#38O RostoArquiteturaArteDesign

Rostos, faces e semblantes que assustam

Os rostos são configurações que os humanos reconhecem desde o nascimento, da linda face da mãe ao semblante mais horrendo do mundo. Desde sempre, temos o Bem e o Mal representados, seja para o nosso conforto espiritual, seja para que não esqueçamos que há coisas ruins que atravessam nossa vivência. Nossos olhos veem as belas imagens gravadas em pedra da pré-história e aceitam as terríveis caras da Idade Média. Estudamos as pinturas rupestres, que nos parecem toscas, porém reconhecemos os humanos representados por “palitinhos” e os animais da natureza, além de concordarmos que são registros aceitáveis e agradáveis. Já o período medieval é inundado de figuras estranhas, além de serem fantásticas e não pertencentes à nossa realidade. Penso nos anjos dos afrescos da Catalunha, com muitos olhos nas asas; nas iluminuras do bestiário medieval, com toda espécie de monstros; ou nas esculturas que cobriam as catedrais góticas, causando arrepios na população dos fiéis. Mais uma vez, o Bem e o Mal nos encaram. Que rostos são esses que nos contemplam e desafiam?

Eles são inspirados tanto na própria figura humana quanto nos contornos dos animais, ou mesmo na imaginação. Se são bonitos, podem ser “amigos”; se feios, “cuidado!”, nosso instinto fala alto, segundo a semiótica, ciência que estuda os signos. Esta é uma conclusão básica no processo comunicacional: o mocinho-herói é um galã, e o bandido-anti-herói é o ator mais “feioso”.

Os fundamentos da Teoria da Gestalt justificam a busca da nossa percepção por um modelo já conhecido, neste caso: dois pontos com um traço vertical entre eles e outro horizontal embaixo, que figuram o rosto mais simples e neutro. Ou, quando pensamos na história da arte, talvez lembremos dos anjinhos do Renascimento ou das faces das moças de Renoir e Monet. Raramente traremos à memória as figuras retorcidas e imaginárias do Jardim das Delícias Terrenas, de Bosch, e por isso é tão importante conhecê-las. Quanto mais vemos, mais fixamos e identificamos imagens e expressões faciais, mais ampliamos nosso universo interior e mais armas temos para enfrentar nossos temores, desejos e aventuras na vida!

Por um outro ponto de vista, se pensarmos em Estética, veremos que a Beleza e a Feiura são categorias flexíveis de acordo com a cultura, a época e o lugar. De modo geral, devemos contextualizar esses conceitos de acordo com nossa herança greco-romana, misturada com os preceitos do catolicismo, o que nos legou o gosto do que consideramos bonito ou feio no Ocidente. Nossa ampla cultura neste lado do globo nos leva a atribuir determinados significados a algumas imagens, e a referência mais conhecida sobre a criação de entes grotescos e fantásticos é a do texto do Fisiólogo, que associava quarenta animais, pedras e árvores a um ensinamento moral. Dessa forma, voltamos à Idade Média na Europa, injustamente conhecida como Idade das Trevas, porque, ao contrário do que o termo induz, é uma época de grande produção cultural e artística. Ela é dividida em dois períodos artísticos: românico e gótico, caracterizados pelo forte domínio da Igreja Católica. Aqui, nos referimos às manifestações artísticas e religiosas mescladas às arquitetônicas, pois eram produzidas coletivamente pelos fiéis. 

Didaticamente, o estilo românico prevalece do século V ao IX no território europeu, num ambiente de disputas e guerras, manifestado em templos baixos e robustos (basílicas), com largas paredes de pedra revestidas com afrescos e mosaicos. As poucas aberturas e a única entrada principal garantiam proteção à população dos feudos nessas fortalezas. A imagem do Bem é representada pelo Jesus Pantocrator (pan = tudo e crator = poder, traduzido por Todo Poderoso) entronado. A imagem do Mal é demoníaca e medonha. As peregrinações e suas diversas rotas mapeiam a localização das construções. Se considerarmos a população analfabeta, percebemos por que as figuras têm uma comunicação direta, com cores vivas, contornos precisos e proporções esdrúxulas, muitas vezes respeitando o formato da parede ou da coluna, porém deixando sua ação de modo claro. O que é certo é passar a mensagem de Deus e deixar os fiéis não somente entretidos, como tementes às imagens e à palavra da Igreja. Vale dizer que, apesar do interior da arquitetura ser escuro, a solução dos artífices foi revesti-lo com mosaicos dourados, que refletiam as chamas das velas e deslumbravam os viventes. Vendo os pórticos e as naves desses monumentos, temos figuras, em sua maioria, na posição frontal, que nos fitam diretamente e, convenhamos, que “recado” forte! De um lado, o rosto de Jesus me diz, de forma doce porém firme, que se sacrificou pela humanidade; do outro, o semblante inabalável do santo vence o dragão depois do golpe no coração do monstro; e, no altar, a Nossa Senhora com sua face calma nos acolhe e conforta. Seja qual for a história dessas imagens, elas ficam impregnadas nas mentes dos fiéis – e sua força permanece até hoje, não é mesmo? É o irmão, o herói e a mãe que nos dão confiança e segurança para enfrentarmos qualquer agrura.

A divisão dos períodos medievais não ocorreu de forma abrupta, nem de forma igual, em todos os países do Velho Mundo. Os historiadores apenas os designam assim para facilitar a compreensão da história da arte. Desse modo, o gótico é proeminente de 1100 a final de 1400, quando se sobrepôs ao românico, e tem características bem diferentes. O gótico nem tinha esse nome na própria época. Foi Giorgio Vasari, o historiador renascentista, que o nomeou, de uma forma negativa, associando as figuras aos bárbaros “godos”, e o termo permaneceu até hoje.

Na arquitetura, é evidente a verticalização das catedrais, uma vez que o comércio estava mais desenvolvido, e as cidades, mais ricas. Onde havia mais circulação de mercadorias, a Igreja se tornou mais forte e investiu pesado na manutenção dos fiéis. Também o interior ficou muito mais iluminado com o desenvolvimento dos arcobotantes, que proporcionavam paredes mais finas e comportavam vitrais exuberantes e coloridos. Como os afrescos, mosaicos e tapeçarias, as histórias retratadas em vidro são sacras, com paraíso e inferno.

As catedrais inspiram um efeito curioso e paradoxal; sua imponência oprime nosso corpo, mas sua atmosfera eleva o nosso espírito. Seu perfil na paisagem é encantador e, ao chegarmos perto, vemos as imagens que nos espreitam e narram suas vidas, formas alongadas, torres pontudas, aberturas coloridas e, lá no topo, as gárgulas e quimeras! Que figuras são essas?

Gárgula (vem de garganta = calha em forma humana) e quimera são figuras híbridas de animais. Ambas são assustadoras, como monstros da nossa imaginação. Para alguns escritores, são entes que serviam como alerta de que o Mal nunca dorme, obrigando os fiéis a serem eternamente alertas e vigilantes. Outros dizem que serviam como proteção, tanto do clima como dos demônios.

As gárgulas, através da boca escancarada, jorram a água da chuva acumulada no telhado, afastando o jato da parede. Esses elementos arquitetônicos são decorativos e funcionais; protegem o templo das intempéries. Embora sejam figuras baseadas em animais, passaram a ter formas humanas muito expressivas e aterrorizantes, como se vomitassem. A lenda de seu surgimento vem de um dragão que vivia no rio e aterrorizava a população de Rouen. Um sacerdote chamado São Romano solicitou ao povo voluntários para matar a horrível ameaça. Quem se apresentou foi um condenado à morte, por não ter nada a perder. Ao acabar com o animal, imediatamente sua cabeça se transformou em pedra, e a colocaram no alto da torre da igreja, dando origem à gárgula. Assim, o condenado foi perdoado, seguindo a lei que vigorou até a Revolução Francesa, que absolvia um prisioneiro a cada doze meses.

As quimeras são guardiãs decorativas que também oferecem proteção, afastando os maus espíritos. A diferença fundamental é a forma híbrida de animais: patas de lobo, cabeça de águia e corpo de escamas de peixe – certamente para assustar, mesmo. As da Catedral de Notre-Dame de Paris foram criadas pelo restaurador e arquiteto Eugène Viollet-le-Duc, no século XIX.

Um aspecto interessante desses seres fantásticos localizados nas torres das igrejas é sua ligação com a água, que, na tradição cristã, significa purificação e salvação. A partir da teoria psicanalítica, podemos perceber essas criações como manifestações do nosso inconsciente coletivo. Uma necessidade do homem de lidar com seus temores por meio da elaboração de faces terríveis, dando um rosto a toda espécie de medo, pois é mais fácil lutar com algo conhecido.

No Brasil, temos as “carrancas do rio São Francisco”, que avançam nas quilhas das barcas, protegendo seus navegantes e uma legião de artesãos que se dedica a criá-las. São produzidas em todos os tamanhos e servem como “lembrancinhas” de viagem e até como decoração. Será que é somente isso? Será que o homem contemporâneo já venceu toda sorte de apreensão? Quais imagens do Bem e do Mal temos agora?

Referências:

Referências:

CHIESI, Benedetta. Românico. Florença, Itália: Scala Group, 2011.

ECO, Umberto. A História da Feiura. Rio de Janeiro: Record, 2007.

GERNER, Caroline E; SCHMIDLIN, Clemens. Gótico. Colônia, Alemanha: H. F. Ullmann, 2008.

https://www.revistaplaneta.com.br/tassili-najjer-uma-galeria-de-arte-no-coracao-do-saara/

https://www.historiadealagoas.com.br/carrancas-do-sao francisco.html

https://www.etaletaculture.fr/culture-generale/les-gargouilles-entre-mythes-fantasmes-et-realite/