Funkeiros cults
Imaginar Michelangelo como um jovem de periferia e a Capela Sistina como uma favela é mais do que um exercício de imaginação, é trazer uma discussão provocativa sobre a arte, sobre como ela nasce e é vista pela sociedade. Quando mostrei a foto de A criação de Adão versão periferia para as pessoas do meu bairro, elas não conheciam Michelangelo ― não por ignorância a respeito do pintor italiano, mas por outros motivos mais complexos; eles reconheceram os elementos da “obra original”, mas encararam a nova imagem com um olhar que nós, criadores, não tínhamos dado: eles viram uma obra única, em que reconheciam os elementos colocados com todos seus detalhes e nuances. Foi aí que percebemos que não estávamos necessariamente criando releituras, que as imagens deveriam ser analisadas além do impacto visual.
Quando analisadas, as obras ganham camadas e camadas, sobretudo sociais, culturais e provocativas, que refletem muito o nosso projeto, o Funkeiros Cults, e a própria cultura brasileira de periferia. Oswald e Tarsila, com o movimento antropofágico, defenderam a ideia de engolir e devorar o estrangeiro para criarmos nossa própria identidade, nossa própria estética. Quando olhamos de perto, o nosso funk passou por isso ― todo inspirado em ritmos vindos de fora e depois adaptados para o que é hoje um dos grandes estilos brasileiros. As obras desta galeria refletem isso em outros níveis, assim como o funk mostra apenas um retrato de muitas realidades que existem no Brasil, engolindo a arte para chegar a uma verdade maior.
Alguns podem questionar o porquê de “refazer” obras que já existem, outros podem fazer comentários levianos, dizendo que algumas pessoas não seriam capazes de entender a obra de arte original ― o que seria chamar o povo de ignorante ―, mas de maneira provocativa eu lhe pergunto: o que você pensa quando imagina um menino negro de 12 anos se identificado com uma obra de “um jovem segurando uma favela nas costas”, tal qual o Atlas da mitologia grega? O que isso diz sobre o lugar e a condição em que o jovem vive? Que aquelas mãos segurando o “mundo” se parecem com as dele? Que casas em cima da sua cabeça poderiam ser a de sua comunidade? Que ele sente um peso, uma pressão, mesmo sem entender, na sua existência? Será que a obra “original” em que ela foi inspirada teria tanto impacto para esse jovem quanto essa nova? Esses questionamentos por si só nos fazem ver as obras como únicas, inquestionáveis em sua função de arte, que é a de nos fazer pensar, nos fazer sentir, nos fazer questionar o nosso mundo e, acima de tudo, o nosso lugar nele.
Uma discussão totalmente válida é se a arte feita na periferia teria que ter necessariamente elementos periféricos, se ela não poderia existir pela sua simples e misteriosa beleza. Poderia, mas nossos corpos e nossas almas são atravessadas de muitas maneiras; temos nosso lugar, nossas falas são como nosso mantra, nossa armadura. É um jogo complexo. Como poderia um ser não falar sobre seu lugar e os sentimentos que viver na pele dele causam? Seria injusto. As obras serem refeitas com esse olhar e a forma como foram feitas faz parte de todo seu conjunto. Elas foram feitas em meio a conflitos e a criatividades; a maioria delas, em especial, foram feitas em uma comunidade da Zona Norte de Manaus, com seus moradores e artistas, a arte de fato encontrando rumos onde “não eram existentes” ― mas é justamente nesse local em que ela mais necessita estar, em completa harmonia com as pessoas, não por carência, mas pela excelência que essas pessoas têm, por sua determinação em querer construir um mundo de tantas possibilidades imagináveis, mesmo em meio ao caos, à falta de acesso e incentivo, e nunca por falta de coragem e desejo de melhoria.
Grande parte das obras foram imaginadas por mim, Dayrel Teixeira, mas de maneira alguma teriam acontecido sem apoio de Rivotrist, Jovem Rain e Adriano Teixeira, brilhantes artistas do Norte, assim como elas não teriam tantos significados se não fosse a imaginação das crianças e das pessoas que elas atravessaram e que deram a elas um puro significado, verdadeiros operários que se dedicam, das mais diversas formas, a construir, espalhar e inspirar a cultura e a arte no Brasil.