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Tacita Dean: O esmaecer das coisas

por Tamara Klink

“Todas as coisas pelas quais me sinto atraída estão prestes a desaparecer”, afirmou certa vez Tacita Dean. A artista tem, de fato, um fascínio pelo limiar da ruína, notável tanto no mote de suas obras quanto nos próprios suportes de que ela se utiliza. Estes servem como forma de resistir e, ao mesmo tempo, refletir sobre a essência por trás da construção de toda e qualquer memória: o desejo de combater a própria ameaça do tempo, do esquecimento. Dele surge a criação de arquivos, a consagração de lugares e as efemérides. Não à toa, o uso do filme, por seu caráter documental e ao mesmo tempo ilusionista, tornou-se uma das maiores ferramentas de Dean.

Essa escolha fez com que a britânica nascida em Canterbury (1965) venha sendo enquadrada por críticos como nostálgica diante de uma inevitável supremacia digital. Dean, que é considerada uma das artistas mais importantes de seu país e que só este ano ganhou mostras no Pompidou (Paris, França) e no Shrem Museum of Art (Califórnia, EUA) e atualmente possui duas exposições individuais em importantes instituições (Still Life, que ocupa a National Gallery e a National Portrait Gallery até 28 de maio, e Landscape, na Royal Academy of Arts até 22 de agosto, em Londres), rebate a crítica dizendo que nostalgia é uma saudade de um tempo passado, quando seu trabalho trata do presente.

Ela considera tanto os filmes 16 e 35 mm quanto a pintura e o giz — presentes na grande maioria de suas exposições — meios que, se bem “seguidos” pelo artista, podem trazer algo totalmente inesperado, “um cachorro que cruza um campo seguindo seu próprio nariz”, como ela definiu ao The Guardian em março deste ano. Uma troca que não ocorre com a mídia digital, na qual “nada pode realmente acontecer que não seja planejado”, ela completou na mesma entrevista. Seu trabalho se efetua de maneira intuitiva, exatamente como ela descreve. Observá-la trabalhando concentrada em seu laboratório, em meio às milhares de fitas de negativo as quais ela corta, cola e pinta, um a um, confere uma coerente imagem a essa afirmação.

Sob a premissa de seguir o próprio meio até seu fim, a artista encena verdadeiros “réquiens” em loopings contínuos de quadros longos e lentos realizados com a câmera estática, conferindo uma atmosfera contemplativa aos seus filmes, que hoje já somam mais de quarenta, todos produzidos em 16 mm. Ela assume que a lentidão recorrente é, em parte, determinada pela evolução de sua artrite crônica, mas também deixa claro que, de longe, essa condição agrega qualquer significado a eles.

Em meados dos anos 1990, a britânica lançou uma série de filmes que traziam como pano de fundo a paisagem marítima — influência natural do mestre conterrâneo J. M. W. Turner, cujas pinturas eram dominadas pelo mesmo gênero —, sendo os mais notáveis aqueles que aludem à trágica desventura do velejador amador Donal Crowhurst, como Delft Hydraulics (que registra as últimas ondas produzidas num laboratório marítimo na Holanda) e Disappearance at Sea, ambos de 1996. Este segundo, que registra os últimos faróis da Inglaterra e da Escócia, foi o que fez a artista ser indicada, em 1998, ao Turner Prize, um dos mais importantes da arte contemporânea mundial.

De sua produção nos anos 2000, destaca-se Kodak, filmado em 2006 na fábrica da marca, a última a produzir filme 16 mm na Europa, em Chalon-sur-Saône, na França. Dean precisava de rolos para sua câmera e foi informada por um vendedor em Nova York que aquela era a única que ainda os produzia. Munida de seus cinco últimos rolos, ela decidiu gastá-los para registrar a fábrica, partindo da ideia de um filme que representaria “seu próprio estoque obsoleto em si mesmo (…), um meio que está prestes a ser exaurido”, como definiu para a revista Kultureflash. Em 44 minutos, Dean se vale tanto do preto e branco quanto da cor para apresentar close-ups do maquinário, sequências de seus já conhecidos quadros estáticos de espaços misteriosos, alternados com vistas abertas que capturam a rotina dos operadores, encerrando com uma imagem da área, já desértica, destinada à embalagem do produto.

Mais adiante, ela definiria a produção de Kodak como uma homenagem ao filme analógico e um lamento por seu desaparecimento, além de ser a captura de uma bela jornada que, se não estivesse em incipiente obsolescência, ela jamais teria o interesse em registrar. Sua paixão pelo esmaecer das coisas sempre a leva a criar essas belas despedidas. Esta acabou sendo uma ação premonitória da artista, que não tinha conhecimento de que a a fábrica anunciaria o fim da produção do filme 16 mm poucas semanas depois de sua visita. No ano seguinte, ela seria finalmente demolida. Kodak traz a mesma melancolia do limiar do desaparecimento presente em produções anteriores, mas acaba se sobressaindo por trazer como protagonista algo muito caro à artista.

Essa sensação de luto que envolve o prelúdio da perda pode ter sido também o que a motivou a examinar, nos últimos quinze anos, a terceira idade de artistas como o radical italiano Mario Merz — ao qual a artista atribui certa semelhança com seu próprio pai, falecido em 2010, aos 88 anos —, o coreógrafo norte-americano Merce Cunningham, bem como Julie Mehretu, Claes Oldenburg, Cy Twombly, entre outros. Uma série de nove deles estará na mostra Still Life, na National Gallery. Com eles, a artista parece completar sua mensagem ao mostrar que o filme pode servir como metáfora da vida: mesmo que por um breve momento possa se criar a ilusão de um tempo suspenso, todas as coisas ligadas a ele terão um começo, um meio e um fim. Quando um jornalista a questionou com qual frequência a “narrativa da jornada” levava à morte em seu trabalho, ela respondeu: “Bem, sempre. E esta é a parte mais aterrorizante.”