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Dois e dois são dois: Renato Noguera e Nêgo Bispo

Antônio Bispo dos Santos é Nêgo Bispo, uma das principais vozes a representar o pensamento das comunidades originárias do Brasil. Morador do quilombo Saco do Curtume, no Piauí, Bispo é escritor, ativista político e militante do movimento social quilombola pelos direitos ao uso da terra. É professor da rede de mestres e docentes da Universidade de Brasília (UnB).

Renato Noguera nasceu no Rio de Janeiro. Professor de Filosofia da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, atua como pesquisador do Laboratório de Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas e do Laboratório Práxis Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos para o Ensino de Filosofia da UFRRJ. Suas investigações se concentram na história e cultura afro-brasileira, africana e indígena, bem como na ética, política e subjetividade, tratando especificamente de racismo, biopoder, devir negro e diferença, nas filosofias de Foucault e Deleuze.

Renato Noguera – Quem é Nego Bispo, para quem não o conhece?

Nêgo Bispo – Nego Bispo é um negro quilombola que nasceu no dia 10 de dezembro de 1959, no vale do rio Berlengas, no estado do Piauí. Quando eu me entendi por gente, no território onde eu nasci — só para ter uma ideia de que ambiente era aquele: existiam aproximadamente 18 engenhos de rapadura; 15 eram do povo negro. Só o meu bisavô tinha três. E os que não eram dos negros eram feitos pelos negros. Mas não na condição de escravos, na condição de mestres e mestras. E eu fui formado por essas mestras e mestres, pela oralidade, e essas mestras e mestres resolveram que eu deveria ir para a escola, a escola escriturada, porque nesse período os contratos orais estavam sendo substituídos pelos contratos escriturados. Como o nosso povo não dominava as escrituras, eles resolveram que alguns jovens deveriam aprender essa linguagem. Então eu fui para a escola, até a oitava série. E fui com uma função determinada: aprender a traduzir os contratos escritos para a oralidade, e traduzir os contratos orais para os contratos escritos, e é isso que eu faço até hoje. Eu me sinto um relator dos saberes da minha geração avó, mas também me sinto um tradutor dos saberes do nosso povo. No princípio eu lia e escrevia cartas, lia bulas de remédio, livreto de cordel, fazia contabilidade de açougue, de bar, nos botequins das festas e etc. e tal. Vivi cinco anos no Rio de Janeiro, para conhecer uma cidade grande. Daí quando eu voltei ao Piauí, ao nosso território, foi logo que começou o debate sobre a Constituinte e o nosso povo exigiu que eu fosse para o sindicato, para traduzir os novos contratos escriturados, as legislações. Eu fiz isso, fui para o partido, participei dos debates, até fui candidato e sempre levando, primeiro a questão negra, até a Constituição de 88, e, depois, a questão quilombola. Porque, antes de 88, ser quilombola era ser criminoso. Eu tentei levar o debate quilombola para dentro da estrutura sindical. Me desfiliei do partido em 1997 para me dedicar exclusivamente à questão quilombola. Mudei do território onde nasci, no vale do Berlengas, e vim para o vale do rio Piauí, próximo do município chamado São João do Piauí, num quilombo chamado Saco Curtume, que é onde eu vivo até hoje. E aqui eu passei a tentar compreender cada vez melhor os modos de vida do nosso povo, o pensamento do nosso povo, até que lancei um livro, em 2007, intitulado Colonização, quilombos: modos e significados. Eu peguei aquilo que o nosso povo me ensinou, nas mais diversas formas de linguagem, através das imagens, palavras, atitudes, e traduzi em palavras que a academia entende. Para quem discute o desenvolvimento sustentável, eu trouxe a biointeração. Para quem discute a coincidência, eu trouxe a confluência. Para quem discute o saber acadêmico e o saber tradicional, o saber empírico, eu trouxe o saber orgânico e o saber sintético. E aí eu trouxe o pensamento linear e o pensamento circular — coisa que outras pessoas também discutem, mas eu aproveitei para discutir isso. E aí, para quem discute o racismo e o capitalismo, eu trouxe o contracolonialismo. O contracolonialismo vem junto com a matriz da cosmologia politeísta.

Noguera – Para a gente entender o que o seu pensamento sistematiza e como ele nos ajuda a entender a sociedade em que a gente vive, como é esse empreendimento da contracolonização e da cosmologia politeísta? Fale da cosmologia politeísta e da confluência, do orgânico versus sintético.

Bispo — Por que essa questão da cosmologia? Primeiro, porque me incomodava quando se falava que a escravidão no Brasil surgiu porque um modo de produção precisava de mão de obra escrava. Eu posso até concordar com isso, mas a pergunta é: quem determinou qual povo seria escravizado? Eu fui procurar essa determinação e eu encontrei a bula papal de 1455, escrita pelo papa Nicolau V no dia 8 de janeiro. Ela dizia que o rei de Portugal poderia invadir, subjugar, humilhar, escravizar, submeter à escravidão perpétua todo principado e condado onde o povo fosse pagão. Pronto! Eu encontrei aqui quem foi que determinou qual povo que seria escravizado. Foi o cristianismo. E o cristianismo é uma religião monoteísta, de um deus só. O povo que o cristianismo, através desse papo, determinou que deveria ser escravizado eram os povos de religiões politeístas, ou de cosmologias politeístas. Os críticos poderiam dizer que foi apenas um papa, que outros papas pensavam diferente. Então me concentrei em quem fundamentou esse papa. Ora, como eu fui formado para traduzir os contratos escriturados para a oralidade, qual é a mais importante escritura dos cristãos? A Bíblia. Então eu fui na Bíblia, e em Gênesis eu vi aquela pérola: “Deus Jeová disse: para Adão e Eva a terra será maldita por tua causa, ou porque tu me desobedeceu, porque tu comeu do fruto proibido, a partir de agora as ervas serão daninhas, tu haverá de comer com a fadiga do suor do teu rosto”. Olha só! Nesse momento, esse deus da cosmologia monoteísta, portanto um deus onipotente, onipresente e onisciente, criou a desterritorialização — ele desterritorializou Adão. Ora, se ele amaldiçoou a terra, quem é que quer viver numa terra maldita? Mas aí ele criou o trabalho: “Haverá de comer com a fadiga do suor do teu rosto.” Logo, o trabalho é o castigo. O próximo passo: ele criou o terror porque disse, também, que todas as gerações descendentes de Adão seriam amaldiçoadas. Mas ele fez mais do que isso: ele criou uma doença chamada cosmofobia, que é o medo do cosmos. Então os cristãos monoteístas não respeitam o seu deus, eles temem. Eles são aterrorizados. Aí eu compreendi que a colonização é um sistema fundado numa cosmologia monoteísta que produz um pensamento vertical, linear, que tem começo, meio e fim. E eu fui ver que, como Deus diz que as ervas são daninhas, aquele povo não podia comer da natureza como a natureza se oferecia. Então, eles não poderiam confluir com os demais seres, compartilhar com os demais seres. Eles tinham que sintetizar. Eles tinham que transformar a natureza em uma outra coisa. Daí cria o desenvolvimento. Então esse povo é o fundador do desenvolvimento. O desenvolvimento é fundamentado no pensamento sintético, e o envolvimento é fundamentado no pensamento orgânico. Então logo começa a se ver aqui que as pessoas vão logo pensando cada vez mais diferente. Os cristãos consideravam pagãos os povos de cosmologia politeísta. O povo de cosmologia politeísta, por ter várias divindades e por conta das suas divindades estarem em todos os lugares, é um povo que vê a sua divindade quando olha para a terra, quando olha para os astros, quando sente o vento, quando olha para a mata… Então é um povo que pensa de forma circular. Pensa de forma circular e age de forma circular. Por isso que os quilombolas e os povos indígenas, tudo que eles fazem é na circularidade. A capoeira é rodando, o samba é rodando, o reggae é rodando, os nossos cabelos quando crescem são redondos. E aí nós temos começo, meio e começo. Nós não temos começo, meio e fim. Porque a roda não tem fim e nem começo. Ela é fim e começo o tempo todo, em qualquer lugar que você entrar na roda. E qualquer lugar que você entrar na roda é meio. Mas não tem fim. A roda só tem começo, meio e começo. E é assim que nós nos comportamos. Quem são os povos colonialistas? São os povos euro-cristãos-monoteístas. E quem são os povos contracolonialistas? São os povos de cosmovisão politeísta. Todo e qualquer povo de cosmovisão politeísta é por natureza contra a colonização. Tanto é que nós nunca quisemos governar o mundo. A gente não forma sociedade, a gente forma comunidade. A sociedade é formada pelos seres do ter. E a comunidade é formada pelos seres do ser. Ou seja, voltando à questão pensamento orgânico e pensamento sintético: o pensamento orgânico é o pensamento do ser e o pensamento sintético é o pensamento do ter.

Noguera – Essa ideia do começo, meio e começo faz uma diferença tremenda, porque não tem um ponto final, não tem uma natureza a ser conquistada. Uma preciosidade pensar que a comunidade é uma alternativa. Isso talvez mude a forma de fazer política. Você tem na sua experiência o sindicato, o partido político, e você sai do sindicato e do partido, talvez por essa percepção de que mesmo partido e sindicato estavam envolvidos em uma cosmofobia, em um pensamento euro-cristão que não solucionava o nosso problema. Como a gente faz política, então?

Bispo – Agora vamos falar da confluência. Como é que os africanos trazidos na marra, por navios, nos oceanos, passaram pela árvore do esquecimento, e como é que esse povo não esqueceu? Como é que esse povo trouxe esse seu saber para cá? Eu fui tentar entender, pelas conversas com a nossa geração avó, e aí um dia, conversando com a mãe Joana, que foi uma das minhas grandes mestras, eu perguntei: “Mãe Joana, que barulho é aquele?” “Meu filho, esse é o rio Jordão.” “Mas que rio é esse?” “Esse é o rio do céu.” Aí eu fiquei com aquilo incutido na minha cabeça. Outro dia, conversando com uma indígena, ela disse: “Eu gostaria de saber muito mais sobre o povo quilombola, mas não dou conta nem de saber sobre os indígenas”. “E eu a mesma coisa”, eu falei. “Queria saber sobre os indígenas, mas não dou conta nem do quilombola.” Ela disse: “Como é que nós vamos fazer isso um dia?”, e eu disse: “Pela confluência”. “Como assim?” “Como é que você imagina que as águas do São Francisco se encontram com as águas do rio Nilo, se tem um oceano no meio? E elas se encontram ainda doces.” Ela disse: “Ué, não sei”. Eu disse: “Pelo rio do céu. As águas do São Francisco evaporam e vão pelas nuvens e chove lá em África. E as águas do Nilo chovem e vêm pra cá. As águas confluem também pelos rios do céu”. Caramba! Então, o nosso povo foi transportado pelos navios dos colonialistas, mas eles transfluíram pelos astros. Ou seja, quando os africanos chegaram aqui, eles se comunicaram com os indígenas através das plantas, através dos astros, através das águas, por entender esses entes foi que eles se comunicaram. Então os quilombos foram formados pelos africanos com o apoio dos indígenas. Ou seja, como fazer política? Nosso povo já ensinou. São os quilombos. Os quilombos são as mais importantes referências que nós temos, nesse momento, no mundo. Porque o resto é referência teórica, e referência teórica é desconectada. Como é que Karl Marx vai nos ensinar, se Palmares aconteceu antes de Karl Marx nascer? Palmares fez tudo que Karl Marx apenas escreveu. A esquerda e a direita são dois membros do mesmo corpo. Tanto a esquerda como a direita são colonialistas. São cristãos. A direita diz que apoia a democracia, a esquerda diz a mesma coisa. A direita diz que a solução tá nas eleições, a esquerda diz a mesma coisa. Onde tá a diferença? A diferença é que a direita defende o Estado, mas constrói uma estrutura paralela. E a esquerda defende o Estado, mas não constrói uma estrutura paralela.

Noguera – Escraviza a gente cada vez mais, não é? E acaba com a oportunidade de liberdade.

Bispo – Os euro-cristãos criaram o Estado mas mantiveram as igrejas. E as igrejas são Estados paralelos, tanto é que hoje elas têm banco, universidades, hospitais, elas têm tudo que elas precisam para viver bem. E a esquerda construiu o quê? A esquerda ficou fortalecendo o Estado e eles saqueando o Estado.

Noguera – Você tá falando uma coisa disruptiva. Você faz uma crítica estrutural à direita e à esquerda, dizendo que a solução para uma sociedade mais justa não tem nada a ver com essa opção: são dois membros do mesmo corpo.

Bispo – Eu não tenho nenhum órgão do Estado como aliado. Mas nós temos confluentes. Deixa eu te contar uma história… Eu fui adestrador de bois. E adestrar e colonizar é a mesma coisa. Primeiro: ou eu confinava esse boi no seu território ou eu tirava ele do seu território para confinar em um território estranho. Eu mudava os hábitos desse boi. Eu ensinava ele a comer outras coisas para ele esquecer de comer o que lhe era habitual. Ou seja, eu fazia com que ele saísse dos seus modos de vida, da sua cosmologia. E eu lhe trocava o nome. O colonialismo faz a mesma coisa. O colonialismo confina, ataca os modos, tira do seu meio ancestral e coloca para trabalhar. Da mesma forma que tem animais que são adestrados e tem animais que não são, tem pessoas que estão dentro dessa estrutura, mas estão insatisfeitas. E aí é que tá o grande segredo. Depois que o nosso livro chegou nas universidades, muitas pessoas de pele de outras tonalidades, pessoas que têm uma herança colonialista, têm questionado a sua própria herança. Eu acredito que é possível a gente contribuir para que os colonialistas se reeditem, pelo menos as gerações mais jovens. Então eu não vou dizer aliado, mas confluente. Por exemplo, professor Zé Jorge deu grande contribuição para a publicação do nosso livro. Ele é um aliado? Não. Mas ele é uma pessoa confluente. Há uma diferença entre o aliado e o confluente. Um rio não deixa de ser rio porque conflui com outro rio. É o contrário: ele é um rio da confluência para a nascente, e da confluência para a frente ele também continua sendo um rio, só que um rio mais fortalecido. Ou seja, pelo fato de confluir com o Zé Jorge, eu não vou ser dominado pelo Zé Jorge e nem vou dominar o Zé Jorge. Mas nós vamos fazer coisas juntos, que fortaleçam a trajetória dele tanto quanto a minha.

Noguera – É melhor confluir do que ser aliado. Você vê que o aliado, de repente, é uma pessoa que pode querer tomar o território, trair, fazer aliança.

Bispo – Quando Dilma caiu, um amigo me perguntou: “Bispo, você acha que foi golpe ou não foi golpe a queda de Dilma?” O que eu falei pra ele: “Meu amigo, formiga que vai para banquete de tamanduá não volta”. É isso.

Noguera – Eu penso que é a melhor análise que eu vi nos últimos tempos, ou seja, não que fosse golpe ou não, já estava previsto, pré-programado que não tinha saída, porque o grupo que estava ali não tinha confluência. Não tinha projeto junto. O inverso da confluência, Bispo, fala um pouco sobre isso. Assim como o orgânico se contrapõe ao sintético.

Bispo – O inverso da confluência é a influência. O povo contracolonialista transflui para confluir. E o povo colonialista se transporta para influir. Ou seja, o povo contracolonialista, por pensar organicamente e na circularidade, quando encontra com o outro, ele pensa em uma situação de fronteira, e a fronteira é um espaço de diálogo, de conversa, de possibilidades. O colonialista não chega na fronteira, ele chega no limite. E quando ele chega no limite ele quer influenciar, quer trazer o outro para o seu dele ou invadir o território do outro. Ele não respeita a fronteira. O limite é sempre um espaço de guerra, não de diálogo. Então o colonialista chega para influenciar.

Noguera – Ela se transporta para o território do outro, mas na verdade ela quer influência. Tem hoje essa expressão digital influencer, um negócio meio colonial. Você se posiciona como um pensador quilombola e recorre ao Abdias Nascimento, que é um autor muito interessante para pensar a questão do quilombismo.

Bispo – A grande questão é que o Abdias Nascimento ainda tinha muita influência do Estado. Quando ele chama a atenção pro quilombismo, ele dá uma grande contribuição, mas, como também navegava por dentro da academia, ele trazia esse debate como uma teoria. Ele não trazia esse debate como um modo de vida. Porque o quilombo é um modo de vida, tanto é que na comunidade, quando uma criança não tá fazendo uma coisa que os adultos acham certo, como é que a gente diz: “Cria modo, menino!” Então o modo, o quilombo, ele é um modo. Por exemplo, eu sou lavrador. Na academia, tem a categoria que é o engenheiro agrônomo. O engenheiro agrônomo não sabe fazer uma cerca, na maioria das vezes. Na maioria das vezes, ele não sabe cuidar de um animal, não sabe plantar, mas sabe ensinar. Como é que tu sabe ensinar uma coisa que tu não sabe fazer, rapaz? Mesma coisa o engenheiro civil.

Noguera – Provocando os teóricos, você vê essa cisão entre teoria e prática, que deveriam estar juntas.

Bispo – O desafio é mandar o engenheiro agrônomo pro quilombo, pra ele viver na agricultura aplicando as teorias que ele aprendeu na universidade. Ele sozinho. Será que ele vai escapar? Aí é só separar o que é o saber orgânico do que é o saber sintético. O saber acadêmico é o saber sintético. O saber das universidades é o saber sintético, que ensina fora do lugar de fazer.

Noguera – Por isso a colonização permeia tudo. Essa trajetória que você nos diz, como que ela é um problema a uma sociedade democrática? Se tivermos o ideal de democracia, se a gente puder reclamar democracia, ela tem que ser quilombola, tem que ser dos povos originários, indígenas.

Bispo – Tu sabe como que a nossa comunidade chama democracia? Burrocracia. Se a democracia fosse boa, não precisava de armas. A democracia mais importante do mundo é a americana, e é a mais armada. Então, no quilombo não se tem democracia. Se tem compartilhamento. É outra coisa.

Noguera – É o deslocamento completo. Não é reforma. Reforma não adianta. Qual o desafio que a gente tem diante de um governo, hoje, de extrema-direita, e com algumas várias leis trabalhistas solapadas?

Bispo – Eu nasci entre a caatinga, o cerrado e os cocais. Nasci em uma encruzilhada. Você já ouviu falar, com certeza, que o cerrado tem o fogo natural. Com o passar do tempo, muitas vidas no cerrado vão dispondo sobre a terra materiais. Os animais soltam pelo, esterco; as aves soltam penas; as árvores soltam galhos e folhas secas. Chega um momento em que essa matéria deixa de se decompor e a terra deixa de alimentar as outras vidas. De repente, um ser inteligente, que pode ser um indígena, um quilombola, mas pode ser também uma descarga elétrica, pode ser uma pedra que rola sobre um penhasco que rola e gera uma faísca e gera um incêndio no cerrado. O fogo vai queimar aquela matéria seca; o vento vem e espraia a cinza, e depois que passa o vento vem a chuva e infiltra aquela cinza na terra. Ou seja, a terra se alimenta de novo e alimenta os outros seres. Assim a vida se reedita no cerrado. É isso que aconteceu na sociedade brasileira. Sindicatos, partidos, ONGs eram essa matéria seca. Ela não permitia mais que as condições de vida fluíssem. Então isso que chamaram de crise, na queda de Dilma, isso é o fogo do cerrado. Ou seja, o povo quilombola, o povo indígena, os povos e comunidades tradicionais são as sementes que quebraram a dormência, são as árvores que rebrotaram, são os animais que tão pastando novos brotos. Então hoje são os povos, e não são mais os partidos. São as comunidades, não são mais os sindicatos. Eles ainda têm um papel, mas um papel de transição. Ou seja, o povo passou a reaprender os quilombos. Desde Palmares, desde Caldeirão, desde padre Cuié, aprendendo a capoeira, aprendendo os terrenos de matriz africana, aprendendo o samba, nos batuques, nas nossas escolas.

Noguera – Tem uma luta, uma disputa que é burocrática. E tem uma titulação do quilombo, de ter garantido a terra indígena, mas que só isso não basta.

Bispo – Até porque o território não é apenas físico, ele é cosmológico. Eu não sou quilombola só quando eu estou no Saco Curtume, eu sou quilombola aonde eu for. A minha natureza vai comigo aonde eu for. Se eu chegar no Rio de Janeiro, eu sou quilombola do mesmo jeito.

Noguera – Você está dizendo outra coisa: confluência não é aliança. Não é fazer aliado. Não é, porque o sintético é justamente uma colonização. O sintético coloniza, o orgânico não.

Bispo – O sintético coloniza e o orgânico contracoloniza. Um quilombo não tem ingerência sobre outro. Você nunca vai encontrar, no Brasil, um quilombo igual. Mas todos os quilombos se respeitam. A gente se comunica, a gente compartilha. A primeira confluência entre o povo africano e os indígenas foi no início do colonialismo, se comunicando através da cosmologia, através das plantas, das águas, das estrelas, dos astros. A gente acabou se comunicando, e teve uma primeira confluência, e aí formamos os quilombos. Daí os quilombolas eram uma organização criminosa, e a aldeia era uma organização selvagem. Na Constituição de 88, quilombo passou a ser uma organização de direito e aldeia também, então nós confluímos agora. Agora nós confluímos no sintético. Nós confluímos primeiro no orgânico e agora nós confluímos no sintético.

Noguera – Se a gente fosse pensar, quais caminhos podemos pegar hoje em uma sociedade que vive um acirramento e passa por uma crise política e sanitária?

Bispo – Só dizer que quem tiver oportunidade e quem não tiver faça por onde ter. Ou seja, converse com a sua geração avó. A sociedade que põe a geração avó no asilo e a geração neta na creche é uma sociedade doente. É uma sociedade desconectada. Isso que é começo, meio, começo. A geração avó é começo, a geração mãe é meio, a geração neta é começo de novo. Essa é uma questão. A outra questão é: é preciso ter políticas públicas, mas é preciso ter políticas próprias. As políticas públicas só servem se for para estruturar as políticas próprias. Se não tiver política própria, não precisa ter política pública. A outra questão é muito fundamental: os seres humanos precisam saber que a vida deles também depende da vida dos outros seres, e com um detalhe, preste bem atenção nessa questão da pandemia: os únicos seres do mundo que precisam de hospital são os humanos. Os outros seres vivem seus ciclos de vida só através da biointeração, só através da confluência, só através do compartilhamento. Os demais seres só adoecem quando entram em contato com os seres humanos. Os seres humanos adoecem todo mundo. Quantas pandemias o agronegócio já provocou nos outros seres? Essa pandemia agora pode ser uma resposta dos outros seres. Antigamente, você entrava no supermercado e encontrava muitas variedades de manga, de banana, uma grande quantidade de peixe. O colonialismo não atinge só os seres humanos, ele atinge a todos, porque é contra a diversidade. Cada vez que nós formos tomar uma atitude na vida, vale lembrar que todos os seres são importantes. O que não é importante não existe.

Noguera – Que ode à cosmofilia! Um amor ao mundo, um amor à vida, ao existir. Como é importante a existência!

A presente conversa foi gentilmente cedida por Renato Noguera e Nêgo Bispo para esta edição da Amarello. O conteúdo aqui publicado segue fiel ao original, contendo apenas edições básicas para adaptação ao formato impresso.