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A moda como a radicalidade da identidade

por Bianca Coutinho Dias

O filme Identidade de nós mesmos, de Wim Wenders, adentra o mundo da criação do estilista Yohji Yamamoto e promove um encontro do cinema com a moda. Saltando de um universo encerrado numa subserviência cega para um mundo vivo e pulsante em que se cria e recria o vestir – que é história, semiótica, linguagem, encontro –, reflete e analisa as configurações imagéticas do corpo no contemporâneo.

A obra retrata a moda mostrando sua possibilidade como campo do pensamento, onde algo atravessa e marca as subjetividades e o gesto que se inscreve na experiência com o outro. A forma como nos relacionamos com os signos do vestir dão pistas de nossas identificações e, no mundo contemporâneo, delineiam uma relação não somente estética, mas também ética.

Yohji Yamamoto é alguém que persegue a elegância radical pensando a arquitetura do corpo e do espaço, desestabilizando ideias fixas que rompem com a lógica discursiva opressora. A moda, para o estilista, é mediadora do encontro com o enigma das coisas, um mais além das significações parasitárias de elegância que só flutuam na superfície. Na sua criação, a moda é uma poética. Entre dobras, assimetrias, proporções inusitadas, corpos diversos, é uma linguagem que pode dar vida à mobilidade e fazer viajar, deslizar, peregrinar fronteiras, perder referências fixas, aportar em terrenos inseguros, esbarrar limites, tocar em nossa capacidade individual e coletiva de descortinar novas formas de habitar o corpo.

O encontro com Yamamoto revela que a moda pode ser o avesso das certezas e criar um grau de desestabilização necessária à reinvenção de si. São reflexões que nos possibilitam apreender o corpo como um território impossível de ser delimitado, já que este se modifica constantemente à medida que tentamos aprisioná-lo. É nessa riqueza corpórea, investida simbolicamente, que o trabalho se dá: um território movediço, fluido e impermanente.

Na construção da “identidade de nós mesmos”, tanto Wenders quanto Yamamoto tecem um corta-e-costura linguístico-visual, entre cores, vazios, linhas, formas, volumes, movimentos, e reiteram a ideia de Roland Barthes, da possibilidade de o sujeito, através dessa segunda pele, construir seu próprio estilo e ser capaz de tornar-se representante de si mesmo. Nessa medida, a moda torna-se capaz de produzir uma ruptura profunda no pensamento discursivo, e fazer um mergulho na irreverência absoluta, desarticulando o esquema tradicional da representação. Juntos, Yamamoto e Wenders recriam a moda, inspiram e instauram novos olhares, e a tessitura surgida desses entrelaçamentos conduz a um universo da imagem que, paradoxalmente, também a subverte.

Deparar-se com a obra de Yamamoto equivale a redescobrir algo que nem se desconfiava existir, sob as dobras do invisível de uma roupa: sua potência sígnica. Ao criar dentro de um rigoroso sistema, Yamamoto acaba por nos libertar, mostrando que as identidades e identificações são temporárias e carregam sempre algo da mais radical experiência subjetiva, que possibilita um encontro direto com o enigma de nós mesmos. 

Trabalhando entre o escuro e o claro, do preto a, no máximo, o branco, ele nos encanta com linhas eficazes, assimetrias e desconstruções quase poéticas, sustentando, em sintonia fina com sua equipe, uma espécie de marca polissêmica e ambígua, reiterando, assim, que a vida é um ato afirmativo e criativo, um ato movido pelo desejo. O que se evoca aqui, ao tratarmos de moda, são as textualidades corpóreas em que o corpo se encontra ressignificado na tênue fronteira entre o sujeito e o mundo. É onde está o signo privilegiado da vida, transitório como ela, algo que congela na fagulha do segundo e na permanente dissolução: efemeridade e eternidade. Oscilando entre os polos dessa tensão – o efêmero e o eterno – a moda acaba por constituir uma reflexão de inclinação e vocação filosófica.

O corpo proposto por Yohji Yamamoto é um corpo em suspensão de significação, um corpo vestido, perturbado e perturbador, cuja significação está sempre por vir e obriga a repensar o vestir em suas possíveis e, por vezes, ultrajantes subversões, fazendo com que a moda, ao romper com rígidos aprisionamentos simbólicos, possa inserir-se no quadro das estéticas e poéticas contemporâneas.

Win Wenders caminha com maestria com Yamamoto, no momento evanescente – entre o vestir e o despir, entre o pensamento e o ato criativo, no enfeixamento poético das esculturas têxteis, conduzindo-nos pelas dobras que ensinam sobre uma elegância aguda, que escuta o espírito de seu tempo numa relação sempre aberta e porosa com a imagem, num exercício que não separa a estética da ética, pois assim, como nos lembra Walter Benjamin, “o aspecto mais interessante da moda é sua extraordinária capacidade de antecipação”. E é importante que, em momentos de crise e redefinição do campo das trocas simbólicas, possamos estar atentos ao que veste e reveste a experiência e a relação com o mundo.