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“Deságue” e as figuras mitológicas do Brasil

Em sua busca de desvendar as narrativas do Brasil, a Amarello apresenta Deságue, um filme de Pedro Perdigão.

Se você quer mergulhar em uma história legitimamente brasileira, Deságue é uma bela oportunidade. Realizado em película, o filme de Pedro Perdigão nada pelas águas do Rio São Francisco, entre Alagoas e Sergipe, onde a natureza exuberante da região serve como pano de fundo para um enredo enraizado em mitos e mistérios brasileiros. Narrando a jornada de dois pescadores cujas vidas são entrelaçadas por uma figura mítica, a obra lida com temas que estão cravados na tessitura da cultura nacional. 

A proposta de se debruçar sobre uma parte importante do imaginário coletivo do país direciona nossos olhos para uma narrativa ancestral, profundamente conectada à própria essência do rio. As lendas do Rio São Francisco, transmitidas oralmente através das gerações, desempenham um papel crucial no ideário brasileiro, servindo como uma fonte de identidade cultural e conexão com o passado.

Estas lendas, muitas vezes envolvendo seres mitológicos como Boitatá, Curupira e Iara, são fundamentais para a compreensão da relação do povo brasileiro com a natureza e com suas próprias origens. Elas não apenas enriquecem as narrativas regionais, mas também refletem a riqueza e diversidade da cultura brasileira como um todo. Assim, o filme não apenas conta uma história singular, pouco traduzida para o formato audiovisual, mas também se insere em um contexto mais amplo de tradição e folclore, contribuindo para a preservação e celebração dessas lendas tão preciosas para a identidade nacional.

Além da narrativa e da poesia visual, Deságue é enriquecido pela poesia que permeia cada cena, com a narração de um sonoro poema dividido em três partes: “Nasceu pro rio”, “A água sussurrou” e “Segredos que só o rio sabe”. A título de exemplo, em um desses momentos, o poema evoca a emoção e a conexão dos habitantes ribeirinhos com o Rio São Francisco:

“O menino escuta a história de um tio ou de uma avó
O pai saiu de jangada e a jangada voltou só”

Essas seções, entrelaçadas com as imagens deslumbrantes captadas em película, transportam os espectadores para um universo mágico onde o tempo parece desacelerar, permitindo uma imersão completa nas histórias e mistérios do rio.

Para falar sobre o filme e refletir sobre os seus desafios e significados, conversamos com o diretor Pedro Perdigão.

Qual o significado de fazer um filme como esse, que evoca a mitologia das águas, em tempos tão rápidos e tão propensos a esquecer do passado como os atuais?

Pedro Perdigão: Colaborar com a Amarello, principalmente em um tema como esse, nos coloca em uma posição de proximidade com as raízes do nosso país. É lindo pensar quantas histórias existem ou ainda podem existir no nosso imaginário como território. Mais lindo ainda é pensar como elas são capazes de atravessar gerações e provocar múltiplas interpretações. Nosso filme é apenas mais uma dessas possíveis interpretações.

O Rio São Francisco, claro, desempenha um papel central na narrativa. Como entrar em contato com o espírito do Rio São Francisco? E a pergunta vale tanto em termos pessoais quanto de realização audiovisual, se é que não são os mesmos. 

PP: Realmente esses termos se confundem, se embaralham – formam um grande borrão. Sempre aprendi a ter um respeito enorme pela força das águas. Seja no mar ou em rios. O Rio São Francisco tem segredos que só ele sabe, ele é um universo grandioso. Foram duas maneiras principais que me pegaram: escutando as pessoas que ali vivem e navegam; e mergulhando no Rio aberto ao seus atravessamentos. 

Conte um pouco sobre os porquês da escolha de filmar em película.

PP: Venho da fotografia, de uma prática que valoriza as texturas, sensações e atmosferas. Filmar em película me ajuda a encontrar esses caminhos. Outro motivo fundamental são as restrições que a película promove. No set precisamos ser precisos. Valorizo muito o improviso, mas a película nos faz escolher bem o que rodar, nos faz estar atento ao que o lugar nos apresenta em relação a luz, atmosfera e paisagem. Faz os atores estarem próximos do que precisam transmitir. Faz com que todos os colaboradores do filme estejam perto de suas funções.

Pensando que o roteiro divide a história em 3 partes, quais os desafios de se filmar cada uma delas com características particulares mas, ao mesmo tempo, fazer com que elas se conversem e se complementem?

PP: O filme precisa estar na cabeça durante todo o processo. Isso amarra tudo. O projeto vai levantando perguntas o tempo todo. São as pequenas escolhas em todas as etapas que vão moldando o filme. Usamos alguns recursos diferentes para evidenciar as diferentes atmosferas que gostaríamos de transmitir em cada parte. Essas escolhas podem vir durante a filmagem ou nas etapas de pós. 

O filme tem elementos que você explorou em outros momentos da sua carreira, como a vermelhidão que se apodera da tela quando a figura mítica aparece. Aqui esses elementos são elevados a níveis mais profundos. Você vê “Deságue” como um ponto culminante da sua trajetória profissional?

PP: Todo exercício me leva a uma direção. ‘Deságue’ tem uma grande importância para mim por todo seu processo. Ele me lembra a maneira que mais gosto de fazer filmes – uma história que provoca, perto de pessoas inspiradoras, em contato com um lugar de força maior, poucas pessoas no set e muita vontade de todos em realizar – do pré ao pós. Fazer um filme é algo muito colaborativo, e isso me move. Agradeço muito a todos que entraram nesse processo conosco. 

Como você entende o papel do cinema, e da arte como um todo, em explorar e preservar as tradições e mitologias culturais?

PP: Entendo como algo que faz você querer chegar perto.


DESÁGUE
Um filme de Pedro Perdigão
Narrado por Zé Manoel

Roteiro – Tadeu Bijos
Direção criativa – Tomás Biagi Carvalho
Direção de fotografia – Daniel Venosa
Elenco Nirvana Gonçalves de Souza, Alan Fontes e Luciano Pedro Ferreira de Lima 
Beleza – Dindi Hojah
Figurino – David Pollak
Cauda sereia – Thiá Sguoti
Trilha sonora – Fred Demarca e Marcelo Gerab
Sonorização e Mixagem Final – Marcelo Gerab
Músicas – Fred Demarca
Montagem – Luca Narracci, edt.
Cor e Animações – Flip
VFX – Cajamanga
Produção executiva – Marina Ferriani
Gráficos – Mateus Acioli
Assistente de roteiro – Antônio Pedro Ferraz
Primeiro assistente de câmera – Gabriel Moska
Assistente de direção/produção – Matheus Nascimento Monteiro
Ordem do dia – Rodrigo Lacerda e Rafael Lundgren
Produção local – André Fontes Torres
Participações especiais – Yasmin Pereira dos Santos, Livia Gomes Fontes, Paulo Lima dos Santos, João Marco Teixeira e Mike Nascimento dos Santos

Agradecimentos – Dan, Adriana, Alef, Joaci do Pandeiro, Gedevaldo Bezerra, Thiago Fontes Barros, Fagner Almeida Bezerra, Caru Magano, Handred e Victor Hugo Mattos