Folhinhas, série de Manuela Costa Lima. A artista assina a capa da edição Amarello Família. Foto de Mario Grisolli.
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A família, voz de escuta

Temos o rosto velado, somos como uma personagem aos olhos dos outros. De quem poderemos saber profundamente, senão sobre nós próprios?

Lázaro, na Bíblia, é uma figura a cuja história temos pouco acesso, mas sabemos que é amigo de Jesus. Ele também que foi ressuscitado por Cristo, por lhe fazer muita falta. O que é curioso é que ele tenha ressuscitado antes de Jesus, Deus na terra, conforme a Bíblia. E que Cristo não tenha sido o único a reviver. A minha interpretação é que, ao ressuscitar Lázaro, essa metáfora pode simbolizar que também o ser humano tem direito à oportunidade de ter uma outra vida.

Intitularmos de amigos mais pessoas do que podemos contar nos dedos das nossas mãos é realmente estranho. Nossas confidentes, nossos conselheiros, o espelhamento de nós nos outros, elegê-los implica que haja a coincidência da troca entre duas pessoas, sejam elas muito parecidas ou extremamente distintas. Encontra-se na reciprocidade o conhecimento do outro. É também por isso que Lázaro ressuscita, talvez. Falamos de nutrir um amor.

Este é um estado de graça, mesmo que não seja definitivo, que podemos ter ou não ter em várias fases na vida. Na sua essência, é como os anjos, sem rosto e de corpo informe, como as entrelinhas das palavras inauditas, de valor incompreensível e igualmente indizível. Isto é o que me move como humano, o último lugar. Não é um troféu. Não tem verbo nem forma. Uma arte que não precisa de discurso.

É raso quando imagens dependem de palavras.

É fútil não entendermos no gesto dos outros o seu sentir.

Como furar uma ligação por uma falha de comunicação. Para evitar isso é necessária a disponibilidade de duas partes.

Em que se resolve e como, este texto?

Na palavra “escuta”.

Escutar para existir amor; escutar os outros e sermos amigos; a família enquanto pessoa que nos escuta.

A família é esse lugar confortável, de cores quentes, com uma aragem de voz quente; uma imagem de um padre que se senta num banco junto a uma lareira comunitária e sente que toda a cidade fria é aquecida ali, comovendo-se. Talvez tenha escutado a voz de Deus.

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Na primeira vinda a São Paulo, encontrei uma mulher curiosa, a meu ver. Interessam-me pessoas que fogem de um padrão por não corresponderem a uma “categorização”. Ela também já viveu várias vidas. Estudou arquitetura e acabou sendo artista. É uma pessoa invulgar.

A Manuela, conhecida como Manu Costa Lima no contexto do seu trabalho artístico, tem algo que muita gente não encontrou ou nunca sentiu: fé. A diferença é que ela incorpora isso no seu trabalho. Posso falar de fé, mesmo ela sendo uma coisa pessoal, para poder escrever sobre o que a Manu transporta nesse acreditar.

A fé é uma escuta, também. O trabalho que a artista realiza, o ato de fazer, não se vê, como a fé, pois ela é uma intermediária que dá à luz as imagens. Fazendo, contudo, escolhas, sim. Num processo de omitir e revelar, encontro o que há de mais honesto no seu trabalho. E o painel Lázaro torna visível o que desconhecemos. Foi preciso ver para acreditar. As palavras que deixa da Bíblia são a segunda oportunidade de vida e leitura, numa imagem que, a priori, é modernista, mas com essas informações deixa de ser. Esses sacrários, as colagens lacradas, os selos de espírito, encontramo-nos com eles (onde?) senão na intimidade de escutarmos o seu silêncio.

Manu Costa Lima não é uma artista “utilitária”, pois isso sequer existe. Ela faz objetos sem querer ser a protagonista nessas esculturas, querendo manter a sua fé viva, como algo prioritário. Obrigado, Manu, pela partilha dos seus ícones, sem representatividade. O observador, se lhes tiver acesso, que faça a sua leitura. Mesmo que seja como se estivesse a ler a Bíblia pela primeira vez, numa segunda vida.