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A todas as mulheres do fim do mundo: Elza Soares, territórios negros e demolições

Desde sempre conheço o trabalho de Elza Soares. Digo “desde sempre” porque me recordo de, pequena, ouvir uma voz rouca na sala de casa e depois vir a saber que era dela. Lembro de, por volta do ano 2000, ficar impactada com a interpretação de Elza em seu vestido tubinho preto, em um DVD de Jorge Aragão, interpretando a canção Malandro. Me recordo também de sentir medo e tristeza ao, ainda adolescente, ouvir Elza cantar Meu guri, de Chico Buarque. A voz rouca e forte cortava o ar da sala da casa na rua Silva Vale, no Rio de Janeiro, cantando:

Chega estampado, manchete, retrato
com venda nos olhos, legenda e as iniciais
Eu não entendo essa gente, seu moço
fazendo alvoroço demais
O guri no mato, acho que tá rindo
Acho que tá lindo de papo pro ar
Desde o começo, eu não disse, seu moço
Ele disse que chegava lá
Olha aí, olha aí
Olha aí, ai o meu guri, olha aí

E, sempre que possível, nesse trecho da música eu fechava os olhos e pedia dentro de minha cabeça: “Tomara que papai ou mamãe tire essa música. Eu não quero ouvir. Eu não quero sentir essa dor”. Ainda muito jovem, a verdade da voz de Elza me invadia. Mexia comigo num lugar que eu ainda nem acessava conscientemente. Eu ainda não tinha a reflexão política que tenho hoje, mas dentro de mim e dentro da minha família toda pretinha eu tinha pavor de que meus irmãos ou um filho meu tivessem o mesmo destino do “guri de Elza”. Entendo que a arte tem papel político e de reflexão. De mexer com as nossas entranhas mesmo. E Elza fazia — e faz — isso com maestria.

Em 2018 eu pude tocar em Elza. Num mundo pré-pandemia, onde o toque físico era cotidiano, Elza pegou em minha mão. Em dois momentos distintos. Um deles no Festival Mulheres do Mundo, realizado pela Redes de Desenvolvimento da Maré na praça Mauá (Rio de Janeiro), e outro no MAR de Música, programação musical do Museu de Arte do Rio. Nas duas ocasiões eu era a apresentadora do show de Elza. Eu ia chamar seu nome. Frio na barriga, noites sem dormir, textos escritos e reescritos… Como anunciar a voz que entrava em minha alma na infância? Como chamar a Mulher do Fim do Mundo? E o fiz com todo o meu coração, respeito e admiração. Ao fim da apresentação, na entrada para o palco, Elza pegou na minha mão e disse: “Muito obrigada pelas suas palavras”. E pude olhar nos seus olhos e ver Elza Soares. Mas também vi Elza Gomes da Conceição. Em sua humanidade e imensidão.

Elza Gomes da Conceição nasceu mulher negra, num Rio de Janeiro racista e desigual. Elza é — mesmo não estando mais em vida em seu corpo físico — uma mulher de demolições. Seu local de nascimento nos leva a uma fissura no espaço-tempo. A multiartista nasceu em uma favela que não existe mais. Hoje conhecida como Vila Vintém, no bairro Padre Miguel, Rio de Janeiro, a favela Moça Bonita foi palco de estreia de Elza no mundo. Posteriormente, Elza e seus dez irmãos foram morar num cortiço no bairro Água Santa. O cortiço, também numa favela, foi alvo de políticas higienistas, como vários outros no Rio de Janeiro.

Tanto a favela quanto o cortiço são formas de habitação ocupadas majoritariamente por pessoas negras e pobres. São soluções de moradia surgidas na ótica da necessidade de sobrevivência ante um Estado que pouco avança em políticas públicas para habitação, racismo e desigualdade social. Os locais onde a multiartista nasceu e foi criada são essenciais para pensarmos a ótica de demolição que permeou sua trajetória, bem como a de várias mulheres negras.

Os territórios são espaço de construção política e subjetiva, articulando aspectos históricos, sociais e culturais. Os territórios também revelam perspectivas políticas ao longo de nossa formação como sociedade. O Estado brasileiro sempre desenvolveu uma relação ambígua em relação aos territórios de favela — por vezes paternalista e assistencialista, por vezes genocida e destruidora. As primeiras ações do Estado em favelas partiam do pressuposto de que esses espaços eram problemas sociais que precisavam ser resolvidos. A favela deveria ser retirada da paisagem carioca. As favelas foram vistas e apresentadas à sociedade como um impeditivo do progresso. Exemplo disso foi a destruição do Morro do Castelo, justamente no contexto do centenário da independência do Brasil, sob a alegação de que era necessário modernizar a cidade. A narrativa pública construída colocava a favela — e seus moradores — como sinônimo do atraso. Em 1947, o jornal Tribuna Popular escreveu sobre a Vila Vintém, que estava surgindo:

“A Vila do Vintém é a mais nova das favelas do Rio de Janeiro. Está nascendo agora. São centenas e centenas de trabalhadores escorraçados da cidade pela crise de moradia. Gente cujo salário insuficiente não lhe permite, sequer, morar numa “cabeça de porco”. Naqueles terrenos que a princípio diziam ser da prefeitura e, agora, já afirmam ter outro dono, a viúva Pinheiro Machado, a favela cresce espantosamente com o trabalho diário dos moradores. Não custa nada: é só chegar, armar quatro esteios de bambu, cobrir com folhas de zinco e pronto, está construída a nova moradia. (Jornal Tribuna Popular, 1947, p. 4).”

As “centenas de trabalhadores escorraçados” são povo de Elza. As moradias narradas em um tom carregado de preconceito são similares ao lar onde Elza nasceu. O universo apresentado pelos jornalistas, políticos e figuras públicas na época constrói o Planeta Fome, de onde Elza saiu diretamente para os programas de calouros e palcos do mundo todo.

A contribuição de Elza neste plano extrapolou o campo da música. Ela se tornou uma das principais referências quando falamos na luta por igualdade racial e de gênero. De “A carne mais barata do mercado é a carne negra” (canção A carne, gravada por Elza em 2002) a “Cê vai se arrepender de levantar a mão pra mim!” (canção Maria de Vila Matilde, gravada pela deusa-artista em 2015), Elza inspirou lutas por todo o Brasil. Fruto disso são os diversos coletivos e instituições de movimentos sociais autodenominados “Elza Soares”.

Atualmente moram mais de 15 mil pessoas na Vila Vintém. O local é reduto de movimentos de resistência cultural, especialmente em relação ao samba. Na região estão localizadas duas grandes agremiações do carnaval carioca: a Unidos de Padre Miguel e a Mocidade Independente de Padre Miguel (Mocidade que, em 2020, homenageou Elza com o enredo Elza Deusa Soares). Elza foi louvada em vida no mesmo chão onde deu seus primeiros passos. Vinda de uma realidade de desigualdades históricas, demoliu preconceitos, cercas e muros. E construiu caminhos para que quem vem possa passar.

Brasil, enfrente o mal que te consome
Que os filhos do planeta Fome não percam a esperança em seu cantar
Ó nega!
Sou eu que te falo em nome daquela
Da batida mais quente
O som da favela
É resistência em nosso chão
Se acaso você chegar com a mensagem do bem
O mundo vai despertar, Deusa da Vila Vintém
Eis a estrela
Teu povo esperou tanto pra revê-la.

(Samba Enredo 2020 da Mocidade Independente de Padre Miguel)