Cada vez mais aceleradas, as transformações tecnológicas interferem diretamente na sociedade, que, no mundo inteiro, sofre para acompanhar o ritmo. Há quem goste e quem desgoste, mas ninguém poderá se livrar completamente dos seus efeitos. Popular nos Estados Unidos, a equação sobre a certeza de morte e impostos obviamente carece da inclusão da inovação tecnológica.
Comunicações, sistemas de poder e até religiosidade são impactados. A biotecnologia, que envolve a humanidade para muito além da saúde, desde a alimentação até os códigos genéticos, prova que é impossível escapar completamente da inovação.
Ao contrário da dimensão infinita das transformações, nosso espaço para texto impresso é limitado, obrigando o cronista a escolher um tema para abordagem. Fiquemos, pois, no campo da economia e do trabalho, onde os impactos podem ser percebidos com maior clareza, ainda que com a natural divergência sobre como será o amanhã.
Considerando a robotização e automação dos meios de produção, o horizonte que se vislumbra é o da prescrição de grande parte do trabalho como conhecemos e entendemos hoje. Até aí, descontando a velocidade da transformação, nada de novo desde o controle sobre o fogo, a descoberta da roda, a invenção da agricultura, o advento da água encanada. Somando inteligência artificial e internet das coisas, a coisa muda de figura e ninguém discorda que, daqui pra frente, quase tudo será diferente.
A sempre bem-vinda discordância emerge principalmente em dois partidos, o dos que acreditam que, como sempre, novas atividades surgirão para substituir as prescritas e o dos que enxergam a extinção do trabalho compulsório – e este que vos fala está entre eles.
É verdade que, através dos tempos, a tecnologia matou profissões e criou outras. Mas pelo menos dois fenômenos são absolutamente inéditos: inovação simultânea em todos os setores – do primário, que é a produção de comida e abrigo para o homem, até aqueles que sequer como setores são entendidos, como as artes no sentido contemporâneo da palavra.
Tudo já pode ser feito por robôs. Teses, tratados, sentenças, investimentos, músicas, romances, esculturas, casas, trens, entregas, manutenções, banquetes, roupas, caipirinha e mandioca. Sim, finalmente a gente somos inútil.
A primeira parte do problema, para quem assim o reconhece, é como fazer para que a economia continue girando. Se todo o produto da produção continuar se concentrando nos bolsos dos donos dos robôs, cedo ou tarde o círculo – e não o índice de Gini – vai se fechar e morrer. Para continuar girando, teremos que ressignificar o trabalho e distribuir renda de acordo.
A segunda parte é como sintonizar a moral constituída desde os primórdios, que atrela trabalho, renda e sentido de existência, às inovações que se darão num sopro antes de condenar à depressão e desesperança toda uma geração. Como manter confortável a pessoa que terá renda mesmo sem trabalhar?
Meu palpite de estudante de filosofia é que basta usar a dialética. Dois esquemas que mostram a separação entre renda e trabalho: pelo menos metade da humanidade sempre trabalhou e continua trabalhando sem ganhar um tostão, como as mães e donas de casa e, em número menor, mas proporcionalmente relevante, pessoas que, tendo garantida renda de sobra, pagam para trabalhar, como mecenas, ongueiros e voluntários.
Reconheço, porém, que sociologicamente é mais complicado. Recorramos, pois, a quem é do ramo.
Talvez influenciado pelo primeiro nome, o sociólogo italiano Domenico de Masi entende o desemprego atual como uma construção social, questão estrutural, que, portanto, pode ser reformada pela sociedade. Para fazer a travessia inexorável ao cada vez mais amplo e profundo tempo livre, ele propõe uma evolução da redução da carga horária de trabalho, de modo a repartir o que resta por fazer entre o maior número de pessoas para facilitar a equalização.
Em seu novo livro Uma Simples Revolução, lançado no Brasil em maio de 2019, ele aponta o caminho para sua obra mais conhecida e, logo, anterior, O Ócio Criativo. Mostra que, em 1891, trinta milhões de italianos suavam setenta milhões de horas, e, em 2018, 61 milhões de italianos suavam quarenta milhões de horas para produzir vinte vezes mais. Ou que, há três ou quatro gerações, vivíamos 300 mil horas, metade delas trabalhando, e hoje vivemos 700 mil horas, dedicando pouco mais de 10% do tempo ao trabalho. E se, mesmo assim, geramos mais riqueza, está provado o valor d’O Ócio Criativo. A revolução, de implementação nada simples, que ele propõe está na forma de distribuir a riqueza a quem é de direito, isto é, a todos – até porque é de interesse de todos.
Tendo a concordar com Masi, e me arrisco a dizer que a travessia individual acabará acontecendo no plano intelectual como aconteceu no plano físico. Digo, quando nos libertamos completamente de procurar fogo, carregar peso, buscar água e comida, tratamos de fazer esforço por esporte, e a febre mundial das academias de ginástica não me deixa mentir.
Com o pensar, seguiremos a mesma trilha, isto é, assim que os robôs dominarem as maçantes tarefas burocráticas, muitas delas por nós criadas, seja para disfarçar nossa inutilidade ou garantir renda para determinado grupo, buscaremos a academia original, a academia do saber, a academia do Platão. Sim, nossa travessia é rumo à academia.
Transformações aceleradas
por Vanessa Agricola