Sem título, detalhe de escultura de Anna Maria Maiolino. A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação)

Devido à pandemia, pela primeira vez em muito tempo nos vimos forçados a desafiar um modelo de trabalho há muito não questionado. Antes de tudo acontecer como aconteceu, o trabalho remoto estava fadado a eventualidades, guardado somente para casos extremos, como algum problema de saúde ou aquelas grandes chuvas capazes de parar metrôs e trens, impossibilitando o deslocamento do funcionário ao local de trabalho. Mas depois de um ano e pouco de pura ansiedade, a vacina e as suas doses de reforço vieram para acalmar os ânimos. Ainda que num contexto para lá de ruim, uma nova possibilidade foi apresentada às pessoas: ao contrário do que se imaginava, é possível trabalhar de casa — e com eficiência (até maior, a depender das circunstâncias). Como, então, voltar 100% ao trabalho presencial? Não se volta. Pelo menos não com a mesma soberania. Os números mostram que esse modelo de trabalho, antes uma maioridade acachapante, não voltou a reinar. O modelo preferencial de hoje em dia é o híbrido, que balança entre o remoto e o presencial, adotado amplamente por empresas do mundo todo. 

Presume-se que esse seja o futuro do trabalho e que, a partir dessa primeira grande mudança, outras virão, num processo contínuo de desencadeamento. 

Mas isso, claro, gera impactos relevantes na economia, tão assentada na logística que força as pessoas a usarem o transporte público, a comerem fora de casa e a frequentarem os comércios que circundam o local de trabalho. E quando a economia é afetada para pior, independentemente do quão positiva possa ser a mudança em termos humanos, a tendência é que a resistência seja das mais fortes, vindo inclusive de políticos poderosos pressionados por lobistas de todos os tipos. A título de exemplo, em janeiro deste ano a prefeita de Washington, Muriel Bowser, que atualmente cumpre o seu terceiro mandato no cargo, fez forte apelo ao presidente Joe Biden, dizendo que o trabalho remoto estaria “matando” a capital norte-americana. E no começo de 2022, o prefeito de Nova York, Eric Adams, direcionou um forte discurso à população novaiorquina, dizendo que “vocês não podem ficar de pijamas o dia inteiro”, pois “não é isso que somos enquanto cidade”.

Em parte, faz todo o sentido do mundo que os prefeitos de duas das maiores cidades dos EUA advoguem a favor daquilo que, num primeiro momento, parece melhor para a economia. Uma economia ruim, obviamente, não serve a ninguém e leva a problemas sociais sérios. Mas, ao mesmo tempo, é justamente por serem os prefeitos de duas megacidades que as falas ácidas chegam a impressionar. Seria de se esperar fossem estar um tanto mais abertos às novidades da vida profissional, ainda mais quando elas representam, em muitos casos, aumentos na produtividade e satisfação dos funcionários. 

Dentre os muitos argumentos em prol do trabalho remoto — como a liberdade e a comodidade para trabalhar de onde a pessoa bem entender —, um que ganha destaque é a economia, que chega perto de 40 mil reais anuais. Economiza-se um bocado com descolamento (seja ele feito com transporte público, carros de aplicativos ou com o combustível do automóvel próprio), outro bocado com alimentação e até um bocadinho com lazer. E é por conta dessa redução palpável de gasto, que, muito embora tenha o poder de colocar a vida financeira de alguém nos trilhos, o trabalho remoto representa um perigo para a economia das cidades, em especial as mais caras, como Nova York ou São Paulo. 

A política vem tentando entrar em jogo para interceder a favor dos seus e desacelerar aquilo que veem como uma ameaça à economia, mas o que mais paira no ar é a dúvida: será que o processo é mesmo reversível?

Antes da pandemia de Covid-19, apenas cerca de 7% dos negócios no país tinham empregados trabalhando à distância. Hoje, porém, de acordo com estudo feito pela FGV, o home office é adotado por 33% das empresas no Brasil. O número, claro, é menor do que era nos dois anos anteriores, quando a pandemia ainda estava no auge. Em 2021, 57,5% das empresas no Brasil  estavam trabalhando de forma remota, de forma parcial ou total, incluindo as que já adotavam essa modalidade antes de 2020. Em outubro de 2022, o percentual caiu para 32,7%.

Nos EUA, até 2019 apenas 4,7% do trabalho era feito em casa. Hoje, mais de um quarto dos estadunidenses cumprem jornada nessa modalidade. Em janeiro deste ano, 27,2% dos dias trabalhados cumpridos foram de forma remota, segundo a pesquisa Working From Home Research, um relatório mensal sobre o trabalho remoto.

Fato é que cabe aos líderes pensarem em estratégias para lidarem com as transformações inevitáveis da sociedade. Ao que tudo indica, o trabalho híbrido veio para ficar e, portanto, se o impacto na economia é uma realidade, os esforços devem ser direcionados para a elaboração de mecanismos de adaptação àquilo que é tido como problema. Solucionar não é barrar, e vice-versa. Se considerarmos que cada transformação tem seus próprios resultados, seja fortalecendo ou possivelmente enfraquecendo a economia, tentar frear todas as mudanças que se anunciam talvez não seja inteligente. Não em 2023. Num mundo altamente tecnológico que muda a cada dia, não é possível preconizar os modelos ultrapassados só por que eles operam a seu favor. 

O futuro do trabalho está com a boca cheia de promessas e, cada vez mais, ele tende a se distanciar daquilo tudo que vivemos até aqui, fazendo com que os reinados durem por menos tempo e aumentando a velocidade com que modus operandis e mentalidades entram na lista do “passado” do trabalho. Um tópico que vem ganhando força nos últimos tempos é a semana de 4 dias, certo? Se nem mesmo a semana de trabalho de 5 dias está segura nessa revolução, então nada está. Os símbolos que por tanto tempo reverenciamos começam a desbotar, tal qual a produtividade acima de tudo, e o melhor é abraçar os novos momentos, tomando deles o que potencializa as virtudes de uma empresa, de uma cidade, de uma pessoa. 

O que mais vem pela frente?

Wirearchy — O termo, que brinca com a palavra hierarchy (hierarquia), sugere uma fuga dos organogramas rígidos. Trata de empresas em que as pessoas, a partir da colaboração e da conexão possibilitada pela tecnologia, assumem a responsabilidade individual e coletiva, em vez de dependerem da hierarquia. É um fluxo dinâmico, de mão dupla de poder e autoridade, com base no conhecimento, confiança, credibilidade e foco em resultados. 

Inteligência Artificial Talvez nenhum outro tema esteja tão em voga quanto esse. O Chat GPT mal chegou e já há um sentimento de estafa em cima dele. Quem abrir o LinkedIn e, numa primeira batida de olhos, não se deparar com matérias e comentários sobre essa IA que atire a primeira pedra. É só uma questão de tempo até que a automatização faça parte de mais e mais empresas, fazendo com que o toque humano seja buscado em áreas que a inteligência artificial ainda não chega. Devemos, então, desenvolver competências e capacidades tecnológicas necessárias para o sucesso da colaboração e convivência entre os seres humanos e robôs.

9h às 18h? — O que realmente importa é a entrega, não os horários em que se bate o ponto. Parece simples, mas até há pouco isso soava como um sonho distante. Atualmente, a tendência é que as pessoas tenham cada vez mais liberdade para definir os horários e até os dias de sua jornada de trabalho. É claro que, para funcionar, esse é um modelo que passa pelo bom senso das pessoas também, que precisam ter em mente que, mesmo com toda a liberdade do mundo, nem sempre a agenda própria vai ser seguida. De vez em quando será necessário se fazer disponível, seja em momentos críticos ou quando o trabalho conjunto é imperativo, independentemente que isso fuja da rotina pré-estabelecida.

Tudo isso, semana de 4 dias inclusa, tem um impacto. Nem sempre será positivo, nem sempre será negativo. Mas será. Se nenhum desses novos capítulos representar uma recessão econômica, melhor ainda. O capitalismo, aliás, também está sendo posto à prova na medida em que, a galope, entramos na quarta revolução tecnológica. O quadro de transformações aponta uma renovação de valores que já não condiz com o arcabouço ideológico que fez o capitalismo prosperar por tanto tempo. Nada está garantido, a não ser que novos tempos batem à porta.

Vivemos um importante momento de transição e de definição. E, em termos de progresso, não há nada pior do que fechar os olhos para os fatos.

Uma pessoa na casa dos seus vinte ou trinta anos, de classe média, acorda. Com as redes sociais buzinando desde que ela abre os olhos, não demora a prorromper uma certa pressão — às vezes sutil, às vezes nem tanto — para que um senso generalizado de realização, num âmbito pessoal e profissional, seja vivido. Seis, sete, oito da manhã e já há quem tenha jogado na cara uma ida à academia e um sorriso indefectível no rosto para encarar os perrengues do dia. Tão logo, mesmo que ainda sob o cobertor, essa pessoa se vê imersa em um mundo regido pela diretriz de se ir atrás, alegremente, daquilo que “te faz feliz” e conseguir tirar uma vida disso — e olha que essa pessoa nem sequer teve tempo de abrir o LinkedIn. Durante toda a vida do arquétipo tratado aqui, de vinte/trinta anos e de classe média, essa pessoa foi incentivada a perseguir os seus sonhos e transformar as suas paixões em uma carreira viável. Se por um acaso, nos anos de formação, ela pensou em se dedicar à medicina ou, vá lá, à advocacia, foi mais por gosto pessoal e menos por pressão parental.

“Insecure”, série da HBO, aborda a complexidade do trabalho no mundo de hoje. Foto: Reprodução

No entanto, a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão, o que acontece pela visão de que é inviável ter prazer na vida sem que se encontre o trabalho perfeito e se alcance o equilíbrio entre o que é a vida pessoal e o que é o trabalho. A impressão, muitas vezes, é a de que, sem isso, a felicidade real não vai ser possível e que a culpa, no fim, é sua. Se ao acordar para ir trabalhar a pressão já se faz presente, ao menos para martelar os ânimos, em algum nível, imagine então no trabalho propriamente dito. Neste contexto, esta pessoa se esgota fazendo um verdadeiro malabares mental para balancear suas expectativas pessoais, as demandas do mercado de trabalho e a realidade das oportunidades disponíveis, tudo isso enquanto busca construir uma relação saudável e significativa com o trabalho, além de quebrar a cabeça para fazer com que as finanças batam. É um prato cheio.

Será mesmo que aquele nove-às-cinco impessoal, bate-cartão-na-entrada e bate-cartão-na-saída, era tão ruim assim? 

O dia acaba e, veja só, ela não está necessariamente feliz, o que é algo natural na vida de qualquer um, mas, considerando a positividade profissional tóxica que o mundo circunscreve à ela, isso faz com que ela fique ainda pior, seja por não estar fazendo o que ama ou por estar fazendo o que em tese ama e mesmo assim não ter alcançado a tão almejada plenitude. Uma coisa leva a outra, feito a mais Millenial e Gen-Z das bolas de neve, e, agora com a cabeça deitada no travesseiro, os pensamentos não dão trégua. 

a expectativa de encontrar realização pessoal a partir da profissão pode trazer uma carga opressiva de pressão”

Eventualmente, dorme. E, então, para o bem e para o mal, o dia seguinte vem.

Parece exagero televisivo ou literário, coisa saída de uma ficção distópica de pouca imaginação, mas essa autocomparação que coloca o factual e o idílico lado a lado é uma dinâmica diária de muitas pessoas. A psicóloga Thais Andrade1, tomando como referência seus muitos anos de prática, reflete sobre a importância do trabalho para as pessoas:

“A partir da minha experiência, observo que o trabalho é não apenas central como também essencial na vida de grande parte das pessoas. Para uma vasta maioria significa sobrevivência e sustento; para outros, como deveria ser para todos, significa também a possibilidade de reconhecimento e satisfação pessoal. Por essa razão tantos caem em depressão quando, por exemplo, deixam de trabalhar ou se aposentam. Para muitos essa mudança é catastrófica, uma vez que inúmeras perguntas nunca questionadas começam a emergir: quem eu sou sem meu trabalho? O que faço comigo? O que faço com meu tempo? Do que eu realmente gosto? Como estão minhas relações pessoais? Além de, é claro, a preocupação em pagar as contas.”

A relação com o trabalho passou por transformações significativas ao longo das últimas décadas. Basta tomarmos os anos 1980 como parâmetro. Havia aquele grande culto ao trabalho, sendo praticamente inevitável que aquilo fosse o centro da vida de uma pessoa, que tinha uma mentalidade de dedicação e comprometimento total à carreira. E não era bem como vemos com mais frequência hoje, de “eu faço o que gosto, então é claro que me dedico”, mas uma lógica de “eu vou virar tudo o que me dá retorno, não importa o que seja”. Os engomados de Wall Street, tão bem vestidos quanto tão sem escrúpulos, vêm à mente, certo? De Michael Douglas a Leonardo DiCaprio, de Sigourney Weaver até Melanie Griffith. Aqui no Brasil, com o boom de agências de publicidade e o espírito empreendedor generalizado começando a florescer, não foi muito diferente. 

Aqui e lá — e em tantos outros “lás” —, foi a década dos yuppies, obcecados em fazer mais e mais dinheiro, independentemente do quanto isso fosse pesar na vida pessoal. Analisando em retrospecto, com os valores da sociedade atual em mente, isso pode soar como algo absurdo. De fato, houve uma mudança nessa perspectiva.

“A vivência da frustração, que nos acompanha desde o nascimento, é fundamental para o desenvolvimento do nosso psiquismo e para a constituição de quem somos”, diz Thais Andrade. “Wilfred Bion e Donald Woods Winnicott, psicanalistas ingleses, escreveram de forma muito profunda sobre o tema. Frustrar-se faz parte da natureza humana e a maneira como lidamos com a frustração desenhará nosso caminhar pela vida.

Agora, será que uma pessoa que nasceu no início dos anos 80 teria uma tendência a ter mais tolerância e capacidade de lidar com as frustrações do que, digamos, um nativo digital? Alguém que, ainda engatinhando, já teclava nos celulares e tablets? Acredito que já existam pesquisas nesse sentido. Talvez sim, talvez não (existem os aspectos da constituição de cada um). O fato é que a vivência da espera era outra e a percepção desta parece mudar a cada geração.”

O trabalho é visto atualmente de uma maneira diferente, como uma ideia que foi, ao mesmo tempo, expandida e reduzida.

Leonardo DiCaprio em O Lobo de Wall Street.

Expandida porque, na medida em que a gama de possíveis atividades profissionais vai se ampliando a cada dia, mais caminhos podem ser traçados — estamos na época em que jogar videogame pode dar dinheiro (imagine dizer isso a um menino dos anos 1980!). E reduzida porque, por mais importante que seja o trabalho, ele não deveria mais ter o poder de nos definir. “Eu não sou o meu trabalho” é um discurso recorrente. Há uma tendência crescente de enxergar o trabalho como uma parte importante da vida, mas não necessariamente como o único ou principal elemento definidor da identidade pessoal. 

A busca por propósito e satisfação pessoal no trabalho tornou-se mais evidente, e as pessoas estão cada vez mais dispostas a explorar suas paixões e interesses, transformando-os em carreiras viáveis. Bonito, não? Sim, bastante. Mas é justamente aí que as contradições começam a aparecer. Há pouco tempo, tanto em redes sociais de caráter profissional quanto em plataformas como o Instagram, rodou o seguinte desafio: “Diga quem você é sem citar o seu trabalho”. Isto é, não valeria dizer “comunicador”, “empresário”, “bartender”, nem nada disso. Difícil. Por mais que a vida pessoal hoje seja importante — talvez, sim, até mais importante do que a vida profissional —, ainda temos o costume de nos classificarmos a partir de nossas atividades profissionais. O que isso diz sobre nós? É um mero ricochete de outras gerações ou a coisa vai bem além? A reflexão ganha ainda mais camadas quando a digital pessoal é tão marcada na vida profissional, como ocorre amiúde na atualidade, na grande maioria de setores e até classes sociais. O trabalho, então, por mais que mudanças teóricas, e até práticas, tenham acontecido, segue tendo muitas vértebras em nossas espinhas dorsais. 

Será que, no fim, ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais?

Uma mudança notável e inegável é que as atividades que antes eram consideradas apenas hobbies, como gostar de filmes ou de games, agora podem ser encaradas como opções reais de carreira. Essa mudança de mentalidade, e realidade de mercado, permite que as pessoas busquem caminhos profissionais que estejam mais alinhados com seus interesses e habilidades, o que resultaria em uma maior satisfação e realização no trabalho — isso, claro, quando o bailado é feito sobre o campo da teoria. Por mais positivo que esse novo aspecto possa ser, a busca por uma carreira baseada em paixões e interesses também pode trazer um sem-fim de frustrações. Não vai ser toda vez que aquilo que se deseja vai ser alcançado, e se porventura isso acontecer, as expectativas nem sempre são atendidas. É a velha máxima do “cuidado com o que deseja, pois você pode um dia conseguir tudo”. A discrepância entre a realidade e as expectativas têm o poder de levar a um constante estado de insatisfação, criando um inquietamente interno psicológico que faz as pessoas estarem sempre em busca de algo mais, em busca daquela sensação de plenitude profissional, e pessoal, que muitas vezes é difícil de ser alcançada.

“Um dos problemas do mundo atual, onde estamos com nossos pés fincados, é que com tanta demanda, tanto excesso de informação o tempo todo, fica difícil encontrar espaço para o sentir — incluindo a felicidade ou o processo de descobrimento do que despertaria tal sentimento. Como encontrar espaço dentro de nós, e em nosso dia a dia, para que os momentos de felicidade possam existir? Ou para percebê-los?”, questiona a psicóloga. “Outro ponto é que mesmo aquilo que nos faz feliz vai dar trabalho, vai ter perrengues, dificuldades, restrições, escolhas.”

Jesse Einsenberg em “A nova vida de Toby”, minissérie da Hulu/Disney Plus

Lembra da frase “trabalhe com o que você ama e nunca mais precisará trabalhar na vida”, atribuída a Confúcio? Ela reflete uma noção completamente idealizada de que se pudermos fazer o que amamos, o trabalho se tornará uma fonte contínua de felicidade e satisfação. Acordar vai ser fácil, enfrentar o trânsito não vai doer, passar horas infindas na labuta vai ser mole. Convenhamos que Confúcio, ainda que no auge de sua sabedoria, nada sabia sobre levantar cedo para trabalhar. Estima-se que o filósofo chinês viveu no mundo que antecedeu Cristo, séculos e mais séculos atrás. No entanto, essa perspectiva otimista segue sendo amplamente divulgada e incentivada, muito embora não responda mais ao que entendemos por mundo há um bom tempo.

Que justiça seja feita, há perfis por aí, populares e conscientes, que questionam tais platitudes, como o Obvious aqui no Brasil. No geral, transmitem mensagens empáticas sobre trabalho, autoestima, as dificuldades enfrentadas diariamente por mulheres e tantos outros temas importantes. É necessário que esse contraponto exista para que se enfrentem as visões idealizadas e crie nas pessoas a sensação de que está tudo bem caso alguma coisa dê errado nas suas respectivas buscas por satisfação pessoal e profissional. É uma questão de perspectiva: a frase de Confúcio, dependendo de quem a encara, pode ser vista como “trabalhe com o que você ama e, assim, você trabalhará 24 horas por dia”. Ela expressa um ponto de vista mais realista, destacando que se dedicar exclusivamente ao trabalho que amamos pode levar a uma imersão constante, onde a linha entre vida pessoal e profissional se torna tênue.

Enquanto a primeira versão da frase sugere que a paixão pelo trabalho elimina a sensação de estar trabalhando, a segunda versão aponta para a possibilidade de uma sobrecarga e de sacrificar outros aspectos importantes da vida. É importante reconhecer que, mesmo em uma carreira apaixonante, haverá tarefas menos agradáveis e pressões profissionais. E, acima de tudo, haverá o compromisso, a responsabilidade, que, por si só, já têm um peso diferente. Assistir a um filme é uma coisa, assistir a um filme e ter que escrever sobre ele é outra; ter uma banda é uma coisa, ter que compor um número razoável de novas canções dentro do prazo e fazer 25 shows ao mês é outra. E por aí vai. Nem mesmo seguindo as vocações que respondem ao mais espiritual dos ensejos, por exemplo, impedem que os burnouts aconteçam.

“Correr não adianta”, analisa Thais Andrade, “precisamos de pausas. É nessa brecha que podemos, quiçá, encontrar opções criativas e mais saudáveis para sairmos do lugar. Porém, descer da esteira que nos faz correr e não nos tira do lugar implicará em lidar com a realidade externa e com nós mesmos. Isso inevitavelmente vai gerar sofrimento, mas também será uma oportunidade de desenvolvimento pessoal. Quando nos olhamos, além de nos depararmos com nossas limitações, também podemos nos deparar com nossos potenciais, a depender do quanto é possível tolerar a dor que a realidade nos impõe.”

“Em complemento”, finaliza ela, “estamos na era da positividade excessiva, em tempos em que a Fake News do ‘tudo é possível e está a seu alcance’ circula das mais diversas formas pelas redes sociais. Se por um lado, a geração Z se opõe ao modelo de trabalho excessivo das gerações anteriores; por outro, também são estimulados a fazer aquilo que amam e a seguir seus sonhos. Cabe destacar, porém, que o véu do excesso de positividade pode turvar a visão e deixar o coração iludido.”

O pessimismo recorrente em algumas gerações pode ser atribuído em parte à percepção de que alcançar a felicidade plena no trabalho pode ser uma expectativa irrealista. É importante lembrar que a felicidade não é exclusivamente derivada do trabalho. Outras áreas da vida, como relacionamentos e tempo livre, obviamente também desempenham um papel significativo no bem-estar geral. Em vez de buscar incessantemente a perfeição e a felicidade total no trabalho, é mais realista e benéfico buscar um equilíbrio saudável, encontrar propósito nas atividades profissionais e também valorizar os momentos de descanso e cuidado pessoal. 

É como diz Issa, protagonista de Insecure (2016-2021), série que, dentre muitos temas, lidou muito bem com as complexidades do trabalho na vida atual, especialmente quando ele se mistura com a vida pessoal: 

“Eu sou uma bagunça. Mas uma bagunça que está aprendendo a lidar com os seus problemas.”

“Insecure”, série da HBO. Foto: Reprodução

1Thais Fonseca de Andrade, psicóloga clínica e psicanalista em formação pelo Instituto da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo, Mestre em Ciências (USP) e Especialista em Psicoterapia Psicanalítica (USP) ([email protected]).