Fotos de Ana Pigosso, Bruna Bento, Cris Cintra e Fernanda Pompermayer
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Amarello Visita: Anália Moraes e Fernanda Pompermayer

Na Rocha, ateliê em Perdizes, São Paulo, a matéria se transfigura em formas e texturas inusitadas sob a visão criativa de Fernanda Pompermayer, que usa a cerâmica para expressar uma linguagem em que arte e ciência se entrelaçam. Nesse espaço, a irregularidade é tida como primordial, abrindo caminho para o inesperado que foge à perfeição. Alejandro Jodorowsky já dizia que muita perfeição é um erro e, se estamos acostumados com padrões de beleza cravados em pedra, muitos dos quais prezam pela simetria antiquada e por apresentações indefectíveis, nada como sermos lembrados de que, na verdade (e ainda bem), esse espectro do que é capaz de nos encantar é muito mais amplo.

Enquanto isso, no litoral norte do estado, Anália Moraes cria peças que conectam hábitos e contemplações, esculturas e objetos, abstrações e concretudes. Inspirada pelos sistemas naturais, Anália estuda com atenção os processos da natureza, traduzindo-os em esculturas que remetem a estruturas celulares e transformações biológicas. Suas obras, quase como fósseis de um outro tempo, refletem a contínua regeneração e adaptação da vida, tensionando a ideia de finitude ao mostrar como o fim se transforma em um novo começo. E, como o fim que se amalgama ao início, uma silhueta se mistura ao âmago.

Anália Moraes (esq.) e Fernanda Pompermayer (dir.)

Quando artistas assim se juntam, sendo, ao mesmo tempo, tão parecidas e também tão levadas pelo compasso do próprio diapasão, qual é o resultado?

Fernanda, nascida em Curitiba, traz na bagagem uma larga experiência como fotógrafa de moda e designer gráfica. No entanto, foi na cerâmica que encontrou a liberdade criativa que seu espírito buscava. Como espelhos dos processos geológicos da Terra, suas peças evocam os tremores da erosão e das transformações tectônicas, o que permite que a imperfeição guie seu processo. No seu ateliê, cada criação é fruto de uma abordagem experimental que rejeita a padronização em favor de um fluxo orgânico.

Utilizando a técnica japonesa Nerikomi, Fernanda mistura pigmentos diretamente na argila, criando padrões que combinam o planejamento ao caos, formando uma paz turbulenta. A ênfase na irregularidade dá ao trabalho um aspecto pessoal e quase íntimo, que, com a argila assumindo formas em constante transformação e refletindo a influência dos elementos naturais, é tão revelador quanto instigante. As cores, misturadas de forma instintiva, resultam em tons pastel que nunca se repetem, fazendo de cada peça uma obra irreproduzível.

Anália — que reconhece o valor cultural da cidade grande, mas que prefere o respiro profundo da vida à beira-mar — utiliza cerâmica, vidro e minerais para criar uma espécie de “arqueologia ficcional”, explorando a memória, o tempo e a resistência dos materiais. Seus trabalhos, assim como os de Fernanda, revelam as reações químicas e as imperfeições desses materiais, desafiando o conceito de um processo “natural” e trazendo à tona as transformações inerentes ao processo artístico.

Equilibrando-se entre o utilitário e o artístico, Anália permite que a forma de seus objetos vá além da função, seja a contemplativa ou a prática. Sua mudança recente para um ambiente mais silencioso e natural intensificou sua conexão com a natureza, oferecendo uma nova perspectiva aos seus exercícios criativos. Para um trabalho que já continha muito do mundo natural, fugir do pulsar frenético de uma megalópole foi necessário para estreitar ainda mais a sua relação com o verdadeiro ecossistema da vida.

Da parceria entre as duas artistas, nasce a cadeira Docinho, uma peça-filha que reflete a união de suas abordagens criativas. Concebida com uma base garimpada e deformada, a cadeira incorpora celulose reciclada e cerâmicas inspiradas na técnica do terrazzo, o que destaca a importância da adaptação e inovação na materialidade criada por Fernanda e Anália. A celulose usada na cadeira é proveniente do projeto Flow Sustentável, liderado por Tatiana Araújo, que transforma bitucas de cigarro em celulose reciclada e promove, assim, a circularidade da matéria e a redução do impacto ambiental.

Na Docinho, portanto, há a culminação de duas trajetórias que se conversam e se complementam. Técnicas e ideais juntam forças para abrir valas ainda mais amplas de experimentação e comunhão de tudo aquilo que habita o coração e se manifesta pelas mãos.

Fernanda Pompermayer e Anália Moraes são ótimos exemplos da rica tapeçaria da criação brasileira contemporânea. Juntas, suas obras nos desafiam a reconsiderar o valor da imperfeição e a beleza do inesperado. Ao explorar essas interseções, elas abrem novas perspectivas sobre como a arte pode dialogar com o mundo natural e científico.

A escolha dos materiais e a experimentação com diferentes técnicas influenciam o resultado final das suas peças. Como isso acontece?
Anália Moraes: Exploro as propriedades elementares dos materiais — como a cerâmica, o vidro e os minerais — para criar uma arqueologia ficcional, e as obras são um convite à reflexão sobre o que seria um processo “natural”. Através da experimentação com diferentes materiais e técnicas, busco revelar as reações químicas ocultas e as fragilidades dessas interações. A cerâmica, como material ancestral, também me permite explorar noções de memória, tempo e resistência.

Fernanda Pompermayer: Sempre há uma surpresa no resultado final. Adoro o exercício de misturar e testar os limites do material, explorando o que funciona para o meu trabalho, sem me preocupar se vai “dar certo”, já que esse conceito é relativo. Gosto de trabalhar com bastante argila, de forma gestual, sem me importar se a peça vai quebrar. Se quebrar, aproveito os cacos e crio algo novo. Misturo corantes, faço diversas queimas de esmalte, adiciono vidro, óxidos, uso resina, espuma, taças que quebrei em casa, pedra, miçanga, um pouco de tudo. Essa mistura de técnicas faz com que meu trabalho cresça e se torne único — nunca consigo repetir a mesma peça. Essa experimentação constante é o que impulsiona o trabalho. Abrir o forno é sempre uma emoção, dá um frio na barriga. Ter que me desapegar de ideias e descobrir outras ao longo do processo me fascina todas as vezes.

Já que você mencionou diferentes técnicas, como as suas vivências com escultura, fotografia e design gráfico se refletem no processo de criação das suas cerâmicas?

FP: Minha formação é em design, e desde cedo exploro a colagem como um recurso. Acho fascinante juntar pedaços e texturas diferentes, criando algo totalmente inesperado e novo. Na fotografia, meu trabalho foca muito em cor, forma e objeto. Durante uma residência artística, comecei a fotografar objetos do meu dia a dia e criei a série Esculturas Invisíveis, na qual transformo e exploro composições com coisas do cotidiano. Essa de fotografar e compor com objetos despertou em mim o desejo de migrar do 2D para o 3D. Hoje, vejo muito dessas vontades que tinha quando mais nova se transformando em esculturas, misturando um pouco dessa visão de forma/cor/objeto/colagem. Eu encaro a Rocha como esse projeto experimental onde eu aplico tantas coisas, é uma simbiose de tudo que vi, vejo e sinto.

De que forma vocês equilibram a dualidade entre o utilitário e o puramente artístico em suas criações?
AM: A estética e a funcionalidade são igualmente interessantes para mim, por isso, gosto de navegar entre a escultura e o objeto, buscando esse encontro sem limitar a forma pelo seu fim, seja ele contemplativo ou utilitário. A argila, mesmo com as técnicas mais cuidadosas, carrega a memória de cada toque, de cada imperfeição do processo. As rachaduras que surgem durante a queima não são apenas falhas, mas testemunhas da transformação. Em paralelo, nossos objetos também são testemunhas, eles se desgastam com o tempo, acumulando as marcas dos nossos gestos.

FP: Nunca vi meu trabalho como utilitário. No início, tentei colocar flores e plantas nas peças ao fotografá-las, mas isso me incomodava. Hoje, entendo que as peças se bastam por si só, e não preciso buscar uma função para elas. Foi um processo muito importante deixar de tentar me ajustar à ideia de que tudo precisa ter uma função. Vindo do design, esse pensamento utilitário sempre esteve presente, mas agora deixo o processo fluir no ateliê. Estou cada vez mais focada na minha pesquisa, definindo as séries de trabalho, e entendendo o que se repete e o que realmente faz sentido.

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Especialmente na celeridade do mundo de hoje, qual é o desafio de lidar com a paciência necessária para trabalhar com materiais que demandam tempo?

FM: Olha, é realmente um desafio para mim, sou do tipo que quer mudar todos os móveis da casa às duas da manhã. Adoro começar uma tarefa e terminar ela, é um prazer. Com a cerâmica, tenho que esperar semanas ou até meses para ver tudo 100% pronto. Esse tempo me permite refletir, observar, testar e entender como cada trabalho se encaixa na minha produção. Às vezes, fico trabalhando meses na mesma peça, explorando tudo que posso sem pressa. No começo, eu era muito ansiosa e sofria, mas agora eu aprendi a aproveitar o processo e tomar o meu tempo.

AM: Sou porosa ao que me rodeia. Ver as arquiteturas da natureza todo dia me traz a nitidez necessária para dialogar com o mundo. Me sinto parte de algo maior, o que me permite viver o tempo de uma forma não linear e menos orientada pela lógica de produção constante. Morei 10 anos em São Paulo e, apesar de achar necessário os encontros culturais que [a cidade] fornece, não há silêncio. Me mudar foi uma decisão que impactou a logística do meu trabalho, a rotina e as relações, mas preciso estar fisicamente em contato com os temas que orientam meu trabalho e que reforçam a urgência de nos pensarmos parte da natureza para aprender com ela.

O processo de transformação das bitucas em celulose, aliás, envolve uma colaboração intensa com a comunidade de Ilhabela. Qual é a importância dessa parceria local para você, Anália, tanto em termos artísticos quanto sociais?
AM: Fui motivada pelos múltiplos esforços da Tatiana Araújo, fundadora do Flow Sustentável — que atua na área de compostagem, lixo zero e reciclagem de bitucas —, também moradora do litoral norte e que forneceu o material para usarmos. Transformar as bitucas em celulose reciclada, além de ser uma tecnologia que honra a circularidade da matéria, é um ato político. Ao transformar um material descartado em um objeto de design, celebramos a reutilização criativa através de uma iniciativa que reduz o impacto ambiental.

Como os conceitos de reutilização e transformação guiaram o design e o processo de criação da cadeira Docinho?
AM: Foram conceitos que guiaram todo o processo de criação e estão presentes tanto na base da cadeira, que foi garimpada e deformada, quanto na massa de celulose reciclada e nas cerâmicas que foram usadas com inspiração na técnica do terrazzo, a partir de peças que já não tinham uso e seriam descartadas.

FM: E a transformação foi até mais ampla, pois acredito que esse processo em que eu reutilizo os pedaços que eu tinha no ateliê ganhou força depois de criar a Docinho. Ultimamente, no ateliê, tenho desenvolvido a série Esculturas Pictóricas, onde, na maioria das vezes, utilizo esses fragmentos para criar novas esculturas.

Como vocês veem a relação entre o material reciclado e a cerâmica? Há paralelos na maneira como ambos os materiais são trabalhados?

AM: Com a cerâmica, gosto de pensá-la como um local de movimento. O que é cerâmica? É uma rocha fundida, manipulada, que existe exatamente como rochas formadas a partir da lava dos vulcões. O uso da celulose reciclada é uma solução sustentável, que também representa o poder de transformação dos materiais naturais, e que pode ser manipulado e esculpido, assim como o barro.

Vocês compartilham uma linguagem artística similar. Como essa sinergia se manifestou no desenvolvimento da Docinho? De que maneira essa peça reflete a união das suas duas abordagens criativas, que vêm de diferentes disciplinas, mas se encontram em um ponto comum?

FM: Convidar a Anália para colaborar neste projeto foi essencial. Há muito tempo queríamos trabalhar juntas e, além de amiga, sou fã do trabalho dela. Acho que há uma sinergia muito forte entre nossas pesquisas e estéticas, embora cada uma expresse isso de sua própria forma. O processo de criação da cadeira Docinho começou a partir dos materiais que queríamos explorar mais. A Anália me falou sobre essa massa de celulose reciclada que descobriu no ano passado e compartilhou sua vontade de trabalhar com mobiliário e ampliar a escala do trabalho. Com a argila, temos a limitação do tamanho do forno, o que restringe um pouco a escala das peças. Na época, eu tinha vários pedaços de cerâmica no ateliê e estava pensando no que fazer com eles. Ao juntar essa massa com os pedaços de cerâmica, criamos a Docinho.

AM: Docinho é o encontro da estética, mas também da importância da matéria como ponto de partida para as criações de ambas. É uma peça que convida à reflexão sobre a materialidade em constante transformação e adaptação.

Explorando novas fronteiras no mobiliário, como foi a transição do trabalho em cerâmica para o desenvolvimento de uma peça de mobiliário como a cadeira Docinho?

FM: Não senti muito essa transição. Foi super legal trabalhar com um material que não tem necessidade de ir ao forno, mas no fim foi um grande processo de colagem. O conceito de colagem/assemblagem/upcycling está sempre presente, acho que muito do que eu faço parte da colagem. E com a Docinho não foi diferente. Eu adoro ressignificar as coisas, e essa cadeira estava na minha casa esperando o seu momento. [risos]

AM: Tivemos uma abordagem experimental e aberta para a co-autoria do material no processo, e respeitar o tempo de cada fase foi essencial para atingir uma estrutura firme e durável. Inicialmente, pensamos em resinar a peça final, mas nos apaixonamos e decidimos manter aparente a textura da fibra natural da celulose reciclada, que nos lembrou uma lã, criando um contraste interessante com a cerâmica brilhante e rígida.

Quais são os próximos passos na expansão da expressão artística de vocês?

AM: Atualmente, estou animada com um novo projeto em andamento que aprofunda o diálogo entre natureza e tecnologia e, mesmo sendo fascinada pelo universo da cerâmica, continuo buscando soluções multidisciplinares para ampliar meu trabalho… É muito rico colaborar com um cientista da computação, por exemplo, um campo tão distante dos meus conhecimentos, mas que reforça a ideia de que diálogos diversos são cruciais para permitir novas expressões artísticas, descobertas e avanços.

FM: Para mim, estudar. Nesse momento, estou querendo aprender mais sobre arte, conhecer outros trabalhos, participar de grupos de estudo e, em breve, aplicar para residências artísticas… Acho que é importante. Esse ano tenho produzido um pouco menos e me dedicado mais à pesquisa, e sinto que, com isso, o trabalho mudou bastante. Estou animada para descobrir o que vem por aí!


A cadeira Docinho faz parte do projeto Eterno Design. Saiba mais aqui