Ao ser convidada para escrever sobre educação nesta edição, cujo tema é espaço, a imagem primeira que me veio é a do “jardim interno” – o jardim que cada um de nós, cada criança, cada educador, cada pai ou mãe tem dentro de si.
Por muito tempo, a grande maioria das pessoas entendeu a educação como passagem de conteúdo e cultura para aquele ser em formação. Apenas mais recentemente vêm tomando força as correntes que reconhecem a potência intrínseca do ser humano – que a riqueza, o potencial de ser uma pessoa em sua plenitude já faz parte da criança, e que cabe aos adultos possibilitar que esse potencial seja revelado.
Qual, então, o papel do educador, senão abrir ESPAÇO e oferecer oportunidade para que aquela semente germine, cresça e floresça, e ofereça ao mundo sua cor, textura, formato e beleza única, seu jeito próprio de estar no mundo?
Claro que tantas coisas deste mundo a criança precisará entender; compreender seu funcionamento, suas leis, as regras de convivência. A criança tem o mundo a descobrir e uma infinidade de coisas para apreender.
A experiência da observação da criança, uma observação atenta e cuidadosa, traz a nós, adultos, muitas descobertas a respeito não apenas da criança, mas de nós mesmos, de nossa humanidade. Ao observar o brincar espontâneo da criança a partir de um lugar de contemplação, e conseguir admirar e se surpreender, nos conectamos com nossa própria potência.
Junto com um grupo de educadores, estivemos durante dois anos exercitando a observação do brincar espontâneo da criança. Dialogando com os registros e imagens do Território do Brincar (Instituto Alana), que percorreu o Brasil documentando a criança e seus gestos nas mais diversas paisagens e culturas brasileiras, estivemos em contato não apenas com aquela criança que observávamos, mas com as crianças em nosso entorno, alunos, filhos, e também a criança que vive dentro de nós.
Como mãe de três filhos, educadora e psicóloga, quero compartilhar que essa experiência foi muito transformadora para mim. No decorrer do meu mestrado em Prática Social Reflexiva e em interação tão profunda com as crianças em seus gestos genuínos do brincar espontâneo, o exercício da observação foi proporcionando uma ampliação do olhar muito marcante. Percebi, no decorrer do processo, em mim e nos educadores envolvidos, uma compreensão mais aguçada da criança – uma maior possibilidade de conexão, de presença, de interesse mais profundo e genuíno pela criança! Foi ficando muito claro que a transformação que queremos ver no mundo se inicia em nós mesmos, e que a conexão e a relação que estabeleço com a criança dependem da conexão e da relação que estabeleço comigo mesma.*
Na conexão com a criança, é fundamental a nossa presença. E presença no sentido mais pleno, no aqui e agora, em contato comigo mesma, com meu jardim interno, minhas potências e vulnerabilidades, minha consciência, minha humanidade. É muito importante que eu consiga diferenciar o que é parte do meu jardim e o que é parte do jardim da criança. O espaço de cada um neste mundo. É muito importante que eu tenha consciência do que são minhas expectativas para esta criança, o que eu gostaria para ela, e o que é potência, interesse e movimento natural dela. Cada ser humano é diferente e único, e, se nos abrimos para o novo, nos surpreendemos.
Ao adulto, cabe dar espaço e oportunidade para que a criança floresça. Isso significa impor menos, ter menos expectativas, e se surpreender mais. Respirar três vezes antes de intervir em momentos que, a princípio, não compreendemos; mantermos, antes, a conexão com nós mesmos para poder nos conectar com a criança, com toda sua potência, para que ela possa florescer em seu jardim e oferecer suas cores e aromas.
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O brincar livre da criança é absolutamente fundamental para que ela possa entrar em contato com seu jardim – suas potências, suas limitações, seus desejos, interesses, caminhos. Brincar pressupõe movimento interno e externo – a criança brinca com seu corpo todo e, nesse brincar, conecta seus mundos interno e externo.
A criança brinca porque tem necessidade de se movimentar, de explorar, conhecer, vivenciar, experimentar. Brincando, ela aprende sobre si e sobre o mundo que a rodeia. Além do desenvolvimento do seu corpo (e cérebro), a liberdade no brincar exercita a imaginação, escolhas, coragem, confiança, atenção, concentração, entusiasmo, frustração, perseverança, memória, tolerância. Na convivência e na relação com os outros, a criança vai aprendendo a esperar, ajudar, observar, ceder, seguir regras, organizar, cumprir ou propor ordens, resolver, organizar. Tantas coisas acontecem nesse exercício do brincar livre, espontâneo e natural das crianças!
Entretanto, é muito desafiador, nesses nossos tempos, que a criança tenha a oportunidade de brincar verdadeiramente, livre e espontaneamente – com toda sua potência. As crianças, com suas agendas cheias, passam a maior parte de seu dia na escola e em atividades após a escola que ocupam seus tempos e limitam as possibilidades de brincar. Ainda desafiador para todas as famílias, no curto tempo que lhes resta ficam distraídas de si mesmas com jogos eletrônicos, internet e rede sociais. As crianças ainda não têm discernimento suficiente para brecar a vontade de ficarem distraídas nos joguinhos e raramente fazem a escolha de se desconectar de seus aparelhos para brincar. Cabe a nós, adultos, garantir que esses espaços existam na vida da criança. Somos nós os responsáveis por garantir as coisas realmente fundamentais para o seu desenvolvimento. Por vezes, nos tornamos “impopulares” ou chatos diante dos nossos filhos ou alunos ao impor restrições e colocar limites – seja para os eletrônicos ou outra situação cotidiana. Mas, em contato com o nosso jardim e nossa consciência, faremos as escolhas e encararemos a árdua tarefa de educar e garantir o espaço externo e interno para que o brincar espontâneo, tão fundamental, possa acontecer na vida das crianças.
“Todo jardim começa com um sonho de amor.
Antes que qualquer árvore seja plantada
ou qualquer lago seja construído,
é preciso que as árvores e os lagos
tenham nascido dentro da alma.
Quem não tem jardins por dentro,
não planta jardins por fora
e nem passeia por eles…”
– Rubem Alves
*Para assistir ao documentário sobre esse processo com os educadores que observavam o brincar espontâneo da criança, acesse http://territoriodobrincar.com.br/videos/documentario-territorio-do-brincar-dialogos-com-escolas/