Quilômetros e mais quilômetros no asfalto, trecho de terra dentro de um carro, sete horas em um barco e uma longa trilha a pé parecem uma odisséia, mas na verdade fazem parte de um ritual. É a preparação do homem branco que ruma em direção ao Alto Xingu. A distância percorrida prepara aos poucos o viajante para o mergulho no coração da mata e na alma do povo Mehinaku. O homem branco é um convidado na aldeia, por isso nada de colonizar, catequizar ou “civilizar” os povos do Alto Xingu. A idéia é vivenciar, sentir, fotografar, trocar, registrar gestos, olhares e o dia a dia de uma tribo que resistiu à colonização.
Carregados de influências indígenas, a maioria dos brasileiros não conhecem os índios. Pensam nele como seres mágicos, personagens de histórias fictícias e tem visões preconceituosas ou idealizadas sobre os indígenas. O que todos esquecem é que muitas vezes o brasileiro já nasce falando, comendo e vivendo como muitos índios. Falamos tupi, mesmo sem saber. Por exemplo: “Velha coroca” é velha resmungona – kuruk é resmungar em tupi.
As influências indígenas estão na língua, na culinária, no folclore e no uso de objetos caseiros diversos, como a rede de descanso. O folclore do interior brasileiro é povoado de seres fantásticos como o curupira, o saci-pererê, o boitatá e a iara, entre outros. Na culinária brasileira, a mandioca, a erva-mate, o açaí, a jabuticaba, inúmeros pescados e outros frutos da terra, além de pratos como os pirões, entraram na alimentação brasileira por influência indígena.
ALTO XINGU
Visitar os Mehinaku é revisitar a história. É voltar no tempo e refazer os passos dos colonizadores, só que dessa vez com suavidade. Apenas registrando a beleza do diferente. O povo Mehinaku sempre viveu na região do Alto Xingu. Eram muitos, mas o contato com os brancos trouxe doenças e mortes.
Em 1887, a expedição liderada pelo alemão Karl Von Den Steinen encontrou cerca de 3.000 Mehinaku, vivendo em duas aldeias. Esse primeiro contato dos Mehinaku com o homem branco foi desastroso. Epidemias de sarampo e gripe mataram crianças, adolescentes e adultos. Hoje eles são aproximadamente 200, que vivem às margens do Rio Curisevo, no Parque Nacional do Xingu, município de Gaúcha do Norte (MT),seguindo as tradições de seus ancestrais.
Os Mehinaku não possuem escrita, por isso muito de sua historia é transmitida através de mitos. Seu idioma é o Mehinaku, do tronco Aruak. Todos os membros das duas aldeias mehinaku (Utawana e Uyaipiuku) falam a língua materna, os mais jovens falam o português, mas preferem se comunicar em mehinaku, mantendo viva a língua, a cultura e a história.
BELEZA DO RITO
Chegar à tribo a noite em meio as comemorações da Yamarikumã é um privilégio, principalmente se você é mulher. Mulheres com crianças no colo dançam na praça central da aldeia. Na comemoração do Yamarikumã as mulheres invertem a situação e assumem o comando da tribo por assim dizer. Durante o rito elas usam armas, movimentos tipicamente masculinos, ornamentos de penas e chocalhos nos tornozelos, que normalmente são usados por homens; lutam, inclusive, o huka-huka. As mulheres entoam canções que se referem à sexualidade masculina. Os homens, que podem ser agredidos, se retraem.
Os Mehinaku contam que antigamente as mulheres mandavam na tribo, e possuíam a flauta do Jacuí. Numa revolta os homens tomaram a flauta e por conta disso o trabalho pesado fica por conta das mulheres. A flauta do Jacuí, símbolo de poder, não pode ser olhada pelas mulheres. Se alguma delas olhar a flauta será obrigada a ter relação sexual com todos os homens da Aldeia, com exceção dos parentes de sangue. Por isso a flauta permanece escondida, bem protegida do olhar feminino. Durante o Yamarikumã as mulheres recuperam o poder, mas continuam proibidas de olhar a Jacuí.
DIFERENÇAS
Para viver na tribo o visitante deve ser adotado por uma família indígena e passa a fazer parte daquele clã. Quem visita a tribo dorme na maloca da família, onde terá pai, mãe, irmãos. As casas estão dispostas em círculos na aldeia, em torno da praça central, que é usada para cerimônias, ritos, danças e prática de esportes tradicionais.
Querer fazer parte da tribo sem destoar é tarefa impossível. Ao pisar na aldeia, crianças e adultos correm em sua direção para olhar as diferenças. Pegam, apertam, cheiram os visitantes. Tudo isso ao fundo de um burburinho em mehinaku. Comentários diversos acontecem sem que o homem branco entenda sequer uma palavra. Tentando fazer parte da cultura local, os visitantes se arriscam apresentando a sua nudez. Mais uma vez, a diferença é brutal, os indígenas têm por beleza e estética padrões diferentes dos nossos. Imberbes por natureza, os mehinaku estranham os pelos espalhados pelos corpos dos visitantes. A estranheza do novo e do diferente reforça a sensação de que o que não é espelho ou extensão de mim mesmo, eu não entendo.
A admiração de Pero Vaz de Caminha registrada em carta, durante a sua estada no Brasil entre 22 de Abril a 10 de Maio de 1500, mostra o espanto com as diferenças. Na carta, ele diz que as moças tinham “suas vergonhas tão altas, tão serradinhas e tão limpas de cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não tínhamos nenhuma vergonha” (P. V. Caminha, ibidem: 36-7). Em outra parte, conta de outra índia que “sua vergonha (que ela não tinha) tão graciosa, que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, fizera vergonha, por não terem a sua como ela” (ibidem: 40).
QUEM TEM CHEFE
Nunca uma frase foi tão falsa como esta: “Quem tem chefe é índio”. Conviver em uma tribo é aprender que existem líderes naturais que desempenham algumas tarefas com maior habilidade, como caçar, construir canoas, mas nunca chefes. O respeito pelos mais velhos, e pelo conhecimento, é visível. O cacique tem importância e destaque, bem como os pajés ou xamãs, mas não reina sobre os outros integrantes da tribo.
Os portugueses sabiam disso desde 1501, quando Américo Vespúcio, cosmógrafo da segunda expedição enviada por Dom Manuel, relatou sua experiência junto aos gentios. Depois de passar 27 dias comendo e dormindo entre os “animais racionais” da Nova Terra, ele conta: essa gente não tem lei, nem fé, nem rei, não obedece a ninguém, cada um é senhor de si mesmo.
O indivíduo tem importância, é respeitado em sua singularidade. Para se ter uma idéia, o nome de um mehinaku é sua propriedade. O cacique Yumuim deu o seu nome ao neto recém nascido, por isso teve que adotar outro nome. Hoje ele se chama Kutapiene.
BALANÇO
O impacto da colonização sobre as populações nativas das Américas foi imenso. Estima-se que a população indígena do território brasileiro em 1500 variava entre 1 e 10 milhões de habitantes. Acredita-se que cerca de 1.300 línguas diferentes eram faladas. Tribos inteiras foram dizimadas em conseqüência do contato direto e indireto com os europeus.
Hoje, o Brasil abriga mais de 200 tribos, sendo que cerca de 50 de índios permanecem isolados. Acredita-se que 180 línguas, pelo menos, são faladas pelos povos indígenas.