
Amarello 54 — Encanto
Com capa do artista Gabriel Pessagno e o cantor, compositor e líder indígena Gean Pankararu como editor convidado, a Amarello Encanto perpassa um caminho de maravilhamento da cosmologia dos povos originárias até a prática da beleza do cotidiano.
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A morte da minha avó Dea me ensinou muito sobre a vida. Eu costumo me apaixonar pela pessoa quando ela morre. Não me sai da cabeça. Foi assim com o Senna, com a Preta Gil, com o Paulo Gustavo. E com a minha avó, obviamente, não foi diferente. Nunca tinha beijado um cadáver, estado tão perto de um, com tanto carinho e afeto. Minhas primeiras experiências com a morte são de quando eu era muito jovem, e foram muito traumáticas.
Da minha avó, eu já tinha me despedido quando ela parou de lembrar de mim, mas, no dia do velório, eu chorei copiosamente, como nunca havia chorado antes. Fiquei exausto, surpreso. Chorei principalmente pela minha mãe, que estava se despedindo da mãe dela, e chorei também por um tempo bom, que a gente acha que nunca vai passar e, quando vê, acaba. Foi a despedida de uma época, de uma idade.
Como estudei em colégio de freiras católicas, religião foi sempre uma coisa imposta pra mim. Eu rezava à noite, morrendo de medo, pra pedir alguma coisa pra Deus — força, uma viagem, um favor —, sempre acreditando que um dia tudo iria dar certo, no dia da redenção. Desconfiado, com uma pulga atrás da orelha. Um dia, em um voo curto para o Rio de Janeiro, quando comecei a rezar para o avião não cair, eu pensei: “Para com isso, eu não acredito em nada disso. Esse avião não vai cair”. Foi a maior libertação que eu tive na minha vida. Penso que ter um pai cético ajudou muito também.
Depois desse episódio e da morte da minha avó, aprendi sobre o encanto do aqui e do agora. Da única coisa que nós temos, nosso cotidiano. O encanto de tomar um leite batido com mamão, comer arroz com limão e sal, transar com alguém novo, comer babaganuche puro, nadar no mar com medo de tubarão, de tomar um banho quente-quente, de encontrar um livro que nos capte, de estar com os meus amigos em casa, dormir com o cachorro. De estar no dia, e essa virou a minha religião, no que eu acredito. Sempre com graça e humor.
E, sobretudo, para mim é uma honra fazer esta edição e ter o Gean Pankararu como nosso editor convidado. O Gean mora em uma terra mágica, no Médio São Francisco, e umas das coisas mais legais que fiz nos últimos anos, foi ir ao festival de música que ele organiza todos os anos por lá. Ali, pude sentir minimamente o poder de estar abraçado pela natureza, quando, indo participar do ritual sagrado de seu povo, escutei seus cânticos vindos do mato, de dentro de uma roça.
— Tomás Biagi Carvalho
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