Enquanto a cultura escrita tem sido historicamente valorizada como fonte de conhecimento, a cultura visual tem experimentado um aumento significativo de atenção nos últimos tempos.
Pense no mais intenso número de dança. Visualize um tango argentino em que os dançarinos se movem ora juntos, ora sozinhos, em algum lugar entre a tensão e a paixão. Quem dança mais e quem dança menos neste palco? Talvez você não precise imaginar muito. “Quem brilha mais?”, afinal, é a pergunta que surge naturalmente quando pensamos na interação dançante entre a cultura visual e a cultura escrita. Por ser uma dinâmica tão interligada, e ao mesmo tempo tão excludente, esses passos têm sido observados de perto por teóricos da comunicação, antropólogos culturais e historiadores. Essas duas formas de expressão cultural não apenas coexistem se complementando, mas também moldam e são moldadas por contextos socioculturais e tecnológicos. Enquanto a cultura escrita tem sido tradicionalmente valorizada como uma fonte essencial de conhecimento e comunicação, a cultura visual tem experimentado um aumento significativo de atenção nos últimos tempos, levantando indagações pertinentes sobre a relação complexa entre ambas.
É bem verdade: se considerarmos que as pinturas rupestres são as formas de comunicação mais antigas que se tem registro — as pinturas da Caverna de Chauvet, por exemplo, datam de 30 a 32 mil anos —, ou mesmo que a escrita se dá por símbolos, a cultura visual veio antes. Mas, na medida em que as sociedades foram avançando, a escrita exerceu um papel incomensurável em todo o desenvolvimento, criando uma cultura que evoluiu mais aceleradamente do que a visual. Isso pelo menos até o começo do século XVIII, quando os primórdios da fotografia já anunciavam uma revolução. Algum tempo mais tarde, foi a vez do audiovisual surgir e se aprimorar rapidamente. A televisão também entrou em campo sob aplausos e tudo que veio daí mudou o jogo por completo. Na sociedade moderna, a cultura visual se transformou naquela grande ventania que abala as estruturas e, na contemporaneidade, essa ventania virou um verdadeiro tufão.
Impulsionada pela revolução digital, a dinâmica entre cultura visual e cultura escrita sofreu transformações profundas, refletindo mudanças na maneira como consumimos e compartilhamos informações. A escrita ainda é uma ferramenta central de expressão e comunicação, mas a cultura visual emergiu como um meio que esbanja o poder e a persuasão para se conectar com as massas. E, como não podia ser diferente, essa mudança de enfoque suscita discussões acaloradas sobre os impactos positivos e negativos da transição.
Autores como o canadense Marshall McLuhan (1911-1980) e o estadunidense Walter Ong (1912-2003), pensadores modernos canônicos que entenderam a comunicação tão bem que foram capazes de antever alguns resultados maiores a partir do que eram apenas indícios, ofereceram insights fundamentais sobre essa dicotomia. McLuhan, em seu livro Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem, de 1964, argumentou que cada meio de comunicação carrega consigo uma “mensagem” que influencia a percepção e a organização da realidade, sendo, assim, o próprio meio é uma mensagem. Ele destacou como a cultura escrita, caracterizada pela linearidade e análise discursiva, deu lugar a uma cultura visual mais imersiva e simultânea com a ascensão de mídias eletrônicas — se isso valia para 1964, imagine então para quase 60 anos adiante.
“Se a pergunta ‘Qual é o conteúdo da fala?’ for feita, é necessário responder: ‘É um processo real de pensamento, que é em si não-verbal’. Uma pintura abstrata representa a manifestação direta de processos de pensamento criativo como eles podem aparecer em projetos de computador. O que estamos considerando aqui, no entanto, são as consequências psíquicas e sociais dos designs ou padrões conforme eles ampliam ou aceleram os processos existentes. Pois a ‘mensagem’ de qualquer meio ou tecnologia é a mudança de escala, ritmo ou padrão que ela introduz nos assuntos humanos. A ferrovia não introduziu movimento, transporte, roda ou estrada na sociedade humana, mas acelerou e ampliou a escala das funções humanas anteriores, criando tipos totalmente novos de cidades, trabalhos e lazer.”
— Marshall McLuhan em Os Meios de Comunicação como Extensões do Homem
Aplicando a imagem da ferrovia ao mundo virtual, percebemos como a digitalização acelerou e apresentou diversas novas possibilidades àquilo que já estava por aí antes, além de viabilizar novos formatos, surgidos como ramificações do que acelerou o pré-existente. E é seguro dizer que novos ainda virão a existir saindo desse e outros pontos de partidas, porque, no final das contas, trata-se de um trem desenfreado capaz de alçar voo a qualquer momento e abandonar os trilhos sobre os quais nasceu.
Para Walter Ong, em Oralidade e Cultura Escrita, de 1982, as transformações cognitivas e epistemológicas acompanham a transição da cultura oral para a escrita, realçando as maneiras distintas pelas quais a palavra falada e a palavra escrita moldam o pensamento.
“Nossa compreensão das diferenças entre oralidade e alfabetização desenvolveu-se apenas na era eletrônica, não antes. Os contrastes entre mídia eletrônica e impressa nos sensibilizaram para o contraste anterior entre escrita e oralidade. A era eletrônica é também uma era de ‘oralidade secundária’, a oralidade dos telefones, rádio e televisão, que depende da escrita e da impressão para sua existência. A mudança da oralidade para a alfabetização e para o processamento eletrônico envolve estruturas sociais, econômicas, políticas, religiosas e outras.”
— Walter Ong em Oralidade e Cultura Escrita
É como se a existência de uma nova era ressignificasse a era anterior. E é importante notar como a tal “oralidade secundária” acaba se repetindo, de algum jeito, nos novos formatos de hoje. Quando matérias de portais de notícia vêm acompanhadas de sua versão-podcast, reproduzimos o rádio com um verniz cibernético; quando fazemos pequenos vídeos nos TikTok, reproduzimos vinhetas publicitárias usando uma falsa máscara de pessoalidade. É difícil, portanto, pensar em quando começa e quando termina a cultura visual e a cultura escrita. É quase impossível determinar quando é uma e quando é outra, já que as duas andam tão juntas, mesmo que somente com um texto no papel ou somente com uma imagem sem palavras.
Se o cinema e a televisão representaram uma nova era cultural, o advento do mundo digital e das mídias sociais trouxe uma nova dimensão às intersecções das culturas visual e escrita. A proliferação de imagens, vídeos e emojis na comunicação cotidiana evidencia uma crescente utilização de símbolos no dia a dia, de uma maneira sem precedentes. Em vez de “eu te amo”, um emoji de coração ou um gif com aquele personagem do That ’70s Show fazendo um coração com a mão; ao invés de “estou bravo”, um emoji com carinha vermelha ou um gif de Divertida Mente, com o personagem Raiva explicitando descontentamento.
As comunicações, no geral, têm se voltado cada vez mais para os apelos visuais, mesmo quando auxiliadas pela linguagem escrita. Essa mudança é amplificada pela velocidade com que as informações são transmitidas e consumidas nas redes sociais, onde a instantaneidade das imagens muitas vezes prevalece sobre a reflexão textual profunda. Uma preocupação que nasce dessa nova realidade é que a migração para uma cultura voltada majoritariamente para o visual possa levar a uma diminuição na capacidade de concentração e reflexão crítica. Hoje em dia, quem tem tempo para ler um livro inteiro? Ou mesmo ler uma postagem mais extensa no Instagram ou um texto de blog falando bem sobre uma pousada nos Alpes Suíços?
Isso quer dizer que a escrita está fadada ao esquecimento? Evidentemente que não. A cultura escrita não está completamente desvalorizada e não está com os dias contados. A produção literária, acadêmica e jornalística continua a desempenhar um papel crucial na disseminação do conhecimento e na preservação da memória cultural. Aliás, a intersecção entre cultura visual e escrita é evidente na mídia impressa, publicidade, cinema e design gráfico, espaços em que ambas as formas de comunicação são usadas de maneira sinérgica para criar significado. Mas, ainda que o foco crescente na cultura visual não deva ser interpretado como uma rejeição completa da escrita, deve ser visto como uma mudança significativa na forma como a informação circula. O que não anula o grande desafio que já se apresenta há algum tempo: o de encontrar um equilíbrio saudável entre essas duas formas de expressão, reconhecendo as vantagens e desvantagens de cada uma.
Vivemos na era da imagem rápida, tempo em que as plataformas digitais são os pilares da cultura. O compartilhamento instantâneo de fotos, vídeos curtos e memes permitiu que as pessoas se expressassem de maneiras novas e criativas, comunicando ideias complexas em uma linguagem visual acessível. Esse, aliás, é um fator de sedução digno de nota: na linguagem visual atual, a inventividade tem forte presença, muitas vezes respondendo a eventos midiáticos maiores ou explorando características dessa ou daquela geração. Cria-se, assim, um engajamento altamente atrativo. Além da criatividade, temos a concisão também como fator determinante para o sucesso de uma linguagem, passando a mensagem de maneira rápida, divertida e de fácil entendimento. A efetividade é a marca de algo que evoluiu até chegar aos moldes que estão de acordo com aquilo que as pessoas querem e estão dispostas a receber.
“Não pensamos mais na história do cinema como uma marcha linear rumo a uma única linguagem possível, nem como uma progressão rumo à verossimilhança perfeita. Pelo contrário, passamos a ver a sua história como uma sucessão de linguagens distintas e igualmente expressivas, cada uma com as suas próprias variáveis estéticas, cada nova linguagem fechando algumas das possibilidades da anterior (…). Da mesma forma, cada estágio na história da mídia computacional oferece suas próprias oportunidades estéticas”
— Lev Manovich em The Language of New Media
A dicotomia entre cultura visual e cultura escrita não é uma batalha pela supremacia, mas uma interação complexa e em constante evolução. Ao reconhecer os méritos e as limitações de ambas as formas de comunicação e promover uma abordagem equilibrada, podemos navegar com sucesso na era digital, aproveitando o poder da cultura visual enquanto mantemos a riqueza da palavra escrita. Tudo é fruto de seu tempo. Pensar nas características da comunicação atual revela aspectos tanto positivos quanto preocupantes do nosso comportamento coletivo e da forma como nos relacionamos com a informação, a comunicação e a expressão.
A cultura visual é uma linguagem global que transcende barreiras linguísticas e culturais, permitindo que as mensagens alcancem audiências em todo o mundo. Isso pode refletir uma sociedade mais conectada e globalizada. Mas nem tudo são flores. Enquanto celebramos a acessibilidade e a criatividade proporcionadas pelo visual, também precisamos enfrentar os desafios potenciais que podem afetar características humanas fundamentais para o desenvolvimento de futuros melhores, como o pensamento analítico. É crucial encontrar um balança entre imagem e texto para garantir que possamos navegar com sucesso nas complexidades do mundo contemporâneo. É dançar para não dançar.