35ª Bienal de São Paulo: a força dos coletivos no mundo da arte
A Bienal de São Paulo de 2023 acontece entre os dias 6 setembro e 10 dezembro, prometendo causar um impacto verdadeiro na cena artística. Ao lidar com assuntos urgentes por meio da expressão artística — e incluindo a presença de coletivos diversos —, o tema-mor do evento é provocativo e esperançoso: Coreografias do Impossível. Sob a curadoria de Diane Lima, Grada Kilomba, Hélio Menezes e Manuel Borja-Villel, a Bienal deste ano se anuncia como uma celebração da diversidade e da representatividade, ampliando o diálogo local e internacional sobre questões fundamentais que vêm ganhando cada vez mais atenção na sociedade, embora remontem a épocas passadas.
O tema escolhido vocifera ousadia e reflexão ao abraçar a ideia de estudar e desafiar o impossível em suas mais variadas formas e contextos. Há muitos mundos inviabilizados para pessoas negras, para pessoas trans, para povos originários, para tantas pessoas em condições menos privilegiadas, e as tais coreografias podem ser vistas tanto como o maquinário social que fabrica impossibilidades quanto como os passos transgressores que contestam toda e qualquer vontade alheia de encurtamento de promessas. A impossibilidade da vida em liberdade plena, as desigualdades sociais e as violências totais são algumas das pautas tratadas pelas obras expostas. Além de abordagens que eventualmente tratem do tema como estudos psicossociais menos ou mais metafóricos, o mote permite que os participantes transcendam a noção linear e ocidental do tempo progressivo, convidando o público a uma jornada poética e crítica por entre as inúmeras manifestações artísticas.
Nesse contexto, a presença significativa de coletivos na 35ª Bienal de São Paulo — que chega a dezenas dentre os 120 participantes — enxerga e valoriza a importância da produção artística colaborativa. Se a diversidade e a inclusão são ideias que estão intrinsecamente ligadas com tema principal, nada como um punhado de coletivos para simbolizar e fazer valer a abrangência de perspectivas, advindas das mais distintas vivências. Grupos de artistas que se unem em torno de algo em comum, compartilhando ideias, processos criativos e recursos têm o poder de criar um universo colaborativo que, em si, é uma demonstração de fibra, de partida sendo uma espécie de levante contra muitas narrativas normativas excludentes tomadas como o padrão a ser seguido. Eles proporcionam um ambiente de cooperação e troca, onde as habilidades individuais de cada membro se somam para criar obras multifacetadas. A formação desses coletivos pode ocorrer a partir de afinidades temáticas, interesses compartilhados, identidades culturais ou de questões sociais que desejam abordar por meio de suas obras.
Há muitos exemplos de coletivos nacionais interessantes, cujo trabalho é essencial para se pensar em amanhãs mais acolhedores, que estarão presentes na Bienal: o MAHKU (Movimento dos Artistas Huni Kuin) é um dos principais agentes no cenário da arte indígena contemporânea brasileira; o Sauna Lésbica é um projeto coletivo que busca celebrar corpos dissidentes; o Zumví é um coletivo de fotógrados negros com objetivo de fazer imagens da cultura afro-brasileira; e o Cozinha Ocupação 9 de Julho é um projeto de cozinha coletiva em um prédio ocupado pelo MSTC – Movimento dos Sem Teto do Centro, em São Paulo.
E, dentre os participantes internacionais, o Archivo de la Memoria Trans (AMT) é um projeto colaborativo e independente gerenciado por travestis e pessoas trans da Argentina que reúne imagens e histórias sobre a história recente da comunidade trans no país. Enquanto que o The Living and the Dead Ensemble é um grupo de artistas, performers e poetas do Haiti, França e Reino Unido, produzindo textos, performances, filmes e instalações. O Grupo de Investigación en Arte y Política (GIAP), do México, realiza uma série de escritos, apresentações, exposições e atividades sobre estética e autonomia, interessando-se em investigar o valor das poéticas que chegam aos beirais dos movimentos sociais, especialmente os de raiz indígena.
É interessante constatar também, diante da lista de artistas que vão participar da Bienal, como a aceitação e reconhecimento dos coletivos artísticos mudou consideravelmente nos últimos tempos, refletindo uma transformação nas práticas curatoriais e no modo como o mundo da arte enxerga essas produções coletivas. Antes vistos de forma marginalizada ou, no mínimo, menos valorizada em comparação com artistas individuais, os coletivos passaram a ser reconhecidos como espaços fundamentais de resistência, inclusão e diversidade no cenário artístico atual. Sua atuação desafia as normas estabelecidas, impulsionando um movimento de descentralização do poder e democratização da arte.
A importância dos coletivos em eventos de larga escala como esse reside em sua capacidade de proporcionar uma pluralidade de olhares e abordagens para temas sensíveis, como as questões raciais, os desafios enfrentados pelas pessoas trans e as lutas dos povos originários. Cada coletivo contribui com suas perspectivas particulares, tornando a exposição um espaço dinâmico e enriquecedor, onde as obras se entrelaçam em um diálogo intenso.
O projeto espacial e expográfico desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão também se mostra fundamental para abrigar a diversidade e a multiplicidade de expressões artísticas presentes na Bienal. O espaço físico se torna uma plataforma inclusiva, que acolhe as obras e propicia ao público uma experiência imersiva e reflexiva diante das Coreografias do Impossível. Além de representar uma nova era para a instituição, a 35ª Bienal de São Paulo promete se tornar um legado duradouro na história da arte, inspirando gerações futuras e redefinindo os limites do que é possível na expressão artística. O evento oferece aos visitantes a oportunidade única de se moverem por entre narrativas que desafiam as impossibilidades do nosso tempo, incitando reflexões profundas e propondo novas perspectivas para o mundo contemporâneo.
Em suma, a 35ª Bienal de São Paulo se consolida como uma plataforma significativa para a convergência de artistas, ideias transformadoras e diálogos incisivos sobre as questões mais prementes do nosso tempo. Ao celebrar a presença significativa de coletivos, a Bienal celebra a multiplicidade de vozes que, unidas, dançam as Coreografias do Impossível, lançando luz sobre a necessidade de um mundo mais inclusivo, igualitário e sensível às diferenças.
Confira nossa conversa com o Coletivo Curatorial da 35ª Bienal de São Paulo:
Quais foram os caminhos que levaram à temática coreografias do impossível e como ela, assim abrangente, se conecta com as urgências do mundo contemporâneo?
Coletivo Curatorial — Habitamos um mundo no qual desafiar aquilo que parece ser impossível é uma tarefa cotidiana: noções de justiça, igualdade racial e de gênero, crises ambientais, desigualdades sociais, disputas políticas e direitos básicos, são um bom exemplo destas impossibilidades. A ideia de mover-se livremente nos espaços, é portanto, historicamente, uma das principais coreografias do impossível e são esses sistemas de controle que nos impedem de conhecer diferentes perspectivas capazes de criar diálogos e aproximações com aquilo que nos parece ser diferente. Através de modos diversos de expressão, a arte é espaço que fomenta estas novas ideias e modos de olhar, antecipando debates, estratégias e ampliando a nossa capacidade de ver e perceber o mundo.
As coreografias do impossível na 35ª Bienal de São Paulo foram moldadas através de um profundo olhar para as complexidades e contradições do mundo contemporâneo. Observamos as transformações sociais, políticas e culturais em curso e buscamos explorar as tensões entre o possível e o impossível, o visível e o invisível, o real e o imaginário. Esta abordagem nos permite abraçar as urgências do mundo atual, dando voz a uma ampla gama de questões e perspectivas que muitas vezes desafiam os olhares convencionais. De forma poética e ampliada, compreendemos a coreografia como um conjunto de movimentos que exacerbam os limites normativos e estabelecidos, que considera nossas diferentes trajetórias, formações, áreas de atuação e que, sobretudo, buscou criar estratégias que nos permitissem encarar os desafios institucionais e curatoriais inerentes a um projeto desta envergadura, gerando continuamente suas próprias relações, tempos e espaços.
Mas também partindo do interesse em compreender como o conceito de coreografia tem sido ampliado, por meio de sua capacidade de incorporar, refletir e questionar o contexto social em que vivemos. O impossível, por sua vez, refere-se às realidades políticas, legais, econômicas e sociais nas quais essas práticas artísticas e sociais da 35ª Bienal estão inseridas, mas também à forma como essas práticas encontram alternativas para contornar os efeitos desses mesmos contextos.
Falando em abrangência, é interessante de se pensar temas que norteiam mas que, de maneira alguma, definem. Talvez seja essa a magia: paradoxalmente, a partir do que é impossível, abrir muitas possibilidades. Vocês acreditam nisso? Existiam outras opções que seguiam lógica similar?
CL — Ao escolher o “impossível” como ponto de partida, abrimos um espectro de possibilidades que transcende limitações predefinidas. Essa escolha permite que artistas e coletivos explorem territórios inexplorados da criatividade, liberando-se das restrições tradicionais. Quando falamos em “impossível” e coreografias do impossível, estamos nos referindo a políticas do movimento e movimentos políticos que conversam com produções artísticas. Nos interessa pensar como as formas expressivas e estéticas desses artistas são impactadas e transformadas pelas próprias impossibilidades do mundo em que vivemos. Neste sentido, um dos principais desafios passa por pensar uma política e uma poética de exibição que mantenha a integridade destes contextos impossíveis
Em um evento de grande escala como esse, de que maneira se dá o processo de seleção dos participantes? Estamos falando de centenas. Como garantir que os participantes representem de fato uma variedade de questões e perspectivas dentro do tema proposto, evitando repetições?
CL — Nosso objetivo foi criar uma edição livre de categorias e estruturas limitadoras. Nos reunimos para criar um grupo horizontal, sem a hierarquia de um curador-chefe ou a homogeneidade de um coletivo, dissolvendo, assim, as estruturas hierárquicas e promovendo contribuições igualitárias de todos os membros. Incorporamos essa fluidez em nosso processo de seleção de artistas, buscando uma multiplicidade de participantes. Nossa lista inclui um amplo espectro de formas artísticas e vozes de todo o mundo. Acreditamos que os lugares de onde partimos informam a nossa produção artística e o modo como nos expressamos no mundo, características que compõem as coreografias do impossível e o conjunto de obras reunidas na exposição.
Compreendemos que a arte é um elemento fundamental para a saúde das nossas relações, por ser um espaço que desafia aquilo que sabemos, as regras e as estruturas tradicionalmente restritivas que historicamente resultaram em diversas formas de opressão. As coreografias do impossível nos ajudam portanto a perceber, que todos nós, em maior ou menor grau, diariamente encontramos estratégias que desafiam o impossível, e são elas as ferramentas que encontraremos nas obras dos artistas, para fazer possível o impossível.
Há um número expressivo de coletivos entre os participantes. Isso foi uma proposta pré-estabelecida ou foi uma coincidência, com a temática Coreografias do Impossível levando inevitavelmente a essa característica de seleção?
CL — A presença significativa de coletivos entre os participantes não foi uma proposta premeditada, mas sim um resultado natural da pesquisa curatorial. A tônica temática das coreografias do impossível considerou os coletivos como resposta às complexas interações entre os indivíduos e as comunidades em um mundo em constante mudança.
Vocês acreditam que exista alguma diferença na forma com que coletivos e artistas individuais são recebidos?
CL — Coletivos e artistas individuais são igualmente valorizados em nossa abordagem curatorial. Reconhecemos que todos têm papéis únicos na expressão artística e na abordagem das questões e urgências contemporâneas. A recepção varia de acordo com a singularidade de cada contribuição para o diálogo proposto pela Bienal.
De que maneira o projeto espacial e expográfico da mostra, desenvolvido pelo escritório de arquitetura Vão, foi pensado para acomodar as expressões artísticas de diferentes coletivos?
CL — O projeto espacial e expográfico meticulosamente criado pelo escritório de arquitetura Vão foi concebido para acomodar a multiplicidade de expressões dos coletivos e artistas. A arquitetura foi desenhada para espelhar a dinâmica das coreografias do impossível, criando espaços de encontro e interação específicos para cada obra ou participante. A jornada dos visitantes é marcada por momentos de fluidez e retração, bem como de contração e expansão. O espaço se torna uma coreografia em si, determinando o ritmo no qual os visitantes interagem com ele, influenciando a velocidade e pausas, colocando os visitantes como protagonistas na relação construída com o ambiente.
Qual é a mensagem por trás de abordar questões como diásporas, povos originários e desigualdades por meio da expressão artística?
CL — A diáspora enquanto contexto e ancestralidade, enquanto cosmologia e ferramenta, é fundamental por permear a história e a cultura de diferentes regiões do mundo. Ao abordá-la na Bienal de São Paulo, afirmamos que estas suas relações são incontornáveis ao debate contemporâneo, para pensarmos como suas práticas artísticas e sociais criam estratégias para existir em contextos impossíveis.
É possível redefinir os limites do que é possível na expressão artística, como diz José Olympio da Veiga Pereira, presidente da Fundação Bienal de São Paulo?
CL — A arte tem a capacidade de questionar as estruturas estabelecidas ao produzir mais perguntas do que respostas. É esta dinâmica de aprendizado coletivo que nos interessa. A arte tem o poder de expandir horizontes, desafiar convenções e inspirar a imaginação. Através da Bienal, esperamos proporcionar um ambiente onde artistas e público possam explorar juntos os territórios inexplorados da criatividade e da reflexão crítica.