Fotos de Beatriz Oliveira Pires
#39Yes, nós somos barrocosAmarello Visita

Amarello Visita: Quadra da Mangueira

Wesley Assumpção, também conhecido como Mestre Wesley, é o mestre de bateria do Grêmio Recreativo Escola Primeira de Mangueira. Oriundo da comunidade, começou desde cedo a desenvolver sua linguagem musical ao participar do “Mangueira do Amanhã”, projeto social fundado pela cantora Alcione, e como integrante do grupo de percussão Funk’n’Lata. Recentemente, o músico teve a sua trajetória levada às telas no filme “Mangueira em 2 tempos”, de Ana Maria Magalhães. 

O senhor poderia contar um pouco da sua história para quem não lhe conhece? Quem é o Mestre Wesley?

O Mestre Wesley é um rapaz, hoje, de 42 anos, nascido e criado no morro da Mangueira. Veio de uma família muito complicada, porque morar numa comunidade significa fazer um esforço para sair do caminho da criminalidade, e isso é muito difícil. E, na minha época, era mais difícil ainda, porque tinha a criminalidade dentro de casa. Meu pai era traficante do morro da Mangueira e, ao mesmo tempo, presidente da bateria da Mangueira. Então, quando eu cheguei na Mangueira, em 1987, vim através dele, porque ele queria que um dos filhos não entrasse no caminho da criminalidade e escolhesse alguma coisa na vida para se tornar uma pessoa do bem, uma pessoa positiva, uma pessoa que daqui pra frente poderia ser orgulho para alguém da família. E essa pessoa fui eu. Vim para a bateria da Escola quando era muito novo. No mesmo ano, a Alcione fundou a Mangueira do Amanhã, onde eu também me inscrevi e nela permaneci por muitos anos. Foi nela que me formei professor, diretor de bateria e, hoje, mestre de bateria. Sou alguém que lutou por muita coisa. Perdi meu pai no ano seguinte,  em 1988, morrendo como indigente, sem ser enterrado. Quando isso aconteceu, a família toda pensou que o filho mais velho iria se revoltar

para tentar vingar a morte do pai, e foi totalmente diferente desde o momento em que ele me trouxe para o mundo do carnaval – porque ele achava que eu tinha que viver alguma coisa dentro desse ambiente, dentro da música –, e hoje eu sou orgulho para a família. Hoje eu sou um cara que dá palestras sobre percussão para o Brasil inteiro.

Fizeram um filme sobre a minha história. Quando eu fui na pré-estreia do filme e me percebi contando a história que eu vivi, isso não tem preço, porque você passa a agregar algo na vida das pessoas. Hoje, tenho um projeto aqui de escolinha para a comunidade, mas perdi a metade dos alunos, porque é difícil você pegar uma criança e trazer para dentro da quadra para tocar porque eles não querem mais isso. Na minha época, não. Eu vinha para cá e ficava igual maluco, queria aprender. Hoje, se você não incentivar as crianças, eles não vêm para a aula. Antigamente, a Mangueira não tinha os cursos que tem hoje. Única Escola do Brasil que tem um projeto social para as crianças da comunidade. E você vai olhar os projetos e se tiver 10 crianças da comunidade, isso é muito. Se esse oportunidade existisse na minha época, eu teria me formado um maestro no Villa-Lobos, um músico profissional do Theatro Municipal, da Orquestra Sinfônica Brasileira. Eu fui lutando contra a barreira, contra a resistência, para chegar onde eu cheguei. Quando eu junto as crianças pra falar sobre percussão nas aulas de bateria, eu comento como é importante a bateria na vida de um ser humano. A Mangueira me levou pra conhecer o mundo, por que você não pode? Costumo dizer para eles o seguinte: “Se você não acreditar em você, ninguém vai acreditar”.

Pensando a música na Mangueira, como ela chegou na sua vida? Em que momento o senhor se lembra que pensou “Eu acho que a minha pegada é a música”? 

Em 1988, quando eu perco meu pai. Foi um baque na família. São três filhos. Eu, meu irmão e minha irmã. E logo que eu perdi meu pai, como eu era o filho mais velho, eu precisava sustentar a família, porque meu pai era traficante, mas não deixou legado nenhum. O máximo que ele deixou foi uma casa. Meu pai era muito difícil, minha mãe não podia botar a cara na janela que ele batia nela. Então ela não podia sair de casa. Como eu era o mais velho, eu vinha pra dentro da quadra, ficava olhando os ensaios. Eu desfilei e estreei na bateria, a gente tocando, na Mangueira bicampeã do carnaval, com meu pai ainda presente na bateria. No ano seguinte, aconteceu o que aconteceu e eu tinha que dar um jeito de levar um sustento para dentro de casa. Botei na minha cabeça que eu tinha que dar um jeito da música ser esse sustento. Aconteceu muita coisa ruim? Muita barreira? Aconteceu. Mas é o que eu falo: nunca desista de você. E eu falava “Deus, se eu te fiz alguma coisa de errado, o senhor vai me punir. E se eu não fiz, eu vou até o final e eu tenho certeza que uma hora o senhor vai me abençoar”. Quando eu tinha uns 10, 11 anos, comecei a participar da Mangueira do Amanhã. De repente, a Alcione monta um grupo de 30 ritmistas para tocar, durante três meses no Teatro Carlos Gomes, fazendo uma apresentação durante o show dela. Só os melhores, os mais destacados da Mangueira do Amanhã, e eu fazia parte disso. Aí tinha uma salariozinho. No final do ano, ela mandou cada um escolher dois presentes. Eu escolhi uma bicicleta e um videogame. Então ali as coisas começaram a caminhar e, meados de 1993, 1994, a escola principal me chama para virar um repique bossa do grupo de elite da bateria principal. Aí é onde eu começo a viajar o Brasil inteiro com a Mangueira, com a bateria, fazendo apresentações. O dinheiro começou a ser melhor do que quando eu iniciei, menor de idade. Então eu começo a ganhar dinheiro com a Mangueira viajando. E tinha um show da Mangueira, que em um momento entravam Dona Zica, Dona Neuma, Delegado, Mocinha e eu fazia o menino da Mangueira. Eu entrava com um pandeiro, no meio desses artistas todos, com a música da Mangueira. “O menino da Mangueira, recebeu pelo natal, um pandeiro…” [cantarolando]… Além de eu fazer parte desse papel que era o menino da Mangueira, eu fazia parte do repique. Então eu ganhava dois cachês. Eu chegava em casa e “Mãe, tá aí o sustento da família pro mês”. Foi aí que percebi que podia me sustentar e viver com música. De 1996 para 1997, o Ivo Meireles junto com o Alcir Explosão – que foi nosso mestre aqui e perdeu a vida para o tráfico – disseram: “O que tu acha da gente montar surdo, caixa, repique, tamborim, ganzá, botar baixo, guitarra e sopro?” Daí surge o Funk’n’Lata, e em 1998 faço a minha primeira viagem internacional, durante a Copa do Munda da França.  

Você tinha quantos anos? 

Eu tinha 17 para 18. Hoje, eu olhando as fotos – eu tenho essas fotos guardadas – eu falo “Caraca! Eu tava na Copa do Mundo de 1998! Eu toquei dentro do estádio da França, eu fui para Paris!” Eu fui para vários lugares do mundo com 17, 18 anos. Então ali a minha vida começa a andar. Quando eu volto da turnê internacional, eu volto com bastante dinheiro. Eu reformo a casa da minha mãe, dou uma estabilidade pra ela, mas eu tenho uma dor no meu peito, o meu irmão do meio vira traficante. Entra pra vida do crime, porque ele me vê, músico, voltando cheio de roupa importada, e o que que ele faz? Não vou ser igual meu irmão, mas quero ter o que o meu irmão tem. Com 12 anos meu irmão entra para o tráfico e não tem como tirar. Hoje ele é empresário, vive bem e tem orgulho do que faz, mas ficou três anos e sete meses preso. Hoje a família tá estabilizada. Perdi a minha mãe com essa pandemia. Tem um ano e seis meses. Mas o Funk’n’Lata ajudou a me estabilizar. Quando volto da turnê, recebo o convite  para virar o primeiro mestre de bateria da Mangueira do Amanhã, onde eu fico como mestre principal até 2003. Em 2006, o Russo me chama para ser diretor da escola principal e fico até 2010, quando o Ivo me chama para tocar na banda dele e eu me afasto da Mangueira como ritmista porque abriu outros leques, outros ares e eu vou conhecer outras formações musicais diferentes. Quando o Ivo assume presidente da Mangueira, ele me chama para o o carnaval de 2012, que foi o do Cacique de Ramos. Ele precisava de alguém para dirigir o carrinho de pagode junto com ninguém menos que Alcione, Jorge Aragão, Xandi de Pilares, Duda Nobre e Sombrinha e Luizito, quena época era nosso intérprete. A responsabilidade era muito grande e, após o desfile, entendi que eu estava pronto para qualquer desafio que me dessem dentro da Mangueira. Em seguida me afastei da Escola e em 2018, quando já havia desistido de um dia ser mestre da bateria da Mangueira, até pela minha idade avançada, o presidente me liga e pergunta quais os planos que eu tenho pra bateria.“Não entendi qual a pergunta do senhor”, eu falei.  “Porque eu vou trocar e eu tô pensando em você, mas eu preciso saber a proposta que você tem para a bateria. Vamos almoçar?” Eu fiquei a segunda-feira inteira sem dormir, só pensando no que eu ia falar para o presidente. Como eu desfilo aqui desde 1987, conheço todos os problemas que temos. Eu tenho tudo anotado e guardado em uma pasta. Quando chego no restaurante, eu jogo a pasta na mesa. “O projeto da bateria é esse aqui! Tem que mexer aqui, fazer isso, consertar aquilo, etc”. O presidente me anuncia mestre da bateria e eu sofro uma grande rejeição da comunidade e dos músicos, pelo tempo que fiquei afastado. A bateria chegou a rachar para fazer boicote para me tirar. Estávamos há 18 anos sem tirar nota máxima na bateria. Isso me mobilizou muito, recebi como um desafio pessoal. Eu começo a fazer um trabalho de formiguinha. Mexo no andamento, recuando ele. Mexo nas afinações, no desenho dos tamborins, altero a educação musical. Passo um pouco da minha experiência, de que quem ganha a nota é sempre a Escola, nunca você. Eu fui para a Marquês de Sapucaí com metade da bateria contra mim. Até que chega o carnaval, eu pego o megafone e falo para eles: “Ó, quem tá aqui não é o Wesley, é o comandante do barco, a nota não é minha, a nota é de vocês. Então pensem bem no que vocês vão fazer depois daquele portão ali, porque vocês não tão me sacaneando, vocês tão sacaneando a agremiação Mangueira. Então vocês têm que respeitar primeiramente a Estação Primeira de Mangueira, não a mim. Mas se vocês quiserem sacanear é um direito de vocês. Pensem bem no que vocês vão fazer porque o que eu tinha que fazer por vocês eu já fiz. O que eu tinha que fazer pela Mangueira eu já fiz, foi chegar até aqui com vocês.” E a gente entrou naquela avenida. Quando chega quarta-feira de cinza, a Mangueira tá indo muito bem nas notas. Na hora do quesito bateria, acaba a luz dentro da quadra e cai um toró d’água que fica por aqui na canela. E detalhe: acaba a luz na penúltima nota de bateria. Como é que eu vou ver a nota? Não tinha telefone com televisão digital. Um desespero danado. Eu já tinha escutado a primeira e a segunda nota, que foi 10, precisava de mais duas para tirar a nota máxima depois de 18 anos e dar o campeonato. Aí passou um menino, com telefone com televisão digital. Tomei o telefone da mão dele, já tinham dado a terceira nota 10, faltava o último jurado. Aí eu tô com o telefone dele na mão, tem uma poça de lama na minha frente, eu parado, com o telefone dele na mão, “quesito bateria, último julgador… Estação Primeira de Mangueira… – o maior silêncio – 10!”. Quando ele dá o 10, eu entrego o telefone pro menino e me jogo na poça de lama, da água da chuva, sabe? Pra tu tirar aquele peso das costas, de tudo o que você passou. 

Você pode falar um pouquinho sobre as especificidades de cada instrumento? Porque as vezes as pessoas acham que todos os repiques vão fazer a mesma coisa, que todos os surdos vão fazer a mesma coisa, sendo que cada instrumento desempenha um papel diferente e ainda tem o trabalho do mestre de bateria que pode colocar um molho mais diferente ainda. O senhor pode contar um pouquinho sobre isso?

Para explicar a diferença dos instrumentos eu vou dar o exemplo da Mangueira. Os surdos, aqui, todos eles tocam iguais. O único surdo diferente que tem na Mangueira – porque a Mangueira é a única bateria do mundo que não tem primeira, segunda e terceira, só tem um único surdo, que é o surdo de primeira – é um surdo que a gente chama de surdo-mor, que ele dá umas viradas no contratempo. Agora, as caixas tocam todas iguais, repique tocam todos iguais, timbal a mesma coisa, tamborim a mesma coisa, ganzá a mesma coisa. A única diferença é o repique show. O que é o repique show? Repique show é o repique guia que dá o andamento das bossas, da paradinha do samba enredo. Ele é que conduz a bateria toda. É uma brincadeira de pergunta e resposta. Tudo o que o repique pergunta, a bateria tem que responder. Então essa é a diferença do repique – a gente costuma dizer repique show, tem gente que diz repique bossa, outras escolas dizem que é repique principal. Então ele é destacado da bateria porque ele é que dá o andamento de tudo o que vai acontecer dentro de uma bateria. Ele que dá andamento se a bateria for correr; ele que dá o andamento se a bateria for pra trás; é ele que faz as perguntas da bossa e a bateria responde. Tudo acontece relacionado a ele.

O senhor falou uma coisa muito importante, que a quadra da Mangueira foi feita onde era um terreiro. A Mangueira tem uma tradição muito forte com o território, com a favela, é uma escola que tem uma história de negritude muito grande. Como entender a relação da Escola com essa ancestralidade? 

Eu não presenciei o nascimento da Mangueira no terreiro porque sou muito novo. Mas a história que dizem é que a Mangueira foi feita dentro de um terreiro de macumba, onde tinha muita mãe de santo, onde estavam as mães lavadeiras, onde os gatos serviam de couro para os tambores. Então tudo isso era num terreiro. Até que o nosso gênio, Angenor de Oliveira, nosso querido Cartola, tem a ideia de colocar o nome da nossa escola de Mangueira e tem a linda imaginação de colocar a nossa escola em verde e rosa. Costumo dizer que o Cartola, para mim, é um cara que tinha que ter uma estátua na entrada da quadra, do tamanho da quadra, porque hoje a Mangueira é o que é graças a ele. O Elmo, que foi nosso presidente na década de 1990, sempre fala: “A nossa escola é guerreira por isso, porque foi fundada dentro do terreiro das mães lavadeiras, dentro do espaço de uma gente de luta.” A Mangueira nasceu em 1928 nesse ambiente, quando as pessoas ali pegaram um tamborim, um surdo, um repique e resolveram montar uma escola de samba. O primeiro desfile oficial aconteceu em 1932, quando a escola ganhou o primeiro campeonato.

Você comentou que grava todos os ensaios para escutar quando chegar em casa. Do momento em que assume a bateria até incluir as inovações e as modificações a partir dos problemas que surgem, como funciona o seu processo criativo? Por exemplo, uma coisa que me chama muita atenção é o naipe de pratos, que mistura o que muitas pessoas consideram um instrumento dito erudito com o samba. O senhor pode falar um pouco sobre isso? 

O carnavalesco apresenta a sinopse, os compositores fazem o samba e depois levam para a quadra para as eliminatórias. Ali acontece o processo de afinar. Costumam ser quatro ou cinco sambas que se destacam entre 30, 40 sambas. Em 2022, foram 51 para escolher um. É a partir dessa seleção preliminar que começo a pensar em alguma coisa. Quando chegamos a três sambas, já consigo imaginar o que Escola vai levar para a avenida.  Em 2019, por exemplo, escolheram o samba da Marielle e eu era contra porque esse samba não tinha refrão, não tinha segunda. Era um samba que, nas eliminatórias, arrastava o tempo inteiro, a bateria não conseguia tocar ele, era um samba horroroso. Fui para casa contrariado e passei o domingo todo escutando a música. Em algum momento percebi que na parte  “Salve os caboclos de julho, quem foi de aço nos anos de chumbo…” [cantarolando] era possível inserir uma marcha. Estava dando quatro compassos exatos. Liguei para o carnavalesco para contar isso e iniciei a montagem desse processo. Tudo precisa funcionar dentro da letra e da melodia do samba, até porque a Mangueira não tem característica de fazer bossas exuberantes, com nove, 12, 14 compassos – como outras escolas fazem – porque a gente não tem surdo de resposta. Mandei vir uns dez atabaques, que pegamos emprestados do Candomblé e comecei a construir a marcha. Em seguida, percebi que eles não estavam dando vazão e resolvi colocar o timbal, que funciona mais com a Mangueira e com a arquibancada. Os timbales entraram como se fosse um ataque: : “tchum, Mangueira!”. O carnavalesco foi à loucura quando viu. Vou para a quadra e começo a passar para o ritmista, naipe por naipe. Boto um surdo num canto, caixa pro outro, repique pro outro, tamborim vai para um lado, ganzá vai pro outro. Ficamos um mês só nesse trabalho dos naipes antes de reunir a bateria toda, chamar um cantor e um cavaco. Vamos construindo as partes até chegar no todo que vai estar na Marquês de Sapucaí. 

O carnaval de 2020 foi o último que pudemos levar para a avenida antes da pandemia. Vínhamos do tema da Marielle e fomos para um outro samba muito denso, que gosto muito, mas não consigo sambar: “A verdade vos farás livres (…) / Rosto negro, sangue índio, corpo de mulher / Moleque pelintra no buraco quente / Meu nome é Jesus da gente…”. É uma das coisas mais fortes que já ouvi na vida. Como aconteceu o processo desse samba? 

Muito parecido com o que se deu em 2019. Mas , na verdade, demorei pra entender a sinopse e o enredo desse samba. Achei ele muito perigoso, porque, como diz o ditado “O carnaval é da carne”. Você falar de Jesus, Jesus moleque, Jesus trans, eu acho muito pesado, mas eu respeito a opinião do carnavalesco. Ele queria contar um Jesus diferente, mas eu achei muito pesado, tanto que nosso instrumento tem um menino Jesus negro na favela, com um helicóptero no fundo, e ele com a mão furada, como se tivesse sido baleado na mão com a roupa do colégio. Eu só pensava o que eu podia fazer nesse samba. Quando encontrei a parte do “Favela, pega a visão”, logo lembrei que, como favelado, foi o Funk’n’Lata que me levou para conhecer a Europa  com 17, 18 anos. Então resolvi colocar um funk ali, e me parece que é a única parte do desfile que o público curte um pouco, porque o resto do samba a arquibancada toda fica parada querendo entender o que a Mangueira está passando na quadra. A Mangueira foi muito criticada por causa desse enredo.  No último carro, em que apresentamos um negro de cabelo louro, pra mim é uma das imagens mais fortes já feitas em todos os carnavais. Quando começa o desfile, eu vejo a arquibancada muito silenciosa, calada, porque as pessoas queriam entender o que a escola ia passar. E a própria escola e os seus integrantes estavam meio frios. Quando chegamos na dispersão, eu falei para todo mundo: “Vamos fazer de tudo pra gente tirar a nossa nota lá, porque a tendência é a gente não voltar, não, porque foi muito ruim”. E a quarta-feira de cinzas provou isso. A Mangueira ficou em sexto e voltou no dia das campeãs porque as notas da bateria seguraram. Tiramos quatro notas 10. Conseguimos salvar a Escola. 

Nessa edição da Amarello, estamos falando muito do Barroco, a partir de um ideia de que o movimento artístico está presente em algo da identidade brasileira, nos seus contrastes, cor e diversidade. O samba-enredo de 2020 tem muito desse jogo de luz e sombra, algo que as pessoas não estão acostumadas, a misturar  carnaval com temas sociais delicados da nossa sociedade. Como o carnaval pode contribuir para pensarmos – e repensarmos –  a identidade brasileira?  

Olha, eu acho que o nosso carnaval vem manchado desde a Ditadura. Se você aparecesse na rua com um tamborim, com uma lata, tu era preso. Então, não podia ter samba de terreiro, não podia ter samba em roda, que todo mundo ia preso. Eu acho que a discriminação já vem lá de trás. Então, o que que a Mangueira faz? A Mangueira tem um projeto social pra gente mostrar o contrário disso. Nesse projeto, eu dou aulas de percussão para pessoas de dentro e de fora da comunidade. Sempre que tenho a oportunidade, procuro mostrar um pouco da nossa cultura e falar sobre a cultura da favela, seja no Brasil ou fora dele. Recife tem favela? Tem. Fortaleza tem favela? Tem. Mas favela de lá não é igual a nossa aqui, que tem fuzis para tudo quanto é lado. Eu falo da favela porque é nela que eu vivo. As pessoas me dizem: “Eu acho que já tá na hora de você ir embora da comunidade”. Eu não vou, e sabe por que? Porque eu vou perder a minha raiz. É a partir dessa minha realidade que eu ensino meus filhos o que é o certo e o errado, não é saindo da comunidade que as coisas vão melhorar. Precisamos aprender a ter respeito pela decisão das pessoas. Para nosso país mudar, tem que mudar muita coisa. Tem que mudar educação, tem que mudar saúde, tem que mudar governo. Para mudar o país, a primeira coisa que tem que mudar é o sistema, e o sistema é muito difícil de lidar. Nós fazemos a nossa parte nessa mudança. O projeto social que falei já recebeu o Pelé, o Bill Clinton. O Philippe Coutinho saiu daqui. Muita gente saiu do projeto social da Mangueira. A Mangueira entende esse sentimento do Barroco, porque tem a proposta de mostrar pras pessoas que a gente consegue, se a gente se unir, a gente consegue sim criar uma nova realidade. Se o Brasil for um pouquinho mais unido, principalmente os negros, é possível ter esperança. Pra gente tentar mostrar alguma coisa, primeiro temos que mudar entre nós, cada um de nós. 

Mestre, muito obrigada!