Depois de quase dois anos de pandemia, em meio a uma espiral de mortes por Covid-19 e muitos problemas econômicos, parece que 2019 foi há vinte anos. Ainda assim, quem acompanha mais fielmente o universo das escolas de samba do Rio de Janeiro certamente vai se lembrar do carnaval daquele ano, quando a Estação Primeira de Mangueira sagrou-se a grande campeã. O enredo, que homenageava lutadores sociais negligenciados pela nossa historiografia, como líderes indígenas, quilombolas e ativistas sociais, como a vereadora Marielle Franco, ganhou certa projeção fora do público habitual da festa. O desfile desfrutou de grande popularidade junto a uma significativa parcela da militância de esquerda, notadamente aquela mais próxima da intelectualidade forjada nos cursos de humanas das universidades públicas. O samba extrapolou os ambientes estritamente ligados ao carnaval e passou a ser entoado em manifestações e comícios com entusiasmo, podendo ser ouvido inclusive na voz de gente que nunca pisou em uma quadra de escola de samba.
A crítica levada à avenida tinha indiscutíveis méritos. Além de ser muito oportuna politicamente, foi construída com uma plástica inspirada e embalada por um samba que era uma verdadeira obra-prima musical. Rendeu um campeonato justíssimo e um maravilhoso hino de resistência.
Contudo, a justa vitória da Verde e Rosa e a popularização de seu samba-enredo ajudaram a cristalizar no imaginário coletivo a ideia de que o carnaval só é político se cantar a nossa luta contra a opressão em verso e prosa. Para muita gente, se o desfile não denunciar nossas mazelas estruturais da forma mais explícita, literalmente desenhando a tragédia de nosso passado escravocrata, ele não é engajado o suficiente. Como veremos mais adiante, essa é uma visão reducionista e simplificadora, que nem passa perto de dimensionar o quanto de resistência está embutida no ato de uma escola de samba desfilar, ou mesmo no fato de ela existir.
Assim como foram em outros tempos os Quilombos e as irmandades religiosas, as escolas de samba se constituíram como estratégia de sobrevivência de descendentes de africanos escravizados. Não à toa, os principais núcleos de irradiação do samba no Rio de Janeiro se formaram concomitantemente a um violento processo de segregação, quando, no começo do século XX, grandes contingentes de negros pobres foram expulsos do centro da cidade. As reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, um projeto abertamente francófilo, higienista e excludente, forçaram esses grupos a ocuparem os morros e o entorno das paradas da estrada de ferro, constituindo as favelas e os subúrbios da cidade.
Dessa forma, as escolas de samba representam resistência no sentido mais essencial do termo. São espaços de socialização, ajuda mútua, lazer e expressão cultural de várias comunidades formadas a partir de resistentes, de sobreviventes da exclusão, da indiferença e do racismo. E, mais importante de tudo, elas constituem um espaço de preservação e de divulgação de saberes e práticas culturais de descendentes de africanos escravizados na diáspora. Elas são a afirmação viva e concreta da resistência e da identidade de um território. E é de um desses territórios, resistentes, aquilombados e representativos de uma herança cultural afro-brasileira, que parte a modesta reflexão que desenvolvemos aqui. Esse lugar surgiu a partir de ex-escravos oriundos das fazendas do interior do estado do Rio de Janeiro e de comunidades expulsas do centro da capital pela reforma urbana para a região em torno da estação ferroviária de Rio das Pedras. A iniciativa formou, na zona norte da cidade, o bairro que, posteriormente, veio a ser conhecido como Oswaldo Cruz.
A região formada por Oswaldo Cruz e pelos bairros vizinhos, como Madureira e Turiaçu, hoje constitui um pujante centro econômico, cujo comércio popular recebe visitantes de toda a cidade, principalmente nas lojas de atacado e de artigos religiosos. O tradicional Mercadão de Madureira é referência nesse tipo de comércio, sendo fácil encontrar quem cruze a cidade inteira em busca da diversidade e dos preços atrativos encontrados em suas lojas. Cortada por duas linhas de trem que dão acesso rápido ao centro da cidade, a localidade já é parte indissociável da cultura do Rio de Janeiro, tão célebre quanto muitos bairros nobres da cidade. Assim como Ipanema e Copacabana, a região já recebeu inclusive uma merecida homenagem musical que marcou seu nome na história da música popular brasileira. Composta pelo sambista Arlindo Cruz, a canção Meu Lugar, cujo refrão é tão simplesmente o nome do bairro de Madureira, é indispensável em qualquer playlist de samba que se preze.
Por sinal, a localidade também é berço da quase centenária Portela, histórica agremiação carnavalesca, reconhecida por sua trajetória de resistência e pela sua rica produção artística. O historiador, escritor e compositor Nei Lopes, profundo conhecedor do universo do samba carioca e da cultura afro-brasileira, nos dá uma ideia do quão importante é essa conexão entre as escolas de samba e seus territórios. Em seu Dicionário da Hinterlândia Carioca, no verbete sobre Oswaldo Cruz, ele faz questão de mencionar a Portela como a sua “mais importante expressão cultural”. Longe de ser um exagero, tal afirmação reflete o grau de importância da escola na vida da região em que ela está inserida.
O primeiro grande líder da agremiação também foi uma importante liderança comunitária da localidade. Seu nome era Paulo Benjamin de Oliveira, mas ele ficou eternizado como Paulo da Portela, o que, por si só, já dá uma boa ideia de seu envolvimento umbilical com a escola que ajudou a fundar. Paulo foi um batalhador incansável pelo reconhecimento das manifestações culturais de sua comunidade como legítimas e respeitáveis. Ele inclusive negociou, junto ao poder público, o aval para as festas e as apresentações carnavalescas da Portela e de outras agremiações, constituindo-se uma liderança reconhecida por todo o mundo do samba. O líder portelense empenhou-se pessoalmente no sentido de afastar os estigmas que sempre rondaram as manifestações culturais populares, como a feiúra e a marginalidade, incentivando os sambistas a se vestirem e se portarem com elegância e altivez. Era conhecido o seu lema segundo o qual sambistas deviam estar com “pés e pescoços ocupados”, o que se traduzia no cuidado em usar gravatas e bons calçados. Um esforço consciente em distanciar-se dos pés descalços que caracterizavam os negros escravizados.
Viver e circular pela localidade formada por Oswaldo Cruz, Madureira e bairros adjacentes é testemunhar cotidianamente a centralidade da escola de samba na vida comunitária. É topar com o legado de Paulo da Portela em cada esquina. É vivenciar, de forma concreta, conceitos aparentemente abstratos, como resistência e aquilombamento. Tudo isso está lá, visível nas mais variadas manifestações culturais do povo preto, que encontraram naquela região terreno fértil para crescer e se popularizar. Espaços como o Quilombo Urbano Agbara Dudu, o Jongo da Serrinha, o Baile Charme sob o viaduto Negrão de Lima, a Feira das Yabás, O Império Serrano, a Portela e incontáveis rodas de samba. Cada uma dessas manifestações é um galho nesse enorme baobá de resistência e ancestralidade.
Não seria exagerado afirmar que ter passado minha infância e adolescência imerso naquela atmosfera cultural constituiu minhas vivências, valores, preferências culturais e convicções ideológicas. Me fez ser quem sou, em suma. À primeira vista, se eu dissesse que Oswaldo Cruz é meu lugar de fala, talvez soasse como um trocadilho, uma subversão do conceito popularizado pela escritora Djamila Ribeiro, que estaria sendo utilizado em um contexto mais literal. No entanto, diante do impacto dessa vivência em minha forma de ser, de pensar e de agir enquanto preto, sambista e suburbano, posso tranquilamente dizer que levo Oswaldo Cruz na mente, na alma e na pele. Oswaldo Cruz, Madureira e a Portela são meus lugares de fala, não só enquanto origem geográfica, mas como fonte originária dos valores que defendo e das práticas culturais que perpetuo.
Integrar o Departamento Cultural da Azul e Branco me convida diariamente ao desafio de me debruçar sobre a história dessa escola e dessa localidade, que sempre me foram referenciais afetivos, e vê-los também como fontes de saberes ancestrais. Assim, eu posso, a partir deles, olhar para o futuro de nossa gente e de nossa cultura, guardando a prática, vinda de África, de aprender com o legado daqueles que vieram antes de nós. Como já cantou um de nossos grandes poetas, o eterno mestre Paulinho da Viola, “quando eu penso no futuro, não esqueço meu passado”. Esse passado rico de ensinamento e esse futuro repleto de possibilidades podem ser vivenciados cotidianamente em Oswaldo Cruz, Madureira e na Portela, meus lugares de fala.