A obra é espelho
Meu percurso em leitura e releituras da obra Os sertões, de Euclides da Cunha, talvez seja uma das narrativas com mais histórias dentro de mim. Era leitura obrigatória na universidade e exigiu (ou era minha exigência) ler as linhas, no fluxo contínuo de tantas páginas. O diálogo do autor com as pesquisas de campo trazia, em meio à história, um repertório não familiar a mim. Eu me perdia, eu me encontrava — espectador, no ofício de acompanhar também as vozes, na ordem da ciência.
Três partes integram o conjunto da obra: A terra, O homem, A luta. Levei-as, em minha profissão, para as escolas pública e particular, e mesmo para a universidade, incluindo a pós-graduação. Na Semana Euclidiana, eu já questionava minha interação com a obra. Em São José do Rio Pardo, em puro ensaio, recortei um fragmento do texto e, diante do público adulto, realizei a surpresa de os meninos encenarem o que brotava como fruição do “rio da aldeia”. Essa mise en scène abriu veredas em minha experiência poética, emocional. Fui em busca da pulsação da linguagem, das linguagens. Assumi, em primeiro plano, a teatralidade que Euclides oferece ao leitor. Passei pela ampla bibliografia de autores convocados pelo enunciador/narrador para convalidar sua tese: o sertão/o homem/Canudos. Segui, contudo, as lições de Ítalo Calvino em Seis propostas para o próximo milênio: o projeto de reinventar sentidos, em busca de “leveza” e “consistência”, em meio a um universo. Em Os sertões, a partitura: o ritmo que se constrói na conjunção do plano de expressão/plano de conteúdo.
Como motivação para esse recorte na apreensão da obra, a exemplo de Calvino, levo uma “verdade” que organiza meus passos. Quando o mundo à frente se mostra incomensurável, volto às matrizes míticas para buscar a essência do que se reinventa em travessia. Para vencer a Medusa, visto-me de Perseu e olho, no espelho, o que dou conta para poder, progressivamente, vencer a Górgona mortal que petrifica.
Escolho o ângulo para entrar no reino da linguagem, com vistas a estratégias para os desafios. Preciso do espelho que reflita a obra, apreendê-la pelo vértice que cabe em mim. É assim que ouso “penetrar surdamente no reino das palavras”: lá está a polifonia de múltiplas vozes na densidade de sua criação. Transcendo o Tejo e vou, progressivamente, em busca da sonoridade compatível com a minha condição humana. Lá está Os sertõese seus poemas inscritos.
Tenho vivido, atualmente, o insólito como expectador, partilhando a leitura em grupo com um coro afinado diante da construção da narrativa. Até certo ponto, livre, catarticamente, para fruir o palco onde se encontram o homem brasileiro, Antônio Conselheiro e o bando de jagunços.
Convido você, leitor, a fazer essa travessia. Mais cedo ou mais tarde, com o livro ou esta revista à mão, viva a experiência estética para ser também ator em cena. Afinal, o rio da aldeia, em espelho, contém a ancestralidade pulsante!