Heitor Prazeres no atelier, 1963. Imagem: Divulgação CCBB
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Heitor dos Prazeres: CCBB celebra vida e obra de um artista único

A exposição sobre Heitor dos Prazeres no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro, cuja abertura aconteceu dia 28 de junho e segue até 18 de setembro de 2023, é uma das maiores retrospectivas históricas da obra do artista, reunindo mais de 200 trabalhos. Para quem não sabe — o que não deve ser raro hoje em dia, daí a importância de trabalhos como o do CCBB —, Heitor dos Prazeres (1898-1966) foi um artista multimídia brasileiro que deixou uma marca indelével na cultura carioca e nas artes do Brasil. Nascido em 1898, no bairro do Rio Comprido, RJ, ele cresceu em um ambiente marcado pelas profundas transformações sociais decorrentes do fim da escravidão.

Sem título, 1961. Imagem: Divulgação CCBB.

Sua obra, portanto, começa a acontecer poucos anos depois da Lei Áurea, assinada pela princesa Isabel em 1888, num período em que se estabeleceram as bases da cultura nacional que ecoa em nós até os dias de hoje, muito influenciada pela matriz afro-brasileira. O que se vê em Heitor dos Prazeres é meu nome são trabalhos do artista no campo visual, musical, do samba e da moda. Desde cedo, Heitor demonstrou um talento natural para a arte. Sua transgressão remonta ao momento em que as elites do Rio de Janeiro e do Brasil estavam voltadas para os valores do branco europeu, da matriz colonialista, pois o artista, em sentido oposto, reproduzia em suas obras o que via e experimentava nas vivências como homem negro, sem se importar com o status quo do que era tido como “bom gosto”. Ou seja, seus temas eram os fluxos migratórios de africanos e seus descendentes, a mudança do campo para a cidade, a religiosidade, a repressão policial, a capoeira, o samba, a afetividade.

Como explica Raquel Barreto, curadora da Heitor dos Prazeres é meu nome junto com Haroldo Costa e Pablo León de La Barra, a frase que dá nome à exposição vem como autoafirmação que sempre existiu por parte do Heitor, ainda que o devido reconhecimento tenha demorado a acontecer.

“É uma citação que encontramos no documentário do [Antonio Carlos] Fontoura, feito entre 1965 e 1966. É lá, nos primeiros minutos, que ele fala a frase, e ela se relacionava com o que nós estávamos propondo na exposição, que era afirmar o lugar do Heitor dos Prazeres na história da arte brasileira, afirmar a singularidade dele. Então, a frase casou com esse desejo nosso.

O Heitor, tanto na música como nas artes visuais, se anuncia de várias formas. Tem um samba conhecido dele que marca essa característica, em que ele fala ‘eu sou quem dá as ordens pra escola de samba sair’. Em muitas pinturas ele aparece, né? Ele se coloca lá como pintor, o personagem do pintor aparece com ele se identificando a partir do signo da boina, do jaleco, daquilo que associamos à figura dum pintor. Esse lugar afirmativo e de sujeito a gente encontra nas músicas do Heitor, na própria fala do Heitor e na pintura. Foi isso que a gente procurou ressaltar com o título da exposição.”

Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.

Caboclo Índio, 1942. Imagem: Divulgação CCBB.

Como sambista, desempenhou papel fundamental na criação de blocos e ranchos e na fundação das primeiras escolas de samba do Rio de Janeiro: Mangueira, Portela e Deixa Falar (que mais tarde ganhou o nome de Estácio de Sá). Frequentador da casa de Tia Ciata, compôs com Noel Rosa a famosa canção Pierrô Apaixonado e muitas outras de autoria própria, e conviveu com símbolos do calibre de Cartola, Paulo da Portela e Pixinguinha.

Essa produção em diversas frentes, aliás, levanta um grande desafio para quem for organizar sua produção em uma exposição. Como escolher esse ou não aquele? Por que dar mais enfoque a uma ou outra produção? Talvez seja o que, popularmente, chamamos de “problema bom”, o que de maneira alguma o deixa mais simples de ser resolvido.

“A narrativa que foi construída partiu do próprio trabalho do artista. Observando a produção dele desde o final da década de trinta até 1966 foi possível perceber algumas mudanças na forma como ele abordava determinadas temáticas, a forma como ele pintava no início da carreira, o uso de uma determinada paleta de cores, a proporção dentro da pintura e como ele foi diversificando, definindo, atualizando a proposição dele conceitual e também os modos de fazer a pintura. Ao mesmo tempo, a gente encontrou aqui determinadas temáticas que acompanharam quase toda a trajetória do Heitor. Foi um exercício de organizar tematicamente, não cronologicamente, o trabalho do Heitor a partir de uma narrativa que ressaltasse o artista. 

Então, jogar luz sobre a consciência estética era importante. O Heitor sempre teve muita consciência estética na produção artística dele — ao contrário de como a crítica tradicional de arte brasileira definiu o trabalho dele, sempre de forma muito restrita, diminuindo a importância e a consciência dele. Isso era um ponto muito importante, evidenciar como o Heitor era muito consciente dos processos dele e como a pintura dele tratava de temas muito importantes para sociedade brasileira, especialmente para população negra. Mas vai bem além, né? Ele é um artista que pinta momentos que retrata momentos importantes da história do país, é possível acompanhar isso nas pinturas dele.”

Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.

Arlequim, sem data. Imagem: Divulgação CCBB.

É seguro dizer que o trabalho do Heitor tanto reflete o período pós-abolição quanto propõe imaginários novos, visualiza paisagens ainda não vistas, imagina realidades ainda em formação e retrata cores de vibração sem precedentes. Sua produção, portanto, como diz Raquel, vai bem além de algo restrito à população negra, muito embora ele tenha sido um homem negro que esteve ligados a momentos fundamentais da construção de uma identidade negra entre as décadas de 30 e 60. A começar pela cidade em que morou e agitou: Heitor foi capaz de participar de movimentos fundamentais na elaboração de quem é a pessoa carioca, algo que segue reverberando até hoje. Foi um pintor do Rio de Janeiro, retratando paisagens tanto urbanas como rurais, além de ser uma das primeiras figuras públicas brasileiras a exaltar religiões de matriz africana. Se pensarmos que, à época, o Rio era a capital da República, então expande-se ainda mais o impacto de Heitor dos Prazeres: nele e em toda a sua vasta produção cabia um Brasil inteiro.

Ingressou na pintura já consagrado na carreira musical e no samba, mas fez questão de também reivindicar sua consagração nesse campo produzindo um corpo de trabalho de primeira qualidade e participando de mostras e exposições de relevância nacional e internacional. Em 1951, recebeu prêmio na I Bienal de Arte de São Paulo na categoria pintura nacional. Em 1953, participou com obras em sala especial da II Bienal de São Paulo. Em 1961, expôs no Museu de Arte Moderna do Rio (MAM-RJ). Em 1966, em seu último ano de vida, participou do I Festival de Artes Negras em Dakar, no Senegal. 
A relevância, e a transgressão, de sua obra é tamanha que, por instigar com inovação e ânimo o protagonismo negro na sociedade brasileira — lê-se: aspirar liberdade e igualdade em uma sociedade nada liberta e igual —, o artista foi cassado pelo Ato Institucional n.º1, de 1964. Pinturas, canções, partituras, projetos, desenhos, discos e indumentárias marcam a trajetória marcada pelo prazer de dar materialidade à inquietação criativa e sua relação com diferentes esferas da produção cultural. Tudo isso está presente em “Heitor dos Prazeres é meu nome”, mas claro que o que vemos na exposição acaba sendo um recorte, por mais amplo e completo que seja.

“Curadoria sempre é a escolha de uma possibilidade entre inúmeras possibilidades e a forma que nós pensamos essa curadoria era uma forma de contar uma história e, sobretudo, de apresentar Heitor dos Prazeres. Apresentar o Heitor dos Prazeres artista visual para as novas gerações. Então, a ideia era que o conjunto da produção dele pudesse ser vista, apreciada e contemplada na narrativa que nós propomos a partir do caminho que nós encontramos na própria pintura do Heitor. Essa é uma exposição que privilegiou as artes visuais, mas ela poderia ter sido muito diferente se a exposição privilegiasse, por exemplo, a música. Ou privilegiasse a história do Carnaval, uma história em que o Heitor foi um personagem de muitas inserções importantes. A escolha pelas artes visuais, então, construiu um tipo de narrativa. É uma escolha.

Se nós escolhêssemos falar ou narrar outras histórias do Heitor, como sua relevância para a moda no Brasil, seria uma exposição completamente diferente, igualmente interessante. Essa transposição dele era fascinante. Falaríamos sobre o desconhecido envolvimento que o Heitor teve na definição da moda brasileira na década de 1960, sobre como ele foi convidado em algumas situações para propor estampas, como ele constrói o figurino no balé do quarto centenário, como ele produzia as roupas das pastoras que cantavam com ele, como a moda teve sempre muito presente no Heitor dos Prazeres. Se essa exposição fosse uma exposição enfocando o artista da moda, ela seria uma outra narrativa. Então, nós priorizamos as artes visuais e envolvemos essas outras práticas artísticas mais como um diálogo.”

Raquel Barreto, curadora da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”.

Sala Azul da exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome”, no CCBB do RJ. Imagem: Divulgação CCBB

Seu legado continua vivo nas ruas do Rio de Janeiro, nas festas de carnaval e nas manifestações culturais que celebram a diversidade e a história do Brasil. Heitor dos Prazeres é uma figura que merece ser lembrada e valorizada como um dos grandes talentos que enriqueceram a cultura brasileira ao longo do século XX. Sua trajetória artística e sua contribuição para a representação da realidade pós-escravagista da população negra são uma inspiração para artistas contemporâneos e um lembrete da riqueza cultural e da resiliência do povo brasileiro.

Ergam as taças para esse grande personagem de nossa, e de outras, culturas. Heitor dos Prazeres — esse é o nome dele.


*A exposição “Heitor dos Prazeres é meu nome” está no Centro Cultural Banco do Brasil do Rio de Janeiro, de 28 de junho a 18 de setembro de 2023.