As dinâmicas da sociedade capitalista nos trouxeram para um lugar de grande individualismo e distanciamento do ser. O valor de nossas existências tem sido diretamente relacionado ao quanto podemos produzir e consumir.
Em paralelo, os reflexos da ação humana sobre o planeta nos impõem que recalculemos a rota. É dado que o modelo de humanidade projetado pelo paradigma colonial falhou e, caso não construamos novas possibilidades, caminhamos a passos largos para o fim.
Abdias do Nascimento definiu Sankofa como o ato de retornar ao passado, ressignificar o presente para construir o futuro. Partindo desta definição, entendemos a necessidade de revisitar ideias e trajetórias ancestrais para criar um novo amanhã.
Estas ideias ancestrais não ficaram no passado. Elas seguem existindo na vivência cotidiana de muitas comunidades, inclusive, muitas lideranças destas comunidades têm lutado para se fazer ouvir, como verdadeiros porta-vozes de uma terra que grita por socorro.
A fim de representar estas vozes, pretendo neste texto dialogar com as contribuições de Ailton Krenak e Antônio Bispo dos Santos, o mestre Nêgo Bispo.
“Os rios, esses seres que sempre habitaram os mundos em diferentes formas, são quem me sugerem que, se há futuro a ser cogitado, esse futuro é ancestral, porque já estava aqui.”
— Ailton Krenak, Futuro Ancestral
Ailton Krenak é uma das grandes lideranças na luta pelo direito dos povos indígenas, além de ser ambientalista e doutor honoris causa pela Universidade de Juiz de Fora.
Uma característica marcante de sua atuação é o diálogo com a sociedade não indígena. Um forte exemplo desse poder de comunicação foram as lives realizadas por ele durante o isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19.
Em seu livro intitulado Futuro Ancestral, Krenak nos convida a questionar as práxis eurocêntricas que estruturam a nossa sociedade desde o período colonial. Em um dos textos que compõem o livro, ele diz:
“Para começar, o futuro não existe – nós o imaginamos. Dizer que alguma coisa vai acontecer no futuro não existe nada de nós, pois ele é uma ilusão.”
Em contrapartida, o passado é ancestral, pois já esteve aqui. Neste ponto Krenak propõe o resgate dos valores dos nossos antepassados, valores que têm sido paulatinamente abandonados em prol da incerteza que é o futuro. Grande parte dessa incerteza se configura pela relação exploratória que o sistema capitalista estabelece com a natureza.
Estamos diante de um modelo de existência em declínio. Já nos ronda a dúvida sobre o que será da humanidade diante das crises climáticas, sanitárias e sociais que se impõem como resposta à lógica de consumo pautada no esgotamento, até que se use a última gota de água, petróleo e suor visando o máximo lucro. Krenak sugere que a resposta está no hoje, mais especificamente, nas crianças. É essa a geração que questiona os padrões e interliga passado e futuro bebendo da fonte das contribuições dos que vieram antes para lutar pela chance de um porvir para si e para sua descendência.
Krenak nos diz que o futuro é incerto, mas nos diz também que é nesse futuro que moram nossos sonhos, que são também os sonhos de nossos ancestrais.
“Um rio não deixa de ser um rio porque conflui com outro. Ao contrário: ele passa a ser ele mesmo e outros rios, ele se fortalece.”
— Antônio Bispo dos Santos, Contracolonização e confluência
Antônio Bispo dos Santos, conhecido também como Nêgo Bispo, é um relator de pensamentos e saberes e líder quilombola que constrói sua trajetória de vida e sua produção intelectual a partir do modelo de organização dos quilombos.
Nas comunidades afro-pindorâmicas, como o autor nomeia os povos de origem africana e indígena, um dos principais valores a ser considerado é a oralidade. Nêgo Bispo se coloca como um tradutor da oralidade para a escrita e da escrita para a oralidade, ampliando assim as possibilidades de articulação e troca de conhecimentos quilombolas com o ambiente acadêmico.
Em 2007, lança seu primeiro livro, Quilombos, modos e significados, reeditado em 2015 com novo título, Colonização, Quilombos: modos e significações. O principal conceito desenvolvido nesta obra é a ideia da contracolonização. Contracolonizar é se colocar em oposição aos moldes de existência euroreferenciados que empurram todos os biomas e espécies, inclusive a humana, para o caminho da extinção.
Ele diz:
“Quando completei dez anos, comecei a adestrar bois. Foi assim que aprendi que adestrar e colonizar são a mesma coisa. Tanto o adestrador quanto o colonizador começam por desterritorializar o ente atacado quebrando-lhe a identidade, tirando-o de sua cosmologia, distanciando-se de seus sagrados, impondo-lhe novos modos de vida e colocando-lhe outro nome. O processo de denominação é uma tentativa de apagamento de uma memória para que outra possa ser composta.“
Esse “adestramento” nos distanciou das tecnologias desenvolvidas por nossos antepassados. Desaprendemos o fazer orgânico para aprender o sintético.
Segundo Bispo, constituir com a terra uma relação pautada na biointeração pode ser um dos caminhos possíveis para o resgate destes saberes orgânicos que foram subalternizados. Se observarmos estas proposições com olhos atentos, perceberemos a sua validação através de práticas já estabelecidas e que funcionam há séculos em espaços como quilombos, aldeias e terreiros, exemplos de comunidades autossuficientes, colaborativas e voltadas para a produção de prosperidade, não de escassez, onde o que tem valor é ser, não obter.
A contracolonização pensada por Nêgo Bispo se dá também através do conceito de confluência. O autor costuma iniciar suas falas com a frase “somos começo, meio e começo”. Essa circularidade que se assemelha muito com a filosofia ubuntu, dos povos Bantu, estabelece uma existência coletiva onde se é com e a partir de quem veio antes e de quem ainda virá, ou como o mestre costuma dizer, geração avó, geração filha e geração neta. Estar em sintonia com as nossas raízes nos fortalece e impulsiona, como as águas de um rio, que em confluência com outro não deixa de ser ele mesmo, mas, através da troca, se engrandece e engrandece também os outros com os quais flui.
Plantar e cultivar sementes para colher bons frutos — a educação como base para a perpetuação dos saberes ancestrais
Entendemos a partir das ideias de Ailton Krenak e Nêgo Bispo que as nossas melhores chances de construir futuros possíveis para a humanidade estão em manter vivas as sementes ancestrais através das novas gerações.
É comum em muitas culturas africanas e indígenas que os mais novos se sentem com os mais velhos para aprender oralmente. Mas, como expandir o alcance destas trocas? A resposta pode estar na escola.
A grande virada nesse jogo envolve a construção de uma educação que se comprometa a romper com a narrativa dominante e que se abra para fomentar em nossas crianças uma consciência de coletividade, e esse entendimento só se torna possível ao apresentar para estas crianças cosmologias plurais.
Gostaria de referir aqui dois exemplos de instituições de ensino que têm se comprometido a cultivar saberes ancestrais em suas crianças. São elas a Escolinha Maria Felipa e a Escola Dandara de Palmares.
A Escola Afro-brasileira Maria Felipa funciona no Bairro do Rio Vermelho, na cidade de Salvador, Bahia. A instituição é privada, logo, não recebe nenhum apoio do Estado para manter suas atividades.
O projeto desta escola foi idealizado em 2017 por jovens negros educadores, que visavam para seus filhos um espaço educacional centrado nos valores civilizatórios africanos e ameríndios. No entendimento destes educadores, é preciso retornar às origens ancestrais para construir novas formas de existência possíveis na diáspora.
A Escolinha Maria Felipa reforça a importância da valorização de referências negras. Os idealizadores da instituição avocam para si esse princípio já ao nomear a instituição e dar visibilidade a esta grande mulher negra, estrategista, quilombola que foi silenciada pela história dita oficial. Para além de Maria Felipa, o projeto político-pedagógico da escola apresenta aos seus alunos referências diversas de lideranças negras e indígenas, que muito provavelmente eles não acessariam em instituições não comprometidas com uma educação decolonial.
Já a Escola Comunitária Quilombista Dandara de Palmares está localizada no Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro. É uma organização autônoma gerida por moradores da favela que não recebe nenhum auxílio governamental ou privado. A escola surgiu com o objetivo de oferecer às crianças de forma lúdica ensinamentos da sua ancestralidade, territorialidade e cultura. A ideia-base é que as crianças desenvolvam seu potencial humano, trazendo a devolutiva para sua comunidade.
Uma das representações do adinkra, Sankofa, é o pássaro que se volta para trás e busca algo para trazer consigo para este tempo e espaço. Pensar ideias ancestrais é fazer o movimento de resgate. Quais são as práticas que nossos avós nos ensinaram e que podem se perder se não ensinarmos aos nossos filhos? A forma como nossos antepassados lidavam com o cultivo, com os animais, com as folhas, com a saúde através de tecnologias de cura seculares. Trago estas provocações para que cada um de nós exerça este movimento de retorno. Olhe para seu mais velho, é nele que mora o futuro.