Dopamina: estamos presos em um ciclo de excessos?
“Os números crescentes, a grande variedade e o imenso potencial de estímulos altamente compensatórios são atordoantes. O smartphone é a agulha hipodérmica dos tempos modernos, fornecendo incessantemente dopamina digital para uma geração plugada. Se você ainda não descobriu sua droga preferida, ela logo estará em um site perto de você.”
— Dra. Anna Lembke
Neurotransmissor que atua no sistema nervoso central, a dopamina se tornou o centro das atenções na celeuma atual sobre os vícios da sociedade moderna. O conceito de que nosso desejo por um rápido “pico de dopamina” é a razão pela qual não resistimos e nos permitimos consumir um sem-fim de ultraprocessados ou passar horas nas redes sociais tem gerado um certo pânico — e há quem diga que ele é desproporcional. Devia mesmo a dopamina estar sob os holofotes dessa discussão?
O que não se nega é: antes, não há muito tempo, vivíamos um balanço maior entre o estímulo e o não-estímulo, entre o prazer e a espera pelo prazer. A transição de um mundo que temia pela escassez para um de abundância esmagadora de fato nos expõe com facilidade a comportamentos compulsivos.
No best-seller Nação Dopamina, lançado nos EUA em 2021 e que chegou ao Brasil no ano seguinte, a psiquiatra Anna Lembke, de Stanford, explora como o excesso de estímulos prazerosos nos afeta, especialmente em um mundo de gratificação instantânea. Em uma narrativa que mescla suas experiências pessoais e relatos de pacientes, o livro reflete sobre o delicado equilíbrio entre prazer e vício. Esses pacientes, que ganham vida nas páginas, acabam sendo personagens com quem os leitores, ao menos em algum nível, se identificam. É o caso de Jacob, que construiu uma máquina de masturbação para lidar com seu vício em sexo, ou de Delilah, uma adolescente que só conseguia começar o dia após fumar maconha.
“Talvez você sinta repulsa pela máquina de masturbação de Jacob. Talvez você a considere uma espécie de perversão extrema, além da experiência cotidiana, com pouca ou nenhuma relevância para você e a sua vida. Mas se fizermos isso, você e eu, perderemos a oportunidade de apreciar algo crucial sobre a maneira como vivemos agora. De certa maneira, estamos todos envolvidos em nossas próprias máquinas masturbatórias.”
— Dra. Anna Lembke
Essas histórias, embora pareçam extremas e distantes da nossa realidade, ilustram de forma clara um fenômeno que afeta muitos de nós: a dificuldade em lidar com o desconforto, qualquer que seja, sem buscar alívio imediato.
“A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação.”
Compreender o papel da dopamina em nossos cérebros é fundamental para entender o vício e não confundi-la com a serotonina, outro neurotransmissor, igualmente importante. Enquanto a serotonina tem um impacto direto na regulação do humor, promovendo uma sensação de bem-estar e influenciando o sono, apetite, desejo sexual e memória, a dopamina nos impulsiona a buscar aquilo que acreditamos nos trazer prazer, alimentando expectativa e motivação. A deficiência de serotonina está frequentemente ligada à ansiedade e depressão, enquanto a falta de dopamina pode afetar nossa motivação. Quando alcançamos o que desejamos, os níveis de dopamina caem, nos lançando em um ciclo de busca contínua.
Esse mecanismo de recompensa, que, não custa lembrar, foi crucial para a sobrevivência e evolução da espécie humana, hoje pode se tornar prejudicial, à medida que vivemos cercados de estímulos digitais e de consumo fácil. Sendo tudo tão acessível, muitas vezes a um toque do celular, a toda hora vamos lançar mão disso ou daquilo.
Contudo, especialistas em dopamina afirmam que muitas dessas preocupações são exageradas. Desmistificar os maiores equívocos sobre esse neurotransmissor é livrá-lo do estigma de vilão — e esse é um passo essencial para entender como lidar com a avalanche de estímulos que enfrentamos diariamente.
A dopamina, por si só, não é uma força boa ou má. As primeiras pesquisas, realizadas com roedores e, mais tarde, com humanos, sugeriram que o sistema de dopamina se ativava ao receber recompensas. Isso levou à crença de que a dopamina estava diretamente ligada a qualquer experiência de bem-estar, como comida, sexo e interações sociais. No entanto, estudos mais recentes, realizados especialmente a partir dos anos 1990, revelaram que a dopamina está mais relacionada à antecipação de recompensas do que ao prazer propriamente dito.
“A constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações.”
No cerne dessa questão está o fenômeno da homeostase cerebral, que nos lembra do bom e velho “para cada alto, há um baixo”. Isso explica por que uma pequena dose de prazer pode, com o tempo, exigir estímulos cada vez mais intensos para gerar a mesma satisfação. No mundo digital, onde o acesso é praticamente ilimitado e imediato, o risco de dependência se torna ainda maior. Além de impactar os circuitos de recompensa, a constante busca por gratificação altera o funcionamento cerebral, prejudicando nossa capacidade de planejar, resolver problemas e lidar com frustrações. Como resultado, vivemos mais no cérebro límbico (focado nas emoções) do que no córtex pré-frontal (responsável pelo raciocínio).
E se, para quebrar esse ciclo de excessos, tentássemos algo simples, como a abstinência temporária? Desconectar-se dos prazeres excessivos por um período pode reiniciar o cérebro e restaurar o equilíbrio. Estamos realmente presos ou é possível sair desse ciclo com um mínimo de força de vontade?
Na teoria, parece fácil; mas, como diz o ditado, na prática a teoria é outra. Desconectar-se, infelizmente, é um luxo que poucos têm hoje em dia. Uma reflexão trivial desmonta o sonho de distanciamento dos dispositivos e do bombardeio digital: como trabalhar sem estar conectado? Até mesmo trabalhos manuais frequentemente exigem uma presença digital, nem que seja para facilitar o contato entre contratante e contratado. Existem meios de limitar esse acesso, mas o afastamento nunca será completo. Questões político-sociais, tão enraizadas na realidade que molda nossos passos, dificilmente serão descartadas de um dia para o outro — e ainda assim querem jogar tudo nas costas da dopamina?
Não podemos ignorar que atividades altamente estimulantes podem, sim, sequestrar nosso sistema de dopamina, tornando recompensas menores menos satisfatórias. Esse ponto de vista é sustentado por algumas evidências, já que o uso prolongado de drogas que liberam grandes quantidades de dopamina — como cocaína e anfetaminas — pode levar o cérebro a reduzir a sensibilidade dos receptores desse neurotransmissor, resultando em tolerância.
“O desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida.”
Embora atividades como videogames e pornografia possam se tornar comportamentos compulsivos, pesquisadores como a Dra. Anna Lembke levantam a hipótese de que essas práticas poderiam, em tese, causar efeitos semelhantes aos da tolerância observada em substâncias viciantes, mesmo que ainda faltem evidências concretas para tal afirmação.
A verdade é que o vício é um fenômeno multifacetado e a dopamina não deve ser vista apenas como uma inimiga. Ela é, de fato, uma amiga em nosso aprendizado e motivação. A verdadeira questão não é como evitar a dopamina, mas como utilizá-la de forma equilibrada e saudável em nossas vidas.
Mas Lembke lembra: o desconforto é necessário. Isso pode parecer exagero, mas, em uma era de abundância, aprender a suportar pequenas dores e frustrações é o que nos torna mais resilientes e preparados para enfrentar os desafios da vida. Em vez de buscar uma constante felicidade, devemos aceitar que a vida é feita de altos e baixos, e que encontrar paz nesse movimento é o verdadeiro caminho para uma vida equilibrada.
“Talvez, como Sócrates, você tenha notado uma melhora de humor depois de um período doente, ou sentido uma euforia de corredor, depois de se exercitar, ou tido inexplicável prazer num filme de terror. Assim como a dor é o preço que pagamos pelo prazer, o prazer também é nossa recompensa pela dor.”
— Dra. Anna Lembke
Nação Dopamina nos ajuda a refletir não apenas sobre como lidamos com a tecnologia e o consumo, mas sobre como podemos redescobrir o valor das pequenas vitórias e do prazer conquistado com esforço.
Dopamina, temos um problema? Talvez não. Os excessos da modernidade não são oriundos tão somente da dopamina. De maneira nada consoladora, está mais para: atualidade, temos um problemão.