Pode o Barroco ser quente? Barroco e estéticas faveladas
Barroco: substantivo masculino
1. Pérola de formato anômalo, caprichoso.
2. História da Arte: na pintura, escultura, arquitetura e artes decorativas, estilo, com elementos do alto Renascimento e do Maneirismo e ligado à estética da Contrarreforma, nascido em Roma c.1600 e cujas características básicas são o dinamismo do movimento com o triunfo da linha curva e (esp. na escultura e pintura) a busca da captação das reações emocionais humanas [Cedo internacionalizado, o estilo ganhou traços específicos em cada país.].
Dinamismo. Movimento. Triunfo da Curva. Captação das reações emocionais humanas. Contraste. Sagrado-Profano. Características do barroco enquanto estilo inserido na História da Arte brasileira e mundial, mas que em 2021 podem ganhar outros contornos. É preciso aquecer o barroco. É necessário estabelecer conexões entre a história da arte estudada nas universidades e a história da arte que é feita nas favelas, quebradas e periferias. O barroco está aqui. Desfragmentado, renomeado, mais preto, mais vivo. Ouso aqui pensar o barroco do meu lugar. De uma mulher negra e favelada, que pensa e escreve arte desde a favela.
Do Dinamismo:
Podemos entender que dinamismo é por essência a junção de forças que geram movimento. É esta uma das características do estilo barroco. Assim como era também uma das características de Dona Orosina Vieira. Vista por alguns historiadores como a primeira moradora do Conjunto de Favelas da Maré (Rio de Janeiro), Orosina construiu residência no Morro do Timbau (primeira favela da Maré), com madeiras sobre a área que ainda era mangue.
No mesmo contexto, surgiram outras casas e núcleos familiares, intensificando o fluxo populacional da região, que hoje abriga mais de 140 mil pessoas. De uma casa sob o manguezal para um dos maiores conjuntos de favelas do país, o dinamismo foi palavra chave a partir da construção de mulheres e famílias essencialmente negras. O dinamismo estético apresentado no barroco também pode ser visto em estéticas faveladas. A pulsão do movimento é constante, desde a arquitetura, passando pelas gambiarras territoriais e desembocando em uma série de tendências que, como ondas, influenciam a sociedade como um todo. Biquíni de fita, alongamentos de unhas, descoloração de cabelos, “falhas” na sobrancelha não nos deixam mentir. A favela constrói uma visualidade dinâmica.
Do Movimento:
No livro “Cabeças da Periferia: Taisa Machado e a Ciência do Rebolado”, a atriz, pesquisadora e escritora conta que:
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O causo narrado pela pesquisadora nos apresenta uma série de camadas. A favela. O baile. A dança. A burca. A surra de bunda. Todas elas permeadas e costuradas pelo movimento. Enquanto escrevo esse texto, observo as crianças correndo na minha rua, aqui no Parque União. Ao mesmo tempo ouço o som na rua paralela à minha. É sexta-feira, dia de baile do PU. As motos cruzam a favela, aceleradas na mesma via em que andam os pedestres, uma vez que por aqui calçada é raridade. Dizem que favelas como Nova Holanda e Parque União não dormem. Eu diria que não são apenas as duas. Diria que as favelas de forma geral não dormem. O indo e vindo infinito faz com que o movimento seja palavra essencial para pensar favela. Esse cotidiano insone e vivo reflete a necessidade de movimento de territórios, onde a inventividade se impôs como condição para a manutenção da vida.
Uma dançarina de funk de burca estabelece uma relação estética quase impensável. Mas esta relação se materializa quando falamos de barroco. Especialmente do barroco relido e revisto desde a favela. A conversa entre sagrado e profano ganha outro tom com o causo de Taisa. E é esse tom que me interessa.
Do Triunfo das Curvas:
Outra marca do barroco são as curvas, que sinalizam também o movimento, a dúvida, a fluidez. Porém, vivemos uma sociedade que por muitas vezes elege a linha reta. A firmeza, a dureza, a falta de flexibilidade e de “recheio”. O oco e reto. Assim, aqueles que apresentam a curva em suas ideias, corpos e modos de viver, acabam por ser marginalizados. Numa linguagem contemporânea a palavra “curva” virou sinônimo para falar de corpos (especialmente de mulheres) que fogem do padrão magro. Esses corpos muitas vezes são exotizados ou rejeitados. A sociedade brasileira ainda renega a curva.
Em contrapartida, observo uma outra epistemologia da curva se formando em favelas e periferias, assim como em espaços LGBTQIA+. Formas outras de ver o mundo e de se relacionar com os corpos-curvas. Entendo aqui o corpo como plataforma de viver e de produzir arte. E as favelas são pioneiras no processo de fazer do corpo uma tela.
As unhas têm sido utilizadas como forma de demonstração de poder, autoestima e de afirmação ao longo da história da humanidade. No Egito Antigo – cabe lembrar que o Egito está situado em África –, o uso de unhas de marfim sinalizava status social, além da beleza estética. No Brasil contemporâneo, as extensões em materiais conhecidos como “acrigel” ou “fibra de vidro” marcam uma linguagem visual própria. Nesse quesito, a cantora Alcione aparece como uma referência destes corpos-plataforma artística, que permitem que os desejos, histórias e cores se apresentem como visualidade. Em programa de TV, Alcione relatou que “O povo lá em casa diz que gosto de um balangandã, de um colorido, é aquela raiz africana que a gente tem. Por isso essas unhas”. Alcione reforça a relação – não óbvia – que levanto aqui. O barroco tem muito a aprender com os balangandãs, com as “raízes africanas” e com as estéticas faveladas.
Da Captação das reações emocionais humanas:
O livro “O afrofunk e a ciência do rebolado” traz ainda uma reflexão sobre “o artista que se desenvolve na guerra”, a partir da mesma história citada por Taisa anteriormente. A dançarina de burca não interrompeu sua performance nem durante as rajadas de tiro disparadas durante o baile. A autora afirma que “Não tinha nada melhor do que o que aquela mulher tava fazendo na nossa cara, no meio de 15 mil pessoas.” A observação de Taisa, assim como o olhar de muitas e muitos favelados age como este captador das reações emocionais humanas. Estamos falando aqui de uma barroquice favelada ou de uma favela barroca, pensando que esses espaços não devem ser romantizados. Mas a proposta é que se veja também a favela como lugar de liberdade. Liberdade inclusive para ser barroca. É nessa liberdade que residem as emoções humanas, sentidas, vistas e vividas em intensidade por aqui.
Esta ousadia conceitual de pensar o barroco a partir da favela – e vice-versa – vem de um desejo de nos provocar enquanto sociedade. Vem da ânsia de ver mais favela na história da arte clássica. De rever os padrões de identidade nacional e os dogmas da Academia. Por isso, esse texto é um desejo. Desejo aqui um barroco com balangandã. Um barroco da gambiarra, que se constrói a partir de rolos de fio de “gatos” de luz. Um barroco forjado no movimento de expansão das favelas. Um barroco de curvas de mulheres lindas e pretas tomando sol na laje. Um barroco cada vez mais quente. Cada vez mais vivo.