Neste excerto, redigido com base na palestra “A criação de si como obra de arte”, proferida na Universidade Federal de Uberlândia em setembro de 2013, esboçarei um caminho no sentido de apreender a função da obra de arte como algo que não é mera expressão de uma invenção humana, diferente de sua invenção científica, moral ou religiosa. Quero partir da ideia de que a arte funciona como a vida. Ela é vida, desde que a vida seja intensa. E uma vida intensa é diferente de uma vida que apenas desenvolve, ou desdobra, qualidades ou propriedades inatas e formadoras do caráter humano.
A vida intensa implica uma atitude. Implica uma atividade, num sentido raro. E por “sentido raro” quero dizer que só podemos ser ativo na medida em que efetuamos algum tipo de realidade a partir das forças que nos constituem e que nos atravessam. Forças que, em seu modo de efetuação, são contempladas por um plus de força, por um excedente de força, por uma produção de força pela própria força — pela produção da própria potência que atravessa essa força.
Como diria Spinoza: quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. Quanto mais eu posso pensar, mais eu penso. Quanto mais eu penso, mais eu posso pensar. É um círculo virtuoso, e não um círculo vicioso. Um círculo virtuoso da potência. Da mesma forma em relação ao corpo: quanto mais eu sou uma potência de mover, mais eu movo. Quanto mais eu movo, mais potência de mover eu tenho. Eu conquisto mais potência de mover.
Para esta vida ativa, que coincide com a arte, é necessária uma afirmação. Não uma afirmação linguística (dizer “sim”), tampouco uma afirmação psicológica ou moral, pois a moral pressupõe, também, uma negação — a moral nega que este mundo seja perfeito, nega que a natureza e a realidade sejam autossuficientes. Assim, há um “não” na existência moral. Esse “não” já é a mediação feita por um acontecido que toma o lugar da potência de acontecer.
Ora, como esse ser fixado no acontecido, no passado — como diz Nietzsche: com o seu olhar de caranguejo, com essa visão retrospectiva e ressentida —, como esse ser voltaria a confiar no acontecimento? Esse ser que só vive o já vivido, ou o ainda por vir, vive no passado ou no futuro, mas nunca o devir. Ele é um ser sem devir, por isso se torna um ser do devir reativo. Ele ainda segue na mudança, no tempo, mas, quanto mais o tempo passa, mais fraco, mais doente, mais impotente, mais miserável, mais decadente se torna. É essa condição humana que leva Heidegger a acreditar que o homem é um ser para a morte.
É necessária, portanto, uma afirmação no sentido ético. A ética, sim, seria uma força seletiva, cujo horizonte afirmativo faria com que as modificações de nós mesmos retornassem sobre nós em forma de mais potência, de mais energia, de mais força.
Então, essa afirmação não tem nada a ver com essas instâncias do homem a que me referi antes, mas é o próprio modo de viver que se constitui como afirmação. Viver de um modo tal, que esse modo se torne afirmação da diferença que nos constitui e que exprima nossa singularidade. A singularidade é um modo necessário do acontecimento de nós mesmos para que sejamos ativos e criadores. A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.
“A singularidade é, na verdade, uma razão de potência de nossa existência. Se existir implica criar existência, e se nossa essência é potência de criar realidade e de fazer emergir o novo, é preciso encontrar essa razão de potência — sem a qual não há criação de si na existência.”
A singularidade afirmativa da ética não vê o bem e o mal enquanto princípio ou origem de alguma coisa. O bem e o mal são efeitos de nosso bom ou mau jeito de existir. Bem e mal são projeções e ilusões de transcendência. Existem o bom e o mau jeito de se relacionar com a existência. Existem o bom e o mau uso que faço daquilo que me acontece. Essa é a escolha ética, que não tem nada a ver com a escolha (isto é, negação) moral.
Ao contrário do que a moral prega, a realidade é perfeita. E o que é a realidade que se apresenta para nós na existência? É aquela que somos capazes de apreender: cheia de sofrimento, cheia de dores, cheia de miséria, cheia de mal, de morte. Mas a visão reduzida que temos dela, em virtude do modo rebaixado de viver, faz com que façamos um péssimo uso da dor e do sofrimento, utilizando-os como testemunhas de que a vida é um erro, ou que a existência é imperfeita.
O homem moral é esse ser incapaz de dizer sim. Não adianta dizer que niilista é aquele que nega Deus ou que é o ateu porque não acredita no outro mundo. Ele próprio está afirmando outro mundo, porque acha que este é insuficiente. Quem é o niilista de fato? É aquele que nega a suficiência da realidade ou da natureza e acredita em outro plano de realidade. A realidade só tem um plano, apesar de esse plano ser múltiplo e ter dimensões infinitas. Tudo que existe é imanente a um único e mesmo plano de realidade. A invenção de outro mundo transcendente é só um sintoma para dividir este mundo em dois: o do bem e o do mal, ou do verdadeiro e do falso.
O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.
A obra de arte, do ponto de vista ativo, essa arte intensa que se iguala à vida intensa — e não à vida extensa, reativa, fraca —, não só produz as condições de existência e se produz através delas, como também produz a própria existência. Ela estiliza a existência. E, uma vez que a obra de arte estiliza a existência, é necessariamente política. E aqui temos uma política à altura do acontecimento que é viver: a política da vida ativa, a política da intensidade. A arte como força, além de estética, plástica e ética, é uma força política e de combate.
A obra de arte cria, portanto, uma zona de vitalização. Ela não é feita para divertir e sim para intensificar. Ela não é feita para distender, ou relaxar, e sim para tensionar. Ela não é feita para afrouxar, ela é feita para esticar o arco e tensioná-lo. É para isso que essa arte é feita: para fazer a diferença e criar eternidade na existência. E nós somos feitos desse mesmo estofo.
“O mais importante não é dividir a realidade em existência aparente e ideal transcendente. O que importa é dizer sim (eticamente) a todo acaso, inclusive ao pior deles. É necessário estar preparado e forte. Há que se fortalecer, há que se produzir a si mesmo. Isso é próprio da obra de arte.”
Assista à palestra “Criação de si como obra de arte”, proferida por Luiz Fuganti na Universidade Federal de Uberlândia, neste link.