Dado Salem é economista e mestre em Psicologia.
É um dos pioneiros da Psicologia Econômica no Brasil. Trabalha há 20 anos com direcionamento de carreiras e famílias empresárias na gestão de questões complexas envolvendo famílias e negócios.
Ronaldo Lemos é advogado, especialista em tecnologia e graduado em Direito por Harvard. Professor da Universidade de Columbia, escreve semanalmente para a
.Dado – Que bom te rever, Ronaldo.
Ronaldo – Muito bom, Dado. Bom ver que você conseguiu um barbeiro aí na quarentena para fazer o cabelo e a barba.
Dado – Fui eu mesmo. (risos)
Ronaldo – Ficou ótimo. Parabéns. (risos)
Dado – Aliás, eu vi que você, numa viagem para a China, foi num barbeiro bacanudo, né? Fez um corte incrível.
Ronaldo – Você não tem ideia. Primeiro o cara fez um corte autoral na minha cabeça. E, depois, ele fez a barba. Quando terminou, ele me agradeceu: “olha, é a primeira vez que eu faço uma barba na minha vida”. Porque ninguém na China tem barba!
Dado – Pô, que legal.
Ronaldo – Ótimo. Excelente.
Dado – Primeiro, eu adorei te ver na Sapucaí! Foi a última vez que a gente se viu, e foi muito incrível porque estava aquela bagunça de escola de samba, festa e multidão, você num canto da sala eu no outro, impossível de um chegar no outro, e tivemos uma troca sincera de olhar.
Ronaldo – Foi importante. Quando eu me lembro do carnaval desse ano, parece que a gente estava em outro planeta, vivendo em outro tempo, em outro lugar, e agora nada daquilo faz sentido. Foi realmente uma ocasião muito especial.
Dado – Foi como se ali a gente tivesse se visto de longe e falado: “Assim que der, precisamos marcar um encontro” – que acabou acontecendo desse jeito. Quando a revista Amarello me ligou dizendo que queria que eu batesse um papo sobre o presente com alguém, na hora me veio você na cabeça.
Ronaldo – O nosso próximo encontro já foi pelo Zoom! Você vê que a gente está muito no espírito do tempo, no zeitgeist.
Dado – Exatamente. Já fomos direto para o digital. Muito impressionante essa mudança. Para mim, foi muito interessante. Eu estava de mudança para o Uruguai com minha família, em busca de uma vida mais tranquila. A gente queria morar em cidade pequena, ter contato com a natureza, acordar de manhã e ir na peixaria, passar no supermercado, cozinhar e, à tarde, trabalhar. Queremos uma vida mais simples, no sentido de custos, para conseguir um equilíbrio do jeito mais simples possível. A pandemia chegou no dia em que voltamos de lá. Tínhamos ido para ver escola, casa, essas coisas. E aí minha vida virou exatamente o que eu queria que fosse lá no Uruguai e que eu não conseguia implementar no Rio de Janeiro com toda aquela estrutura.
Ronaldo – O Uruguai veio até você. (risos)
Dado – Exatamente. Quando vi, estava no Uruguai. Falei para a Tininha, minha mulher, “olha só, que presente, essa coisa horrorosa, a gente vai ter oportunidade para fazer exatamente o que queríamos fazer no Uruguai aqui”. Se de repente não for legal, a gente já nem se dá ao trabalho de ir para lá. Vamos tentar fazer aqui e agora. E aí entramos nessa nova vida imediatamente, foi impressionante.
Ronaldo – Já fui muito ao Uruguai, e a minha memória de Montevidéu é que, quando você chega lá, pensa: “será que é feriado no Uruguai hoje?” – porque a cidade está sempre vazia. Tem uma sensação de feriado perpétuo no ritmo da cidade, que, de fato, é bem mais lento do que São Paulo, por exemplo, ou mesmo o Rio de Janeiro. Eu estou com a mesma sensação que você; não estou com a menor saudade de Congonhas. Nenhuma. Quero ficar o máximo de tempo possível sem ir a Congonhas.
Dado – Para você ter uma ideia, eu moro no Rio há oito anos e, durante sete anos, eu viajei todas as semanas para trabalhar em São Paulo. Quer dizer, três anos e meio eu viajei todas as semanas, e até o ano passado eu estava semana sim, semana não. Não aguentava mais. Falei: “não aguento mais, só vou atender pelo Skype, não vou mais viajar, preciso ajustar minhas contas para isso, preciso enxugar minha vida”. E comecei com esse discurso para a Tininha, até que ela topou. Eu concordo plenamente com você. Só quero ir para Congonhas para viajar para o Nordeste, fazer viagem que eu queira. Não quero viajar a trabalho em hipótese alguma.
Ronaldo – Faz todo sentido. E mesmo isso eu já acho um suplício. Depois desse detox de aeroporto, eu estou me sentindo muito melhor. Porque aeroporto, mesmo para viagem curta, pode ser pesado. Eu tenho achado essa desacelerada incrível, Dado.
Dado – Você é um dos caras mais ativos que eu conheço, no bom sentido. Uma pessoa que sabe usar o tempo criativamente. Sinceramente, Ronaldo, você tem quarenta e poucos anos, e eu nunca vi alguém fazer tanta coisa com essa idade. Coisas relevantes, construtivas. Eu espero que você continue muito ativo, mas conseguindo equilibrar a coisa do aeroporto, pelo menos.
Ronaldo – Você sabe que várias vezes eu penso em bater um papo profissional com você, sempre lembro de você, porque várias vezes eu acho que eu estou fazendo coisa demais, e o meu ritmo é insano. Mesmo na quarentena, estando em casa – e não posso reclamar disso –, eu estou trabalhando mais do que estava trabalhando antes, com um ritmo absurdo. Aí eu sinto que preciso falar com você para organizar minha vida, criar um ciclo, porque, de um certo modo, também é perigoso ficar com a vida tomada. São todos projetos que eu gosto, que eu tenho prazer em fazer e me deixam feliz, mas, ao mesmo tempo, isso reduz o espaço para reflexão, para pausa, o que eu acho que é igualmente valioso, até para a criatividade.
Dado – Então já vou te falar uma coisa. Eu me inspiro muito nos gregos, e eles tinham duas palavras para trabalho. Uma delas era erga, que é no sentido de você se erguer, é um trabalho criativo, construtivo da sua pessoa. E outra era douleia – doulos em grego é escravo, servo, então douleia é um trabalho escravizante, aquele que você faz para viver. Saber navegar dentro dessas duas coisas é muito importante. Quando você diz, “poxa, eu preciso de um tempo para parar e pensar”, você está entrando mais no mundo de erga. Por exemplo, os diálogos de Platão eram esse tipo de trabalho, em que você reflete, você aprende, e aí tem aquele outro trabalho que você diz “agora eu vou pagar conta”, ou “agora eu vou fazer um projeto de implementar algo em que eu acredito”, e você vai e faz. Você tem que ter tempo para refletir para conseguir avaliar “poxa, o que eu vou fazer?”, “a que vou dedicar meu tempo?”, “qual o melhor projeto que eu posso fazer com o tempo que eu tenho?” Uma coisa mais ou menos por aí. Eu fico espantado com as coisas incríveis que você fez. Toda a legislação que regula a internet. Eu não estranho que o teu mundo agora vá ficar superlotado, porque você é “a” pessoa que eu tenho como referência na internet. E o mundo está agora direcionado para isso. Espere que você vai ter muito mais trabalho do que condição de atender, e vai ter que escolher bem o que fazer.
Ronaldo – Por isso que eu preciso da sua ajuda (risos). Eu preciso escolher. Está complicado e é super importante. Gostei dessa divisão do trabalho, das duas coisas. São duas coisas que eu acho interessantes. A minha felicidade está muito ligada à possibilidade de participar de trabalhos de esfera pública. Eu não sou político, não exerço isso como profissão, mas participar desses debates públicos me deixa feliz, e minha felicidade está ligada muito a isso.
Dado – Para mim, está evidente. No dia que eu te conheci, pensei: esse é o tipo de gente que precisamos trabalhando pelo coletivo, porque é um cara competente pra caramba, honesto, dedicado, que fala com todo mundo e de quem todo mundo, de todas as praias, respeita e gosta, e é um cara equilibrado e centrado. Sinceramente, acho que seria um desperdício se você dedicasse seu tempo a uma coisa pessoal, de interesses próprios.
Ronaldo – Não consigo. Impossível (risos). Mas a gente estava falando do presente, do modo de vida, e da questão do trabalho. O trabalho está mudando muito agora, né? Eu gosto muito de um desenho feito pela Ray e o Charles Eames, os designers que fazem aquelas cadeiras muito bonitas, que tem três círculos com uma interseção e sugere “qual lugar você deve trabalhar”. Existe o círculo do interesse pessoal, o do interesse público, do bem comum, e o do interesse do seu cliente. O Charles Eames dizia que, se você conseguir trabalhar na interseção dos três círculos, lá no centrinho, você vai ser feliz – e é verdade. Tem gente que trabalha muito bem no círculo do interesse próprio e do interesse do cliente, mas o interesse público fica descartado; e tem gente que também trabalha só no interesse próprio e no interesse do espaço público, sem que aquilo se converta em um benefício, e que a pessoa consiga viver e prosperar profissionalmente. Sempre que conseguimos trabalhar ali no meio, isso é fonte de felicidade, de criatividade, e assim por diante.
Dado – Eu conheço esse diagrama e acho que você é um cara que, se vivesse no Japão, seria um samurai. Mas não qualquer samurai – o samurai que, com a venda nos olhos, acerta na mosca. Você já ouviu falar? Tem um livro chamado…
Ronaldo – A Arte e o Zen.
Dado – Você acertou na mosca. Você é um exemplo de ser humano porque é a pessoa que vai buscar dentro de si seus talentos e suas paixões para dedicá-los ao coletivo. Isso é a melhor coisa que uma pessoa pode fazer na vida. Demos uma desviada disso na nossa cultura, porque hoje em dia buscamos uma profissão baseada naquilo que é mais rentável, que dá mais dinheiro, e aí a galera vai para o mercado financeiro. A pessoa para de pensar em si, de ir atrás das suas paixões, e assim a sociedade desanda um pouco como um todo.
Ronaldo – Eu entendo. E nem sempre isso é felicidade também, né? Claro que ganhar dinheiro é importante, e eu acho que todo mundo tem que prosperar. Inclusive nesse período de Covid, uma das coisas que me incomodou muito é que só agora muita gente percebeu que prosperidade real só existe se está todo mundo prosperando. Se tem uma pequena parcela de pessoas prosperando e outras regredindo e se descolando, isso não é prosperidade real. E em momentos como esse, de emergência, a conta chega, e a conta chega para todos. Então prosperar é importante. Mas se você só age no sentido de prosperar materialmente, isso não necessariamente implica realização, uma vida que seja, vamos dizer, feliz mesmo.
Dado – Os gregos usam a palavra eudaimonia, que foi traduzida como “felicidade” para nós. Eudaimonia é a vida que é boa para o daimon – o daimon é como se fosse a alma, é o demônio que nos habita, mas que não tinha essa conotação negativa de demônio. Ele pode tanto ser legal com você, se você se relacionar com ele, quanto pode infernizar sua vida, destruir sua vida. Então eudaimonia é a vida que é boa para o daimon, ou seja, é a vida em que você vai se realizar como indivíduo. Geralmente, isso tem uma conexão muito séria com a sociedade, porque você dedica seus talentos ao coletivo, e a sociedade obviamente precisa desses talentos, isto é, as coisas se cruzam. A questão é assim, “poxa, eu tenho esse talento aqui, mas esse talento não dá muito dinheiro”. Na época, quem tinha um talento, mesmo que ele não desse tanto dinheiro, a pessoa dedicava a vida àquilo e vivia feliz, e evidentemente existia um equilíbrio maior na sociedade. Hoje em dia, é uma loucura. É o que você falou, se não está bom para todo mundo, gera um problema enorme.
Ronaldo – O que é importante é as pessoas terem a possibilidade de prosperar, e isso não quer dizer que vai ficar todo mundo bilionário, o que seria até impossível e não sei se seria bom para o mundo. Não existe recurso para isso.
Dado – O mundo não aguenta, Ronaldo. O mundo não aguenta sei lá quantos bilionários. Já não aguenta nem milionários. A Terra acaba antes.
Ronaldo – Esse é o problema. Estamos saindo de uma pandemia podendo voltar a outra situação de emergência, que é a emergência climática. Tem um ensaio interessante que eu li nesse período, falando exatamente sobre isso, que estamos, nesse momento, vivendo um ensaio de uma crise ainda maior, que pode, inclusive, chegar mais cedo do que a gente imagina.
Dado – E amplamente anunciada. Existe um estudo dos anos 70 chamado The Limits to Growth (Os Limites do Crescimento, de Dennis L. Meadows, Donella Meadows e Jorgen Randers), que diz que a Terra vai até um limite, e depois desse limite dá problema. Os cientistas todos já estão batendo nessa tecla há um tempão, mas como é que você faz a sociedade cair na real? Sinceramente… Eu sou otimista em relação ao futuro, mas acho que vamos precisar sofrer muito para essa mudança de comportamento acontecer. Agora temos uma oportunidade enorme para ressignificar tudo e voltar para uma vida mais pé no chão, mais real, mais simples e feliz. Acho que é o momento perfeito para isso, mas esse excesso de consumo e essa ansiedade toda é difícil frear. Até porque o discurso dos governantes de “dependemos disso”, “as pessoas têm que comprar”, “temos que acelerar, senão…” – senão o quê? O mundo não aguenta continuar acelerando. A gente vai ter que se reenquadrar de algum jeito.
Ronaldo – Esse mundo que nós estávamos vivendo até há pouco era um mundo que, ao mesmo tempo, acelerava e estava estagnado, isso é muito louco. Ele vivia duas coisas ao mesmo tempo. Tínhamos uma economia americana vibrante e pulsante, com nível de pleno emprego, juros negativos em vários países da Europa, para fazer o dinheiro circular e não ficar parado no banco, e, ao mesmo tempo, sinais de estagnação muito claros, inclusive do ponto de vista econômico. E do ponto de vista da inovação, que é a minha área, existem as inovações da internet, dos celulares, etc. Mas o impacto disso para a economia, para a produtividade e, principalmente, para a prosperidade, não é um impacto significativo. Ao contrário – é isso que é paradoxal. Temos a sensação de que estamos acelerando no trabalho, nas interações pessoais, mas isso não necessariamente está se traduzindo em progresso e prosperidade. Na década de 80, tinha um economista que falava que a era do computador estava em toda parte, menos nas estatísticas de produtividade, porque a produtividade, desde então, continuava a cair. Quando você olha a produtividade do trabalhador nos Estados Unidos, mesmo com tudo isso que temos hoje, é declinante, o que é uma loucura. Ainda não existiu uma invenção que tivesse o impacto no bem-estar das pessoas como teve, por exemplo, o antibiótico ou a privada. Quase inacreditável. O antibiótico e as privadas promoveram um salto na qualidade das nossas vidas, e, nos últimos 20, 30 anos, ainda não teve nada parecido. Esse paradoxo da aceleração com a estagnação é preocupante. E um ponto muito importante, agora com a Covid, é que estamos passando por um momento que nos permite refletir se, talvez, não estávamos acelerando para o lado errado.
Dado – Acho que temos poucas pessoas pensando no que estamos fazendo, e eu acho que as cabeças dos governantes deveriam estar focadas nisso. Para onde estamos indo? Existe uma ética por trás dessa aceleração toda? Porque, se não existe uma ética ligada a tudo isso, pode ir fácil para o lado do mal. Primeiro se cria, depois se vê se é bom ou não é. Eu ouvi essa frase uma vez em Boston e fiquei preocupado.
Ronaldo – Outra preocupação é uma espécie de convergência para um único ponto, que muita gente chama de singularidade. Acho que uma das missões que temos não é promover a singularidade, mas resistir à singularidade, porque o que precisamos não é uma coisa só; precisamos de multiplicidade. Quando falamos em tecnologia, a tendência é a promoção de convergência para um modelo único. One size fits all. E isso é preocupante, porque, quando você perde o contato com a ética, com os modos de vida que são diferentes em cada lugar, com a cultura, a tecnologia fica divorciada da história – independentemente da história que você viveu, o uso da tecnologia é o mesmo para todos. Se seguirmos por esse caminho, primeiro, a ideia de ética se torna inviável; segundo, você tem uma força de convergência. Devemos promover a tecnologia como princípio, mas não como resultado, e a tecnologia como princípio permitindo a multiplicidade, sem convergir para o mesmo ponto. Por exemplo, eu escrevi um artigo na
falando que a escola “home office” deu errado. Pega qualquer pai ou mãe agora nesse período e pergunta se eles estão tendo uma boa experiência com a educação online dos filhos em casa. Zero. Não tem ninguém feliz. Pelo contrário, os pais estão putos, as crianças estão putas da vida. Ficar achando que criança de 6, 7 anos vai ficar na frente do Zoom por três, quatro horas é irreal. Esse experimento deu errado. Essa camada tecnológica que a gente julga universal tem limites. O quanto perdemos abdicando do modelo da escola formal para tentar jogar a escola para dentro de casa? É pesado. É um modelo pior. Temos que fazer essa mesma reflexão em relação ao trabalho, pois a tecnologia modifica o plano da cidade, da vida urbana, uma série de coisas. A cidade inteligente talvez não seja a melhor cidade, entende? A tecnologia tem limites, e precisamos lembrar disso, ela não resolve todos os problemas. Pelo contrário, alguns ela piora muito.Dado – Fico feliz de ouvir isso, porque tudo que eu ouço por aí é a galera acelerando nessa história com pouca reflexão em cima. Uma pessoa especializada em tecnologia, na minha opinião uma das referências no país nisso, falar isso que você falou, poxa, eu fico mais tranquilo.
Ronaldo – Hoje de manhã, só para você ter uma ideia, teve um seminário do BID, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, sobre educação, com o ex-Ministro da Educação da Coreia do Sul, a Priscila Cruz, que faz um trabalho genial aqui no Brasil no Todos Pela Educação, a Lucia Dellagnelo e eu debatendo isso. Eu falei para o BID que o homeschooling (modalidade de ensino em que o aluno recebe as lições escolares em casa) falhou, não deu certo. Pode ser que a gente consiga daqui dez ou cinco anos, mas achar que dá para trazer a escola para dentro de casa, esquece. E foi interessante porque as pessoas ficaram tocadas com isso. E, de fato, a tecnologia tem limites, e temos que saber qual o lugar que queremos que ela ocupe na nossa vida. Usar a tecnologia para substituir a religião, a ética, as relações pessoais e uma série de outras coisas é tornar a nossa vida pior. Precisamos tomar muito cuidado com isso.
Dado – Assisti a uma live em que você falou que veio de uma cidade que tinha acesso a TV a cabo e que isso foi fundamental na sua vida, que, se não tivesse tido essa fonte de informação, você não seria quem você é hoje. Hoje, a internet escancara isso para nós, mas obviamente precisamos saber o que buscar. Como podemos aproveitar a internet para levar educação para as pessoas no Brasil?
Ronaldo – A importância da internet e da infraestrutura para a vida das pessoas é fundamental. De fato, eu devo muita coisa da minha vida a isso. Eu nasci numa cidade pequena, no interior de Minas Gerais, que foi escolhida aleatoriamente para ser a primeira cidade do Brasil a ter TV a cabo. Na época, não tinha internet, não tinha nada. Um cabo era um salto informacional. Imagina, uma cidade que só tinha dois canais de televisão e o correio como conexão com o mundo externo, e de repente você tem 150 canais, incluindo CNN, BBC e uma série de coisas. Foi um choque. Não só para mim, mas para várias pessoas da minha geração. Eu posso listar um monte de gente que veio dessa mesma época que eu na cidade e hoje é empresário de tecnologia, investidor em tecnologia. É muito curioso isso. O Manoel Lemos, meu primo, é um dos sócios da Redpoint eVentures, um fundo de investimento em tecnologia no Brasil; o Gustavo Caetano fundou a Samba Tech, que é uma startup conhecida; o Gustavo Debs vendeu agora a Zup, empresa dele, para o Itaú por 400 milhões de reais – são todos de Araguari, e a minha hipótese é exatamente essa: como é que uma cidade de 80 mil habitantes conseguiu dar esse salto? Porque teve acesso…
Uma das brigas que eu tenho, por exemplo, é levar banda larga de excelente qualidade para todas as escolas do Brasil. Se a gente conseguir se mobilizar, 6 bilhões de reais resolvia esse problema. Isso nem é muito dinheiro dentro do orçamento público e do que se gasta no Brasil com besteiras e bobagens – se investissem 6 bilhões do orçamento nisso, seria possível colocar banda larga de primeira qualidade em todas as escolas públicas do Brasil. Eu venho brigando por isso há bastante tempo, com vários parceiros aqui no Brasil. Às vezes avançamos, às vezes voltamos. Isso mudaria a vida das pessoas. Conectividade e infraestrutura é o básico, não tem jeito. Foi por isso que a Ásia deu certo. Passei quatro meses na China no ano passado, fazendo uma série de documentários chamada Expresso Futuro. Gravei oito episódios, fazendo um mergulho no que a China mudou de tecnologia, e como eles deram esse grande salto tecnológico. É realmente chocante, porque, em 40 anos, o país tirou 750 milhões de pessoas da miséria. E não é qualquer miséria; é miséria de não ter o que comer, de comer pedra, capim, muito pesado. E em 40 anos essas pessoas foram trazidas, em grande parte, para a classe média. A China hoje começa a competir, por exemplo, com os Estados Unidos em tecnologia e inovação. Então, como é que saíram da fome para potência tecnológica? Muita gente fala, “ah, porque a China é autoritária, por isso que deu certo”, e não é por isso. É o contrário; se autoritarismo levasse a desenvolvimento, a Coreia do Norte seria uma potência, o Irã, a Arábia Saudita… O que eles fizeram? Eles investiram em infraestrutura educação para todos. A fórmula nem é tão complexa. E isso, para nós, no Brasil, parece simples, mas é chocante. Quando pensamos na maneira como criamos infraestrutura no Brasil, é uma tristeza. Se você é rico, você vai ter infraestrutura; se você não é, não vai ter. E isso vale para tudo. Conectividade na escola – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Saneamento básico – se você é rico, você tem; se não é, não tem. Mobilidade urbana, mesma coisa. Acesso à mobilidade nacional, mesma coisa. Eletricidade, mesma coisa. E, lá, o que eles fizeram foi inverter essa equação. Começaram a construir infraestrutura de grande escala para rico e para pobre, para todo mundo. Um exemplo, que eu vi na China, é o trem-bala. Você viaja hoje de trem-bala para qualquer cidade na China; a malha tem mais de 30 mil km; é o melhor jeito que existe de viajar no mundo hoje, totalmente confortável, limpo, trafega a 350 km/h, o trem é moderníssimo – e em todo o trem-bala chinês, só tem um vagão de primeira classe; todos os outros são para a galera, tendo grana ou não. E fizeram a mesma coisa para a educação. O acesso à educação chegou em todo mundo, não só em quem é rico, mas também em quem é pobre. E aí, não tem jeito. Se você tem infraestrutura e educação para todos, o país vai se desenvolver.
Dado – Na minha opinião, falta uma coisa nessa equação. Como é que eles estão em relação à sustentabilidade?
Ronaldo – Esse ponto é importantíssimo. A China pagou um preço muito alto por esse desenvolvimento rápido. A economia chinesa saiu de uma economia agrária e virou uma economia industrial e, agora, estão entrando numa economia de informação. Mas essa economia industrial poluiu o país inteiro, destruiu rios e o lugar onde as pessoas vivem. Em Pequim, por exemplo, durante muitos dos dias do ano você não consegue ver o sol, porque tem uma camada de poluição tão espessa que o sol fica escondido. Como o preço que eles pagaram foi muito alto, nos últimos seis anos houve uma guinada no sentido de economia verde, e hoje, por incrível que pareça, a China está liderando o mundo em economia verde, investindo em carro elétrico, painel solar, mudando as regulamentações ambientais – fábrica que jogava dejeto em rio agora ou é multada, ou é fechada, e tem que cuidar de reciclagem, de economia circular, e assim por diante. Provavelmente vai levar dez, quinze anos para resolver essa questão, mas o que é importante é que eles perceberam isso, até porque a qualidade de vida das pessoas ficou horrorosa por causa da degradação ambiental. Uma cidade como Shenzhen, no Sul da China, por exemplo, tem 15 mil ônibus, todos são elétricos. São Paulo tem 14.500 ônibus, nenhum elétrico. Todo táxi lá é elétrico. Caminhão de lixo elétrico, carro de polícia elétrico… Isso é visível a ponto de você ir às cidades chinesas e tomar um susto por causa do silêncio do tráfego, porque carro elétrico não faz barulho. Para nós, ocidentais, é até perigoso, porque nos acostumamos a nos orientar para atravessar a rua pelo som, e lá você anda e tem cinquenta carros e nenhum barulho. Isso chama muita atenção. Vai resolver o problema de imediato? De jeito nenhum. Mas pelo menos eles deram uma guinada e estão acelerando no sentido de tecnologias e infraestrutura verdes.
O Brasil deveria ser o líder mundial em tecnologia verde. Não existe razão para não sermos. Fomos muito bem com o etanol, e tivemos um papel importante. Mas estagnou, e uma das razões para isso também foi o pré-sal. O pré-sal pode ter seu lado bom, existem mil análises, mas um efeito colateral dele que provavelmente vai ser alto é que ele nos fez desinvestir na economia verde e desestimular o país a lidar com ela, sendo que poderíamos liderar no mundo todo essa discussão.
Dado – Com certeza. Obviamente, um erro estratégico terrível, que vai ter que ser corrigido rapidamente. Quem sabe aproveitamos esse momento e fazemos esse movimento pela consciência, e não pelo sofrimento, como pode ser que aconteça mais adiante.
Ronaldo – Pois é, foi o que aconteceu na China. Eles precisaram sofrer para mudar.
O brasileiro é um povo que quer botar para quebrar no sentido positivo, um povo empreendedor, criativo, indomável, e isso é muito bom. Como você falou, estamos num momento muito aquém do que poderíamos estar para permitir essa criatividade. Estamos buscando botar a culpa no outro, dizer quem é o culpado. E sempre que você pergunta quem é o culpado, você gasta energia que poderia estar investindo para criar caminhos, soluções, e assim por diante. Por isso, quando eu falo em construir infraestrutura para todo mundo, eu realmente acho que, se conseguirmos integrar mais gente na participação na cultura, na criatividade, etc., podemos dar um salto como país. Precisamos aprender a transformar ideias em produtos e serviços. Hoje, o Brasil, como país, sabe muito bem transformar recursos naturais em produtos e serviços derivados deles, mas ainda não conseguimos transformar ideias – sejam ideias culturais, científicas, e assim por diante – em produtos e serviços. E não precisa ser ideia grande; pode ser ideia pequenininha também. Pequenos conhecimentos que as pessoas têm na sua vida cotidiana podem gerar ideias de serviços e produtos novos. Quando conseguirmos fazer isso, acho que nos desenvolveremos muito rápido. Estamos em um momento derrotista, mas vai passar.
Dado – Fico feliz de ouvir sua visão, porque é muito fácil olharmos a realidade com maus olhos. Você olha para o potencial, para o que pode ser. Você vê ali a quantidade de sementes que tem e que estão prontas para brotar, e é só trabalhar bem isso. Eu super concordo com você e acho que temos que brigar menos, apontar menos o dedo um para o outro, tentar nos unir. Como fazer isso? Está todo mundo brigando tanto. Na política também. Sinceramente, acho isso um desperdício de energia. Enquanto estivermos desunidos, essa coisa não rola.
Ronaldo – Concordo. Mas vai passar. A internet teve um papel muito negativo nesse processo, e acabou sendo utilizada para incutir medo e raiva na cabeça de muita gente. Estamos vivendo, no Brasil, nos últimos quatro anos, campanhas massivas de desinformação, e essas campanhas têm por base provocar esses sentimentos muito básicos nas pessoas, como medo, raiva, insegurança. E a pessoa, quando está com medo e raiva, desenvolve uma visão em túnel, só enxerga o que está imediatamente na frente dela e perde a visão periférica. A pessoa que entra nesse estado só se preocupa com coisas muito imediatas, fica paranoica, e começa a responder a estímulos que se relacionam com esses sentimentos muito básicos. Mas eu acho que essa onda de medo e raiva, essa neurose coletiva que a internet ajudou a inocular no nosso país, está começando a regredir.
Dado – Quais são os sinais que você está vendo? Ou existe algum trabalho efetivo sendo feito nessa direção?
Ronaldo – Pior é que não. Ela não regrediu por nenhum antídoto, nenhum remédio. Ela está começando a regredir por um esgotamento das ferramentas que são usadas para promover essa inflamação. Nos últimos quatro, cinco anos, essas campanhas de desinformação, no WhatsApp, nas redes sociais, robôs, etc. realmente conseguiram inflamar as pessoas, e agora já estão começando a perder o efeito. As pessoas já não estão mais tão suscetíveis a esse tipo de inflamação. Não porque elas mudaram, ou porque houve um remédio, mas porque essas ferramentas estão esgotando sua capacidade.
O brasileiro médio, hoje, recebe no WhatsApp todos os dias de 50 a 200 conteúdos novos que são uma mistura de violência com política e com pornografia, justamente para instigar esses sentimentos muito básicos, que deixam a pessoa nervosa ou com medo, e assim por diante. E o que está acontecendo é que, depois de um tempo, esse ecossistema está começando a perder efeito.
Dado – Existe alguma forma de regular isso sem perder a liberdade, que é a beleza, na minha opinião, de toda a internet?
Ronaldo – Nesse momento, eu estou envolvido até o último fio de cabelo no debate sobre o projeto de lei das fake news. E a minha preocupação, Dado, é exatamente a sua. Como é que regula isso sem afetar a liberdade de expressão, que não pode, em hipótese alguma, ser afetada? Eu me posicionei muito forte contra o texto original do projeto, porque estava perigoso para a liberdade de expressão. Na minha visão, o único jeito de combater essas fontes de inflamação não é combater as folhas, mas a raiz, de uma vez só. E como é que se combate desinformação? Com mais informação. Por exemplo, em vez de combater o conteúdo, devemos combater o financiamento oculto a esse conteúdo. Fazer um follow the money. Não podemos punir uma pessoa por falar alguma coisa na internet, mas podemos punir quem oculta patrimônio ou recursos que são usados sem transparência para mover campanhas de desinformação. Falar besteira e desinformação, todo mundo fala, é da natureza humana, é fofoca, etc., e isso não tem nenhum problema. O problema é ir do amador para o profissional. O amador sempre vai existir; agora, o profissional, que coloca dinheiro, que movimenta campanhas com robôs, compra engajamento, monta designs e bunkers com designers para produzir conteúdo violento, pornográfico, o dia todo, para depois propelir isso com grande alcance, às vezes falando para 50, 60 milhões de pessoas, isso depende de dinheiro, porque falar com muita gente sempre é caro, não importa a mídia. É caro se for na televisão, e é caro se for na internet. Falar com 80 milhões de pessoas sempre vai ser caro. Então essas campanhas massivas de desinformação têm muito dinheiro por trás, e o único jeito de combatê-las sem afetar a liberdade de expressão é follow the money, siga o dinheiro. Esse é o único jeito. Agora, qualquer um fala o que quiser. O que não pode é, de forma oculta, você financiar uma rede de laranjas, intermediários e robôs e uma série de coisas e, como resultado disso, espalhar desinformação para 50 milhões de pessoas. No mínimo, você tem que fazer isso de forma transparente, assumindo a responsabilidade. Se não fizer isso, pode ser punido.
Dado – Parabéns, você está trabalhando em cima de uma coisa que é fundamental. Eu não imaginei que tivesse alguém se ocupando disso, e fico muito feliz que seja justamente você.
Ronaldo – Nas últimas duas semanas, estou o tempo inteiro em cima disso. Agora, tem que fazer pressão, porque, para fazerem coisa errada lá no Congresso, não custa nada.
Dado – Fala para nós como podemos pressionar que pressionamos.
Ronaldo – Tem que pedir follow the money. Não mexam com a liberdade de expressão. Quem financia campanhas massivas, com robôs, etc., é que tem que ser punido. Essa é a forma. Precisamos de uma lei simples, que tenha dois parágrafos. A lei original estava com oito páginas. Um mastodonte horroroso. Com esses dois parágrafos, resolvemos o problema, em boa parte.