Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre
Chico da Silva, Sem título (1968).
#54EncantoCulturaSociedade

Reencantamento e confluências (ou salve a Jurema Sagrada)

por Gilson José Rodrigues Junior

Entrei na graduação em Ciências Sociais em 2003: um jovem negro que, de alguma forma, se encantou com aquele universo — o primeiro homem da família a adentrar aquele espaço. Antes de mim, uma mulher, minha prima, havia aberto a porta. Ela me deu o melhor conselho: “A universidade não está tão boa quanto já foi, mas aproveite tudo: viagens, cursos, projetos, militância…”. Entrei encantado num universo que, como já alertava Max Weber, se organiza por processos de racionalização, afastamento de uma ideia de sagrado e desencantamento do mundo — um esforço de compreensão do Ocidente enquanto rejeição de outros caminhos possíveis. Weber reconhece racionalizações em várias religiões e sociedades, mas indica que a modernidade desenvolveu uma forma específica, focada na dominação do mundo, que anda junto da perda de sentido.  

Lendo o autor alemão, percebi que esse diagnóstico atravessava a própria universidade: o modo ocidental de olhar sem ver — reduzir o mistério à estatística, o sagrado à categoria, o corpo à função. Tal racionalização vira norma e poder. 

Exemplo disso é o mito de Fedro, de Platão, que apresenta o cocheiro e os cavalos: a alma como uma carruagem guiada pela razão, que tenta conduzir dois cavalos — um branco, dócil e obediente; outro negro, indócil e perigoso. É ali que o medo do corpo e do desejo começa a ser elaborado como fundamento da razão. Não irei aqui me aprofundar no racismo da metáfora, mas é preciso lembrar que a distribuição de cores não é inocente: a brancura se associa ao “bem”, e a negrura, à “desordem”. É nesse gesto que a modernidade desenha uma cosmofobia — medo das diferenças, recusa em conviver com outros modos de ser e existir. O cocheiro é o ancestral simbólico desse ideal moderno de pessoa — alguém que separa a mente do corpo e põe a razão para mandar em tudo —, e a carruagem de Platão ainda atravessa o corpo das universidades. 

Olhar para o mundo a partir da ideia de que o mundo é construído socialmente é lindo, e continuo encantado com isso. Só que desconstruir, um dos pontos‑chave das ciências sociais — sociologia, ciência política e antropologia —, não é o bastante. Desconstruir para quê? Para supor que algo possa ser construído onde antes havia certeza, dogmas, hierarquias. Falar de encantamento do mundo é falar de um outro modo de construir — não o que ergue prédios e sistemas, mas o que planta relações e escuta silêncios. Falar encantado é falar deste outro lugar do corpo. É permitir que a fala não separe o humano do invisível nem o pensamento da carne. 

Porque o desencantamento, ainda que se apresente como exercício de racionalidade, pode ser também violência — violência sofisticada, uma caça ao mistério, um incômodo com o encantamento, com a magia. Enquanto homem negro, hoje consciente da força emanada pela minha ancestralidade, percebo que também me violentava. E que fique negritado: o problema não é com a desconstrução. Algum desencantamento é indispensável. Há deslumbres que são profundas cegueiras e alienação. Mas não é sobre isso que estou falando! 

Quando penso nisso, lembro de Malunguinho, líder do quilombo do Catucá, um gigante que ia de Pernambuco até a Paraíba. Malunguinho recebe as chaves das sete cidades da Jurema das mãos dos indígenas e se torna mestre, caboclo e exu.  

Conheci Mestre Bispo em 2019, e nos reencontramos ao longo dos anos. Sempre me senti diante de um encantado encarnado! Como de costume, ele alertava: não há começo, meio e fim. Há começo, meio e começo.  

Assassinados por europeus, tantos povos negros, indígenas, quilombolas e ciganos sofreram e ainda sofrem. Essa é a causa da cosmofobia que matou Malunguinho: esse ódio, esse medo. Mas, como aqueles que se encantam, aquilo não foi seu fim, foi um novo começo. Renasceu guardião das sete cidades da Jurema, o território do mistério. Sua morte é início. Seu fim é retorno. E, ao retornar, ele me ensina a reencantar. 

Nesse sentido, a Jurema é um convite ao reencantamento do mundo. Um reencantamento que não nega a crítica social ou ignora as injustiças e as desigualdades. Muito pelo contrário. As mestras e os mestres da Jurema foram, em muitos casos, homens e mulheres que viveram marginalidade existencial — porque o ódio ao diverso não suporta o que não pode dominar.  

A Jurema é escola de resistência. Sua pedagogia é feita de silêncio, de erva macerada, de folha, de segredo. O que se aprende nela não é um conteúdo, mas uma disposição: o corpo aprende a ser confluência — encontro entre diferenças em que ninguém engole ninguém e todos se fortalecem. 

O reencantamento é isso: um chamado à confluência entre saberes, existências e mundos. É a recusa da cosmofobia e a escolha da comunhão. É reconhecer que o saber não precisa ser possessão — ele pode ser relação. Na Jurema, o conhecimento não se toma, ele se recebe.  

“Jurema é um pau encantado, é um pau de ciência que todos querem saber.” Quando escuto e canto esse ponto, compreendo que ele fala de uma ciência que não é a ciência moderna. É outra. É uma ciência contracolonial — um modo de conhecer que nasce dos povos feridos pela colonização, e não dos centros que a produziram. Uma ciência que sabe esperar o tempo da seiva, da folha, da palavra. 

Porque o conhecimento, quando é sagrado, não é propriedade, é responsabilidade. A Jurema, esse pau encantado que é árvore e bebida, é sempre mistério. E todo mistério carrega em si a pedagogia do encantamento. “A Jurema é um pau sagrado onde Jesus descansou…” E aí: “Ah, mas Jesus não conhecia a Jurema?”. Quem disse? Talvez o Cristo da floresta não tenha sido traduzido pelo mesmo latim das igrejas, porque mistério não cabe na cronologia ocidental. 

O encantamento, então, não é fuga do real, mas é outra concepção de mundo, já que devolve ao ser o que a modernidade transformou em coisa. É o reconhecimento de que a vida não é apenas biológica, mas ancestral. Pensar é também cantar, rezar é também teorizar, curar é também pesquisar.  

Encantar-me é resistir ao desencantamento como norma epistêmica. É recusar a lógica que transforma a vida em dado. É afirmar, como diz Krenak, que o mundo não é um condomínio de humanos VIP, rodeados de sub-humanos. É lembrar, com Gersem e Braulina Baniwa, que somos corpos‑territórios — corpos inseparáveis da terra, que guardam florestas, rios e memórias. O corpo é território! 

Reencantar o mundo não é um gesto ingênuo. É insurgente. É desafiar a arrogância da razão moderna, essa razão que acredita ser a única capaz de explicar o inexplicável. É restituir o direito de sentir o mundo.  

O encantamento não nega o conflito, mas o reinscreve num horizonte de relação — uma epistemologia da reciprocidade, e não da extração. Por isso, reencantar é também celebrar. 

Lembro das palavras de um ancião mancagne (etnia senegalesa), em Ziguinchor, no sul do Senegal: “nós adoramos a Jesus Cristo e celebramos nossos ancestrais, e nisso não há nenhuma contradição.” Nessa frase, há o gesto que a modernidade não sabe acolher em seu binarismo excludente: é possível adorar e celebrar, crer e dançar, pensar e sentir, sem que um anule o outro. O reencantamento do mundo é exatamente isso — uma celebração dos ancestrais que me habitam, das forças que me atravessam e das vidas que insistem em florescer, mesmo depois da morte. 

O velho mancagne me provocava a conjugar o verbo confluenciar. Não precisamos escolher entre isso ou aquilo, entre os ancestrais e Jesus Cristo, entre o conhecimento acadêmico e a Jurema, entre a crítica das ciências sociais e o encantamento do mundo. Tudo isso pode conviver. E, nisso, posso encontrar caminhos confluentes, posso encontrar potências nunca imaginadas antes. Confluir é compreender que o desencantamento do mundo precisa ser posição diante de injustiças, desigualdades, discriminações e preconceitos, mas não deve acabar com a magia nem matar a capacidade de se surpreender com a vida. 

É nesse ponto que se dá o confluir: onde rios se encontram, onde certo desencantamento não se opõe ao encantamento, onde o culto aos ancestrais não se opõe a uma ciência.  

Salve a Jurema Sagrada. Nas ervas, nos cachimbos, na fumaça — que é oração, proteção e ataque —, desejo que cada um plante o que colhe. Lembrando de Malunguinho ensinando que há defesas que são ataques, que aquele que colhe, colhe do que mandou, colhe do que plantou. Como me ensinou minha Ya, a pessoa manda, a gente se defende, e o que ela vai receber é consequência do ato dela…  

É no mistério que se vê o cachimbo como arma e escudo — na fumaça, proteção; nas ervas, aprendizado; na gira, cuidado e confluência. O encontro de diferenças. É como o encontro entre o Rio Negro e o Solimões: um não engole o outro, e ambos se tornam mais fortes. Encantar-me é não desistir do mistério, é compreender que o mundo não se explica, se canta, que a ciência sempre teve corpo, e que o corpo pode ter ciência, mas nunca foi neutro!  

Malunguinho continua vivo, guardando as sete cidades, lembrando que não há começo nem fim: há começo, meio e começo. 

Gostou do artigo? Compre a revista impressa

Comprar revista

Assine: IMPRESSO + DIGITAL

São 04 edições impressas por ano, além de ter acesso exclusivo ao conteúdo digital do nosso site.

Assine a revista
Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


In progress: Ricardo Alcaide

#23 Educação Arquitetura

por Ricardo Alcaide Conteúdo exclusivo para assinantes

Tacita Dean: O esmaecer das coisas

#29 Arquivo Arte

por Tamara Klink Conteúdo exclusivo para assinantes

O que fazer com as histórias que contamos a nós mesmos?

#53 Mitos Sociedade

por Daniela Faertes Conteúdo exclusivo para assinantes

Tão longe, tão perto

#4 Colonialismo Cultura

por Andrea Simioni Conteúdo exclusivo para assinantes

A cor do sonho de ontem

#52 Satisfação Artes Visuais

por Marina Schiesari Conteúdo exclusivo para assinantes

Amor imenso

#8 Amor Arquitetura

por Tomás Biagi Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Um dia de paz

#9 Obsessão Arte

E Então Sou o Mundo

#8 Amor Arte

Relâmpagos permanentes

#48 Erótica Literatura

por Mariana Quadros

O patriarcado e os arquétipos do masculino

#36 O Masculino Artigo

por Lígia Ito Conteúdo exclusivo para assinantes

O outro lado de Anita Malfatti

Arte

por Poli Pieratti

Por uma Educação de Alma Brasileira

#26 Delírio Tropical Cultura
  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.