#15TempoCulturaSociedade

Quem é seu tempo? Cronos, kairós ou aion?

por Ana Claudia Quintana Arantes

“Então, o que é o tempo? se ninguém me perguntar, eu sei; se quiser explicá-lo a quem me pergunta, não sei”
Santo Agostinho, Confissões, livro XI

A humanidade caminha, a caravana passa, o mundo gira. Cada um no seu tempo. A verdade maior é que estamos todos muito atrasados em relação a nossa própria vida, pois não sabemos muita coisa. Mas algo que fazemos com maestria é desperdiçar nosso tempo, seja não vivendo o que é para viver, seja vivendo o que ainda não é tempo de viver. Sêneca diz que o Homem é capaz de lutar por qualquer coisa que não lhe pertença. Luta para defender terras, por poder, por escravos, por amores, por seus filhos, por seu povo. Mas é incapaz de lutar para defender seu tempo. Ele também nos diz que o Homem reclama que a vida é breve, mas, na verdade, não é. A vida é longa o suficiente para que se realize grandes coisas e grandes felicidades, mas desperdiçamos o tempo generoso da vida em coisas inúteis, fúteis. Desperdiçamos tempo nas fofocas, nos medos, nas culpas, na preguiça, na destruição do corpo, da mente e do coração. E dedicamos pouquíssimo tempo a viver a vida como pede para ser vivida. E penso que concordo com Sêneca… O que vejo todos os dias são pessoas que, ao refletirem sobre suas próprias vidas, deparam-se, um tanto perplexas, com o tempo que perdem celebrando coisas sem sentido. Brigas, medos, preconceitos, decepções, silêncios. Nada que realmente valha a pena quando se tem consciência de que não há tempo a perder.

O problema é que as pessoas só param para pensar na vida nos momentos de sofrimento, de crise, de doença. Quando tudo está dando certo, não vejo ninguém se perguntar “qual o sentido disso?” Quando estamos na tormenta, porém, de repente tomamos consciência de que nada importa mais do que aquilo que acreditamos ser importante, mas do que não cuidávamos com verdade e entrega. Durante toda a vida temos a chance de nos perguntar sobre o que realmente vale a pena, mas, mesmo diante das melhores respostas, mantemos um firme propósito de nos afastar desses maiores motivos. E o tempo urge.

Tempo, tempo, tempo. O que se fala do tempo? Na mitologia, encontramos respostas. Cronos, filho de Urano, liderando uma rebelião contra seu pai, assume o lugar de rei. Por medo de sofrer o mesmo golpe, Cronos decide devorar seus filhos. Um dia, enganado por Reia, sua esposa, engole uma pedra pensando que devorava Zeus, seu sexto filho. E Zeus sobrevive, destrona seu pai e se torna rei do Universo.

Cronos é o senhor do tempo do relógio, senhor absoluto dos minutos, das horas, dos dias, aquele que nos devora vivos, ao pé da letra. Cronos é uma dimensão necessária para o tempo do lado de fora de nós mesmos, para uma mínima organização da nossa vida, da nossa agenda, do nosso cotidiano. Ele não mostra a intensidade da vida, mas sua duração. No entanto, nos escraviza quando determinamos que o tempo que vivemos “do lado de dentro” seja também regido por ele. Podemos nos tornar escravos do relógio, do tempo cronometrado, do tempo do mundo. Distribuímos o tempo do relógio entre sono, trabalho, família, amigos, exercícios, meditação, lazer, medos, terapia, trânsito, férias, culpas, sonhos. Mas, dentro de nós, não parece existir “duração do tempo”.

Passado, presente e futuro estão totalmente misturados, caoticamente misturados. Por vezes, somos prisioneiros do tempo passado, que não volta para ser consertado, mudando a sua história, mas insistimos em mantê-lo presente na mente, como se acontecesse hoje, trazendo de volta todos os sentimentos (bons ou ruins) que permearam horas passadas. Aquele momento difícil, que tivemos há anos, aconteceu uma única vez, mas se repete como um filme em reprise constante na nossa cabeça. Talvez seja infinita a quantidade de vezes que ouvimos dentro de nós um “eu te odeio” dito, contudo, uma única vez. Não nos damos conta de que essa repetição é inútil. Assim como é inútil tentar vivenciar um momento futuro numa riqueza de detalhes jamais parecida com o que realmente vai acontecer.

O futuro do mundo do ansioso acontece agora e de um modo muito mais intenso do que seu próprio presente. São os nossos enganos devorando nosso tempo Cronos tão cruelmente como esse deus devorava seus filhos, com um passado e um futuro impalpáveis engolindo o tempo presente, desperdiçando-o. A nossa chance de libertação vem com Kairós. Kairós (do grego, momento oportuno) é um portal, que transforma o tempo do relógio no tempo do coração.

“Alice: Quanto tempo dura o eterno? Coelho: Às vezes apenas um segundo.”
Lewis Carroll em Alice no País das Maravilhas

Cronos é o tempo do mundo. Kairós é o tempo da “oportunidade”. Sabe aquele dia em que você encontrou um amigo muito querido de um jeito inesperado (Kairós) e passou horas (Cronos) conversando sem se dar conta de qualquer tempo? Nesse dia você conheceu Aion, o tempo do fluxo, do “caminho feliz” da existência, da totalidade psíquica, do movimento cíclico e incessante da vida, da imortalidade. Quando vivemos a vida no tempo Cronos (na psicologia, o tempo do Ego), falta-nos horas de vida, nos falta vida. Nossa cultura é frágil demais em consciência da finitude humana. Inspira-me Sêneca, pois pode não nos faltar tempo, mas falta maturidade, integridade, realidade. O tempo acaba, mas a maioria das pessoas não percebe que, enquanto fita o relógio esperando o fim do dia, na verdade torce para que sua morte se aproxime mais rápido.

Quando você passa a vida esperando o relógio dar a hora de ir embora do trabalho, amaldiçoando a segunda-feira, se entorpecendo de todas as formas para “compensar” o sofrimento do trabalho quando chega o fim de semana, vive reclamando da necessidade de férias, fazendo mil promessas de melhorar a vida nas intenções do ano novo, ou pior, se você é daquelas pessoas que estudam para concurso público só pra garantir a “aposentadoria”, eu preciso lhe dizer com a máxima urgência: não tem nada errado com seu trabalho, mas há alguma coisa muito errada com sua vida. Não adianta querer dividir seu tempo entre trabalho e vida, porque esta é constante e, enquanto se trabalha, está-se vivo.

Podemos escolher viver até que a morte chegue ou ir morrendo até que a vida termine. Querendo que o tempo passe rápido, desejamos que o dia da nossa morte se aproxime mais rápido. A opção “vida” não é um botão “on/off” que a gente liga e desliga conforme o clima ou o prazer de viver, pois, com ou sem prazer, estamos vivos 100% do tempo. Vida é coisa constante, incessante até qualquer dia desses. Isso é viver em Cronos… meio difícil mesmo.

Mas, quando estamos no tempo Aion (o tempo do Self), as coisas são muito diferentes. O tempo Aion é descrito nas mandalas, mas o que seria o relógio senão uma mandala? Aion nos fala daqueles momentos que a gente vive num tal fluxo que tudo se encaixa perfeitamente dentro do tempo do relógio, no tempo de Cronos. Quando realizamos um trabalho incrível, aquela jogada de mestre que culmina com um gol totalmente inacreditável, ou quando encontramos uma pessoa muito amada, seja amigo, amante ou filhos, e vivemos momentos únicos onde parece que o tempo parou. Parou? Sim, parou na eternidade daqueles poucos instantes. Ou ainda quando estamos lendo um livro, uma poesia, vendo um filme ou ouvindo uma música que nos traz respostas tão reveladoras que nos proporcionam a chance de compreensão do que se passa dentro e fora de nós em qualquer tempo, passado, presente e futuro, como se a vida pudesse ser mesmo eterna. Um instante de lucidez que permite a paz de estar vivendo e sabendo viver. E isso tudo acontece em poucos minutos de Cronos, que nos levou tempo de relógio, mas Aion salvou anos de intensidade de vida, quando encontramos, assim, um novo significado para a existência experimentada neles. “Ah… então era isso…” E tudo que nos fazia sofrer encontra um sentido, nos liberta para uma nova história, já escrita no nosso passado, mas agora interpretada de um jeito novo.

Cronos tem em si mesmo um grande poder quando nos permite envelhecer. De tanto que o ponteiro volta ao mesmo lugar, um dia nos daremos conta de que horas são. Nisso, Cronos tem seu mérito. Na sua paciência de nos observar envelhecer, amadurecer, pacientemente nota nossa capacidade de entender que para cada realização existe a necessidade de preparo, de maturidade, de espera.

O grande segredo de viver em plenitude é encontrar Kairós a qualquer instante, a qualquer momento da nossa vida. Quando olhamos nossos dias e o que acontece dentro deles como oportunidades de compreensão do que estamos fazendo aqui, temos essas respostas de um jeito totalmente inesperado, e então parece que passado e futuro se modificam imediatamente. São essas oportunidades que modificam o curso do tempo Cronos de uma forma tão profunda que surpreende experimentar a sensação de ter ganhado tempo. De vida, de felicidade, de realização. Percebendo esse instante de lucidez, paramos de desejar mais coisas, poder, pessoas, e passamos a desejar mais vida.

O que mais posso compartilhar com vocês? Queria muito ter o poder de dar-lhes esperança: perto do fim de qualquer momento importante na nossa vida, o tempo se dilata, transformado pelo sofrimento e pelo amor. A finitude é marcada pelo sofrimento das despedidas, mas também pelo reconhecimento da presença do amor. E não seria o amor a maior expressão da nossa essência como seres humanos? Eu tenho certeza que sim… e vejo que o sentimento de amor aliado ao perdão é o que pode nos proporcionar uma real compreensão do nosso caminho nessa existência por aqui. Nesses instantes de lucidez o tempo para por alguns instantes, e, se assim desejamos, a generosidade do que é sagrado para nós mesmos (o nosso coração, o Universo, Deus) nos concede tempo suficiente para a revelação do que realmente importa: “viver para”, o nosso “sentido de vida”. E esse é o grande milagre da multiplicação do tempo.