimento de suas diferenças. A especificidade dessas organizações é que estão ligadas a bases como as organizações de jovens e mulheres e as associações comunitárias, mas elas podem ultrapassar as fronteiras das aldeias e compor conselhos municipais, estaduais e nacionais de diferentes naturezas.
Educação escolar
Embora o protagonismo das líderes mulheres seja secular e inspire essa nova geração pós-anos 1990, há um marco temporal relativo a uma retomada das discussões sobre educação escolar indígena a partir do qual novas reflexões foram fortalecidas diante de alguns dilemas nos lares das professoras que representavam seus povos.
Falaremos sobre a questão de dualidade indígena para além das questões de gênero e sobre a importância das lideranças tradicionais, que se configuram em pajés, caciques e detentores/as de saberes tradicionais, também ligados à espiritualidade, que em certas ocasiões transportam seus papéis diretamente das aldeias para se unir a pessoas consideradas como lideranças políticas. Essa segunda categoria pode ter o perfil da primeira, mas possui uma identidade de entendimento mais técnico sobre os assuntos que se coloca a debater, e até está mais ligada à luta por questões institucionais, como educação escolar, saúde, enfim, contextos administrativos.
As lideranças femininas desse movimento foram constituídas no decorrer de uma luta por direitos relacionada às instituições escolares presentes nos territórios indígenas e aos elementos objetivos e subjetivos relacionados a elas. Nesse caso, ganha visibilidade esse papel de influências e, consequentemente, o fato de estarem em um espaço de poder devido à sua função social própria e às relações que a partir dali são tecidas.
Mesmo antes de 1999, já havia uma mobilização por parte das lideranças indígenas no sentido de refletir sobre “a escola que temos e a escola que queremos”, trazendo à tona a necessidade gritante de uma escola que fortalecesse e valorizasse a cultura daqueles grupos e, principalmente, existisse em prol de um projeto societário e de futuro. Essa mobilização foi intensificada em 1999 por força da legislação vigente, que, naquele contexto, contemplava os ideais do movimento indígena e indigenista e, sobretudo, as necessidades dos povos indígenas.
Ao fazermos menção ao protagonismo das mulheres, poderia se pensar que, naquele contexto, em Pernambuco, o número de mulheres professoras era maior. No caso dos povos indígenas, havia uma característica diferente nessas profissionais, que diz respeito ao perfil. Atender a esse perfil é exatamente ir além do espaço escolar, nas lutas coletivas dos seus povos. Trata-se da relação de convivência com os demais membros da comunidade no que tange ao projeto societário, uma educação escolar articulada com a vida nas aldeias.
No que se refere à educação escolar indígena e o protagonismo das mulheres, temos a estruturação da COPIPE como organização indígena de âmbito estadual. A Comissão de Professores/as Indígenas em Pernambuco (COPIPE), desde sua criação em 2000, é composta pela representação de duas professoras e uma liderança de cada um dos 11 povos que a compõem: Xukuru, Kapinawá, Tuxá, Pipipã, Kambiwá, Pankararu, Entre Serras Pankararu, Pankaiucá, Atikum, Pankará e Truká.
Essa participação mais efetiva de mulheres no campo da educação escolar indígena, em todos os povos e ao mesmo tempo, não se resume aos muros dos prédios escolares nem a ações meramente pedagógicas. Alcança uma dimensão social muito intensa e de caráter crescente, à medida que se interlaça a outras temáticas, a outros sujeitos internos e externos. Ou seja, perpassa o que comumente se trata da instância escolar nas demais sociedades não-indígenas.
Contextualizar a trajetória da educação escolar indígena nesses últimos vinte anos consiste também em observar suas formas de aplicabilidade nas aldeias e pelos mecanismos governamentais. Encontraremos entraves e conquistas, mas uma luta constante através das mulheres mencionadas aqui. A partir de suas reflexões sobre o papel da mulher indígena em seus territórios, elas abrem caminho para outras agentes de transformação e se tornam corresponsáveis pelo formato de organização de mulheres em Pernambuco.
No entanto, não podemos deixar de mencionar a célebre frase do movimento indígena em Pernambuco: “educação indígena se aprende mesmo é na comunidade, e a escola sistematiza esses saberes” – o que nos remete a uma conexão contemporânea entre os saberes da escola e os saberes do Povo.
Saúde
Para os povos indígenas, em suas maneiras de viver antes e depois do contato com o colonizador, houve e ainda há a convivência com seus próprios sistemas de saúde. Tratar da saúde indígena como sistema ou sistemas também é compreender que existe uma rede de elementos relacionados a um complexo envolvimento de saberes, desde o conhecimento das plantas nativas até a comunicação com os espíritos sagrados.
A partir dessa compreensão, vamos pontuar ações em que se destacam mulheres tanto nas práticas de saúde tradicional como na militância pelo direito aos serviços de saúde no âmbito das políticas públicas, bem como na execução e administração destas. Essas figuras femininas possuem conhecimento sobre a manipulação das ervas nas diversas formas de cura e rituais envolvendo outros elementos da natureza. A partir das práticas dessas pessoas em prol da saúde da comunidade, várias são as denominações a elas atribuídas: parteiras, pajés, curandeiras e benzedeiras, entre outras.
Para buscarmos nossas personalidades no âmbito da saúde indígena, que chamamos de medicina tradicional, se faz necessário compreender esta como uma rede saberes que existe há séculos, sendo, por isso, um sistema de saúde que perpassa gerações e gerações e sobrevive até os dias de hoje. Esse sistema de cura tem as mais variadas dimensões, compreendendo a cura das mazelas do corpo, da mente e da alma, o que, obviamente, tem a ver com a forma de vida desses povos.
Considerações
Ao observar e trazer experiências no Povo Pankararu sobre contemporaneidade e atuação de mulheres, podemos afirmar que há um feminismo indígena em curso, protagonizado por lideranças femininas que atuam em diversas áreas sociais e em conjunto com os homens nos blocos de direitos coletivos.
Nessa construção histórica, de ação participativa nas aldeias e de luta dentro do movimento social, barreiras vão se rompendo, e as mulheres vão ganhando acesso ao mundo que subjetivamente se propõe aos homens. Esse movimento de ação contínua nos faz compreender que mulheres indígenas não são apolíticas e que a ação dessas mulheres vem trazendo uma nova onda de feminismo.
A partir dos nossos acompanhamentos e observações, podemos definir feminismo indígena como um conjunto de ações das mulheres indígenas em prol dos direitos coletivos, que refletem, no presente, a trajetória de luta dessas mulheres fortalecidas nas suas espiritualidades, de forma que seus corpos estão para seus territórios como um corpo coletivo dotado de histórias, culturas e memória de seus antepassados. Além disso, na sua especificidade, comunga com a luta de outras mulheres contra violências de qualquer natureza.
Falar de feminismo indígena é falar do heroísmo dessas mulheres que, na condição de seres humanos, a partir do sofrimento e das angústias de seus povos, chamam para si a luta pela causa coletiva. Onde e em quem buscar compreen- são e colaboração para situações tão diferentes de nobreza e de conflitos? A busca na ancestralidade traz respostas para que a força da palavra convoque os homens a conjuntamente conduzirem essas jornadas. Mas também é preciso vencer o pensamento machista, que, infelizmente, ainda é uma mazela dentro dos povos e do movimento indígena.