A meio caminho entre o olho e o ouvido
Reparei numa pinta, pela primeira vez que me lembre, ontem à noite, ao espelho, enquanto escovava os dentes.
Não que ela estivesse escondida atrás do cabelo, e fosse enfim revelada pelas entradas que depois dos quarenta já avançam velozes testa adentro. Nem que ela estivesse num ponto cego, que eu não conseguisse enxergar ao espelho sem torcer o pescoço. Nada disso. Ela estava ali, a meio caminho entre o olho e o ouvido esquerdos, sem nada que pudesse servir de disfarce ou distração. Uma pinta escura sobre a pele branca. E não era das menores. Como é possível só agora tê-la visto? No dia seguinte pela manhã, ao lavar o rosto, já não consegui tirar os olhos dela. Tinha passado a noite a pensar sobre essas coisas que às vezes não vemos por estarem demasiado à vista. Mas, no caso da pinta, era mais estranho do que isso.
Você deve lembrar que eu tive problemas de acne durante a adolescência. Por isso eu pensava no meu rosto como um campo de batalha. Eu e meu arsenal de cremes e loções e pomadas, que só faziam manchar os travesseiros, contra as destemidas espinhas, que zombavam de todas as minhas tentativas de exterminá-las, aparecendo sempre vermelhas e robustas nos momentos mais inoportunos. Ainda hoje vê-se em minha pele as marcas dessa guerra, e por isso recusei-me a acreditar que eu nunca tivesse sequer reparado naquela pinta. Um nítido marco geodésico entre os acidentes da minha topografia facial.
Você também deve estar se perguntando por que resolvi te contar essas coisas agora, depois de quase vinte anos sem nos falarmos. Desculpe. Se tiver só mais um pouco de paciência, prometo que já vai entender.
Eu fiquei um pouco obcecado pela história da pinta, e fui vasculhar fotos em busca de provas da sua existência pregressa, e da minha inexplicável miopia para vê-la. Não foi tão fácil quanto eu imaginava encontrar fotos minhas que tivessem qualidade suficiente para que se notasse uma pinta no rosto, e menos ainda fotos em que eu estivesse com o rosto suficientemente virado num ângulo que a tornasse visível. Mas, depois de umas boas horas de insistência, revirando os álbuns do fundo do armário e backups antigos do computador, consegui encontrar algumas que cumpriam todos os critérios. E qual não foi o meu espanto ao perceber que em nenhuma delas a tal pinta aparecia.
Voltei ao espelho. Lá estava ela. Mas por que então não havia sequer uma foto minha em que ela estivesse ali, onde deveria estar? Tentei olhar mais de perto, procurando sinais de que ela talvez fosse uma aparição mais recente, uma cicatriz, uma lesão, uma sujeira mal lavada… Mas não consegui identificar nada que a distinguisse de uma pinta normal, marca de nascença.
Fui ao dermatologista, que me disse a mesma coisa. Fui a mais de um, na verdade. Liguei para velhos amigos, que provavelmente já me achavam maluco e, depois de ouvir a história, passaram a ter a certeza. Ninguém se lembrava da pinta ter ou não ter existido. De modo que só me restou uma alternativa. Recorrer à única pessoa no mundo que poderia conhecer a minha cara melhor do que eu: minha mãe.
Não vou descrever como estava a casa de minha mãe, ou ela própria, quando apareci de surpresa, numa quarta-feira à tarde. Estava tudo exatamente igual a quando fomos lá, por insistência sua, há um par de décadas. Até a televisão de tubo, com o cacto em cima, continua no mesmo lugar — e funcionando, sabe lá Deus como.
Sobre a pinta, ela não conseguiu dar nenhuma informação importante. Imagino que sequer tenha conseguido enxergá-la no meu rosto, por causa da diabetes que já lhe deu cabo da visão. Mas ficou muito contente quando insinuei que gostaria de rever os álbuns de fotografias. Em um minuto, já tinha depositado em meu colo pelo menos dez grossos volumes de capa dura.
Mais uma vez, encontrar fotos que combinassem simultaneamente foco, proximidade e a inclinação correta da minha cabeça foi como procurar uma agulha no palheiro. Mas valeu a pena, porque consegui encontrar uma. Apenas uma.
Como você já deve ter adivinhado, a foto que encontrei é a que vai no envelope junto com esta carta. Eu e você, na praia. Não consigo lembrar qual era o ano, muito menos quem tirou a foto. Uma foto absolutamente perfeita: ângulo fechado e focado nos nossos rostos, a câmera posicionada ligeiramente de lado, de modo a pegar de chapa todo o lado esquerdo da minha cabeça, ligeiramente repousada sobre o seu ombro direito. Ao fundo, um pouco desfocado, mas reconhecível, vê-se o carrinho de um vendedor de picolé, e o desenho da marca estampado na lateral me certifica que a foto não está espelhada. Tudo na composição favorece a visão perfeita daquele meu pedaço de rosto, a meio caminho entre o olho e o ouvido. Finalmente, lá estava a pinta.