Antes do Feminismo: portfólio Berna Reale
Pensar sobre o humano e seu comportamento coletivo tem sido meu interesse há alguns anos. As relações entre os seres que pensam e se reconhecem estão cada vez mais afastadas do que os fazem iguais, mesmo que diferentes.
Quando escolho uma figura de mulher ou símbolos femininos para fazer perguntas e instigar reflexões, o que me estimula em primeiro é a relação social na qual estão inseridos.
As meninas em “Rosa Púrpura”, em rosa e branco, estão ali pela posição de fragilidade, de vulnerabilidade, ao serem colocadas como possível objeto de abuso pela posição que ocupam e pelas roupas que vestem. A mulher de véu, com olhos vedados pela mão do homem, apresenta uma situação de violação. Em grande parte do mundo oriental, o sexo masculino é o que dita as regras do ver, e, nesse mundo, a mulher não é visível.
A mulher que luta no vazio em “Vã” briga por uma igualdade, é inconformada, não aceita regras de castidade, não aceita títulos nem obrigações, luta em pé em cima do ferro já retorcido pela trama de tantas disputas, onde o adversário, de tantos nomes, já não tem rosto.
O corpo no gelo é quase invisível em “A Frio”. Os abafadores de som talvez sejam para não escutar que por ser diferente, se é visto menor. O corpo ali não tem sexo e o que o faz menor? A cor? A ausência de pelo?
Em “Número Repetido”, onde aludo ao torturante trabalho ao qual o chineses são submetidos, ou em “Palomo”, quando tento provocar a reflexão sobre a tortura e o abuso de poder , entre tantos outros trabalhos que fiz, não existe a figura da mulher, não existe o símbolo do feminino visível, mas, de alguma forma, estão ali também, de algum modo frequentam aquela realidade.
Antes de pensar no feminino, me pergunto onde perdemos a capacidade de ver o outro como igual, seres da mesma espécie, onde perdemos o respeito pelo que é humano?
***
As performances de Berna Reale aqui reunidas – estejam elas registradas em vídeo ou fotografia – foram realizadas entre 2011 e 2015, ou seja, antes de dois eventos que escancararam uma há muito preparada mudança de paradigma civilizacional no Ocidente: na Europa, o Brexit; nos Estados Unidos, a eleição de Donald Trump. Esses acontecimentos, como sabemos, são ilustrativos de câmbios e deslocamentos maiores, que envolvem fatores como a geopolítica do Oriente Médio e a chamada “crise de refugiados” na Europa, o crescimento e recrudescimento da extrema-direita em países de tradição esquerdista, o tão discutido conceito da “pós-verdade”, entre outros.
Esse panorama, complexo demais para ser propriamente apresentado (e quanto mais discutido) neste pequeno texto, é aqui lembrado brevemente com o intuito de contextualizar a produção desta artista e apontar como as obras de arte de fato sensíveis ao seu tempo são capazes de não apenas se sintonizar com o zeitgeist, mas até mesmo de antecipá-lo.
Em sua prática, a artista transfigura-se em diversos personagens – fantásticos, estranhos, irônicos – para trazer suas performances à realidade, conferindo ao mundo de todo dia um caráter onírico, transformando-o em um sonho limítrofe ou um pesadelo do qual, mesmo que queiramos, não conseguimos acordar.
Se isso era particularmente claro nas performances de rua realizadas em Belém, esse poder transfigurador se mostrou em toda sua potência nas performances fotográficas realizadas para o projeto “Precisa-se do Presente”. Nele, a artista viajou aos países integrantes do BRICS, onde, por não ter a estrutura necessária para uma produção complexa ou por se deparar com políticas públicas de censura, deu vida a alguns de seus personagens em locais privados e depois, por meio de fotomontagem, inseriu-os em ambientes públicos – sem que o artifício acarretasse qualquer perda ao efeito final.
As obras de Berna Reale parecem ter o dom de retirar seu observador do real, transportá-lo para o universo da fantasia. No entanto, adentrar o universo performativo de Berna Reale significa imediatamente ser expulso de volta à realidade, agora ressignificada: basta o espectador entregar-se à magia da ficção para perceber o mundo que se esconde por trás da arte, para absorver a imagem da barbárie como alegoria da civilização (imagem esta que finalmente, em 2016, perdeu seu caráter especular e tornou-se realidade aos olhos de agentes sociais que até então haviam escolhido não ver).
Com suas performances, suas imagens misteriosas, marchas oníricas rumo a lugar nenhum senão o mesmo, Berna Reale cria uma disrupção da realidade apenas para permitir que, dela, essa mesma realidade irrompa com mais força do que antes. A presença se reafirma pela ruptura, mais potente do que nunca – irrupção esta que significa, também, que sua crítica nunca foi tão necessária.