
Torbay, de Johan Herman Isings.
Sobre o consumo
Conteúdo exclusivo da Amarello 52, edição digital.
Nos primórdios, imerso no contexto biológico imediato, o Homo sapiens mal satisfazia as necessidades indispensáveis à própria sobrevivência. Ele ultrapassou o estágio elementar da caça e da coleta (em que se alimentava aleatoriamente de frutas e raízes, assim como de restos dos animais devorados pelos grandes felinos), quando passou a produzir o que consumia. Para o bem ou para o mal, os progressos cognitivos e materiais da espécie humana consistiram em ampliar constantemente os meios de produção dos bens de consumo.
A constatação de que o consumo é o objetivo da produção parece óbvia, mas ela é enganosa, porque a produção também é consumo — de trabalho e de matérias-primas. Com efeito, os nexos entre produção e consumo não correspondem a uma relação linear, mas a uma articulação dialética de meios e fins. A energia mental e física despendida pelo trabalhador ao longo do processo produtivo é reposta pelo consumo dos bens indispensáveis à preservação de sua própria vida. Esses bens, por sua vez, foram produzidos por outros trabalhadores segundo o mesmo processo. Produção e consumo são, pois, posições relativas no ciclo econômico global.
O Homo sapiens emergiu do fundo da pré-história quando começou a fabricar artefatos e a cultivar a terra, de modo a assegurar alimentos e outros bens elementares para a comunidade a que pertencia. Durante esse período, o mais longo da história da humanidade, cada comunidade consumia o que produzia. Trocavam-se esporadicamente produtos como sal, blocos de sílex, madeira, etc., mas, no fundamental, valia a regra de “produzir para consumir”.
O aumento da capacidade produtiva ampliou, nas diferentes coletividades, os excedentes suscetíveis de serem trocados, separando a produção para o consumo da produção para a troca. O surgimento de centros urbanos consolidou a divisão do trabalho; produzir para vender assumiu importância crescente na atividade econômica, mas a grande maioria da humanidade, que vivia nas zonas rurais, permaneceu no tradicional regime de autoconsumo da aldeia camponesa.
Muitos centros urbanos da Antiguidade, notadamente os da Mesopotâmia, tornaram-se sede de poderes imperiais. A população desses centros (Nínive, Babilônia, etc.) compunha-se, em boa parte, de trabalhadores escravizados, trazidos das regiões submetidas, sobre os quais recaía a fabricação de bens de consumo suntuário e de obras monumentais, que exigiam deslocamento de enormes quantidades de madeira e blocos de pedra, além de metais. Eles próprios só consumiam o mínimo vital que lhes era distribuído por seus donos, que em troca lhes consumiam as forças.
Diferentemente dos Estados imperiais que a precederam, Roma manteve, mesmo no auge de seu poderio, o princípio da cidadania para sua população. Os proletários constituíam a classe mais pobre do Estado romano; nada possuíam além da liberdade jurídica que lhes permitia dispor do próprio corpo, carecendo de auxílio dos poderosos para sobreviver. Eram úteis à coletividade pelos descendentes que deixavam (proles, em latim).
No final do primeiro e no início do segundo século de nossa era, quando os habitantes de Roma, esquecidos das virtudes de seus antepassados, interessavam-se exclusivamente pelas satisfações vulgares que os imperadores lhes proporcionavam, o poeta satírico Juvenal constatou que lhes bastavam “pão e espetáculos circenses” para que se mantivessem submissos. A fórmula de Juvenal (panem et circenses) atravessou dois milênios, graças à ambiguidade ideológica de sua ironia: para os defensores da causa do povo, ela denuncia a capacidade corruptora do poder político; para os elitistas, ela conforta a tese arrogante de que a plebe é sempre subornável. Manteve-se também graças à força evocativa da sinédoque: barriga cheia e divertimento garantido asseguram o conformismo social.
Nem os grandes deslocamentos de povos e a sucessão de impérios que abalaram a Eurásia desde a Antiguidade, nem as Grandes Navegações e as conquistas ibéricas dos séculos XV e XVI, que marcaram o primeiro ciclo de expansão mundial das potências europeias, alteraram substancialmente o modo de vida da grande maioria da população — o regime de autoconsumo da aldeia camponesa. Foi na Inglaterra, a partir do século XV, que a aldeia camponesa, com suas culturas de subsistência, começou a ser suprimida pela aristocracia rural (os landlords). Atraídos pelos altos lucros do comércio europeu de lã e de trigo, os lords recorreram aos chamados cercamentos (enclosures), para ampliar as áreas consagradas à criação de carneiros e à plantação de cereais. A célere expansão da agricultura, passando-se a produzir para o mercado exportador, apressou a supressão dos direitos tradicionais das comunidades de aldeia e a expulsão dos camponeses. Separados pela força da terra de onde tiravam os alimentos e outros bens de consumo indispensáveis, relegados ao sombrio destino de vagabundos sem-terra, eles foram engrossar os batalhões de miseráveis de Londres. O filósofo Thomas More, que presenciou, no século XVI, o avanço desse processo perverso, comentou ironicamente que a Inglaterra era um estranho país, onde os “carneiros devoram os homens”.
Ao longo dos séculos XVI e XVII, a forte resistência dos camponeses aos cercamentos levou a monarquia inglesa a tentar freá-los, em nome da ordem pública. Mas a chamada Revolução Gloriosa (burguesa), de 1688, liberou amplamente a mercantilização da agricultura, pondo fim às intervenções do Estado para atenuar a miséria social. A produção agropecuária para a venda asfixiou gradualmente o autoconsumo camponês. O efeito direto e imediato da expulsão dos camponeses foi criar uma imensa massa de famélicos despossuídos, separados da terra, que até então lhes proporcionava as condições objetivas de existência, e reduzidos à condição de proletários.
Condição historicamente indispensável para o advento das relações capitalistas, a mercantilização da agricultura não se confunde, no entanto, com a transformação capitalista da economia, como bem mostrou a historiadora marxista Ellen Wood. O auge dos cercamentos ocorreu nos séculos XVI e XVII, mas o modo de produção capitalista só se configurou na segunda metade do século XVIII, quando os detentores de capitais, até então investidos no comércio e na usura, se apoderaram dos meios de produção e passaram a recrutar as massas de famélicos despojados da terra para trabalharem em suas manufaturas em condições atrozes. O salário miserável que estes recebiam mal permitia o equilíbrio metabólico entre a energia que dispendiam na produção manufatureira e o consumo dos bens indispensáveis à reposição de suas forças e, portanto, à preservação de sua vida.
A expansão mundial das relações capitalistas conferiu a forma de mercadoria ao conjunto de bens e serviços que compõem o ciclo econômico global. Essa mercantilização generalizada não afeta, porém, alguns dos bens mais essenciais, que são gratuitos e acessíveis a todos: a luz e o calor solar, o oxigênio que absorvemos treze vezes por minuto, etc. Mas os demais bens essenciais (alimentos, moradia) passam pelo mercado, condenando à miséria e à mendicância os que não podem comprá-los.
A fenomenologia do consumo é um tema vastíssimo, que envolve economia, sociologia, história, ética e psicologia. Ele proporciona dois níveis fundamentais de satisfação: das necessidades orgânicas vitais e daquelas criadas pelo que chamamos “civilização”. As do primeiro nível, obviamente condicionadas pela fisiologia, compõem, em qualquer situação histórica e condição social, a “cesta básica” do consumo universal. As do segundo desdobram-se em bens complementares, que melhoram as condições materiais de existência (equipamentos domésticos, etc.) e em bens mais elaborados, destinados ao consumo de luxo.
No plano existencial, é decisiva a conexão do consumo com a satisfação. Na raiz da noção de satisfação, como na de prazer, encontramos a ideia de limite, expressa no satis (bastante) latino. Satisfazer é fazer o bastante. Os filósofos da Antiguidade Clássica, de Platão a Epicuro, seguindo o critério da natureza das coisas, contrastavam a falta de limites dos desejos com a finitude das possibilidades de satisfazê-los. O “consumismo” dos ricaços contemporâneos ilustra essa insolúvel contradição: eles podem comprar o que querem, mas não podem ultrapassar os limites das satisfações possíveis.