Olhando para a história da Humanidade e tudo que nos é contado nas instituições de ensino, quanto do que acreditamos ser verdade inconteste é baseado em fatos e evidências?
O cânone ocidental — que, no contexto e com requintes de ironia, também pode ser chamado de o “grande dono da verdade” — nos diz que os antepassados da espécie humana eram figuras bidimensionais, irreflexivas e não passavam de caçadores-coletores que se adaptavam ao meio de maneira inata. A base desse viés, claro, é o Iluminismo, que define as noções modernas de liberdade, civilização, Estado e democracia. Esse dois-mais-dois-igual-a-quatro, apesar de simplista, vem sendo reproduzido pela cultura do Ocidente há tempos. Mas, parando para pensar, especialmente neste momento em que a reparação histórica é pauta quente e cada vez mais pega-se (justificadamente) no pé de homens brancos outrora tidos como heróis, será que, na realidade, a conta simplista não soa como a matemática de uma rejeição eurocêntrica a sociedades distintas?
Para questionar as visões consagradas sobre a história da Humanidade, e com a esperança de levantar mais pilastras sobre as quais possamos nos fundamentar, chega o livro “O Despertar de Tudo: Uma Nova História da Humanidade”, escrito em parceria pelo antropólogo americano David Graeber e pelo arqueólogo britânico David Wengrow. A perscrutação que se dá ao longo das mais de 600 páginas da obra é fruto de uma pesquisa longuíssima, dando ao leitor um parrudo senso do porquê deveríamos, no mínimo, repaginar tudo aquilo que nos foi ensinado sobre a nossa história. Rechaçar, aliás, não está fora de debate.
O grito, é bem verdade, já é dado há algumas décadas, ecoando de ideias proferidas por Claude Lévi-Strauss e outros antropólogos nos anos 1960. Porém, aos olhos dos acadêmicos, o que antes não tinha fôlego para se alastrar, simplesmente não pode ser ignorado e a mudança agora tem a chance de ser real.
Está mais claro do que nunca que sociedades pré-históricas e povos indígenas criaram formas de organização político-sociais tão desenvolvidas quanto as que conhecemos, celebramos e vivemos. Com a arqueologia gozando de sua idade de ouro — devido à série de revoluções tecnológicas recentes —, milhares de arqueólogos estão fazendo descobertas a todo vapor na China, na África Subsaariana, no Brasil e nos EUA. É possível, hoje, reconstruir mais e mais aspectos da Antiguidade, entendendo toda a complexidade das suas dietas e formas de mobilidade. Agora, e somente agora, começamos a saber dos detalhes de regiões que previamente foram descritas como se nada tivessem a oferecer.
Por mais que as interpretações conceituadas sigam irradiando através de sua força orgânica e da ajuda de obras populares, como “Sapiens“, de Yuval Noah Harari — com a qual Wengrow e Graeber fazem questão de antagonizar —, o impacto dessas novas técnicas arqueológicas faz surgir um renovado arcabouço de perspectivas. Como resultado, temos o enfraquecimento do arco narrativo que começa com o ser-humano primitivo sem inteligência e consciência político-social — culturalmente representado por povos cruelmente colonizados —, e chega às cidades, onde a democracia toma forma e progride. “O Despertar de Tudo” põe em xeque esse modelo linear de evolução que, sutilmente (ou não tão sutilmente assim), nos apregoa a noção de que um povo é melhor do que o outro. A grande repercussão do livro, no entanto, ficará desconhecida a um de seus autores: poucas semanas depois da conclusão do livro, em 2020, David Graeber morreu subitamente, aos 59 anos. É o companheiro David Wengrow que agora toma a frente das controvérsias, sendo uma das principais caras e vozes dessas reinterpretações e redescobertas tão importantes para o nosso futuro.
Mudar o curso da História ao olhar para o passado parece ainda mais fundamental nos dias de hoje, já que devemos escapar de uma visão de mundo reduzida que diminui a amplitude de nossa percepção sobre o que está acontecendo no presente. Mais do que nunca, o contexto nos apresenta enormes desafios e, ao abrirmos o olhar coletivo para enxergar outras possibilidades e naturezas, aumentamos o leque de potenciais alternativas para o que vem pela frente.
Quem sabe assim a matemática daqui adiante seja de soma, não de subtração.