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Ómí Tútú: o poder da água sob a perspectiva das religiosidades afro-brasileiras

A percepção de mundo de muitos dos povos africanos e indígenas entende a humanidade como parte da natureza, sem construir uma relação de superioridade e exploração com as demais espécies e elementos que a compõem. Cada recurso natural é respeitado e cultuado como divindade.

Foto: Marvin Kennedy

De acordo com a cosmogonia Iorubá, Ọlórun, o Deus supremo dos povos Iorubá, criou o aiyé, o mundo material, através de um processo sucessivo de divisões do seu àṣẹ (axé, energia vital). Destas subdivisões, primeiro surgiram os quatro oṣa (elementos), sendo eles a água, a terra, o fogo e o ar. Cada um desses elementos constitui, portanto, uma parte do próprio Ọlórun.

A água é um elemento feminino e representa o poder de gerar vida, a capacidade de fertilizar a terra e a possibilidade de nutrir. Do líquido amniótico ao leite materno, dos rios aos mares,a água simboliza as múltiplas faces do matriarcado.

Ómí Tútú, a água fresca que acalma

Dentro da liturgia do candomblé, há um ritual bastante antigo praticado, inclusive, na Nigéria e no Benin, que consiste em jogar água no solo à frente da moradia, ou ilé (templo), ao entrar ou sair. Esse ritual é conhecido como Ómí Tútú, em tradução livre, “água fresca que acalma”.

As principais motivações para a realização do Ómí Tútú são: esfriar o caminho de quem chega; esfriar o caminho de quem vai; abrir caminhos para uma nova energia mais sensível; mostrar aos convidados que são bem-vindos; mostrar para os convidados que Exu aprova sua visita.

Para além do ato de molhar o solo, o ritual se dá através da evocação, como vemos a seguir:

Original:

Omi tutu
Omi tutu Exu
Omi tutu Onilé
Omi tutu Egungun
Omi tutu Onã
Omi tutu mojubá o!

Tradução:

Água que acalma ou esfria
Água que acalma Exu
Água que acalma a terra
Água que acalma os Ancestrais
Água que acalma os caminhos
Água que acalma, eu te saúdo.

Há um ditado iorubá que diz “Somente a água fresca apazigua o calor da terra”. Pensar este ditado à luz do entendimento da água, enquanto representação do feminino, permite-nos compreender o papel central de articulação protagonizado pelas mulheres dentro das sociedades africanas. A partir desta reflexão, trarei a seguir a figura das duas principais yabás, orixás femininos do panteão Iorubá, que têm nas águas a sua essência. São elas: Oxum e Iemanjá.

Oxum, Senhora dos rios e cachoeiras

Segundo um itan – que são as lendas e estórias dos povos Iorubás -, após a criação do Àiyé, foi convocada uma assembleia para definir o seu destino. Nessa assembleia estavam presentes apenas os Orixás masculinos. A movimentação em torno desta reunião chegou aos ouvidos de Oxum, que indagou o motivo de não ter sido convidada. Oxalá, que liderava a reunião, respondeu que apenas os homens deveriam participar da discussão. Oxum, muito contrariada, estabeleceu que, a partir daquele momento, deixaria de derramar suas águas doces sobre o Àiyé.

As terras se tornaram inférteis, a vegetação padecia seca, mulheres já não podiam gerar e a fome se alastrava rapidamente. Diante da gravidade da situação, o povo no Àiyé buscou Exu, o mensageiro entre a humanidade e os Orixás, pedindo a ele que intercedesse junto às divindades para que as condições de subsistência fossem normalizadas. 

Ao receberem o recado de Exu, os Orixás masculinos voltaram a se reunir para consultar Olodumaré sobre o que estaria acontecendo no Àiyé. Olodumaré questionou, então, se Oxum, que é a própria fertilidade, havia sido convidada a participar das decisões acerca do mundo que agora sofria com as secas. Os oborósnomenclatura Iorubá aos Orixás masculinos – responderam que não. Olodumaré então ensina: sem Oxum e suas águas doces, nada cresce sobre a terra. 

Diante disso, os Orixás buscaram Oxum, convidando-a para que participasse das assembleias junto aos demais Orixás e rogando por sua clemência em devolver ao mundo a fertilidade.

Oxum nos elucida, através deste itan, a forte relação entre água e matriarcado para as sociedades iorubás. A presença feminina nos espaços de poder é o caminho para uma sociedade próspera e harmônica.

Dentro das religiões afro-brasileiras, pertence a Oxum o cuidado com o ventre feminino. É a ela que muitas mulheres recorrem quando encontram dificuldades para gerar filhos, ou quando já os geram e buscam o amparo desta yabá durante a gravidez e o parto. 

Na ritualística de Umbanda, o ato de lavar a cabeça sob as águas de uma cachoeira possibilita a limpeza espiritual e a abertura de caminhos, considerando o curso das águas dos rios como condutor que levará para longe qualquer mazela. Os rios espelham também a face diplomática de Oxum, que, diante dos obstáculos, não busca o conflito, mas elabora a melhor estratégia para contorná-los e seguir seu fluxo natural.


Iemanjá, a mãe dos mares e oceanos

Dia 02 de fevereiro, em Salvador | Foto: Max Haack

Há um itan de Iemanjá que narra o episódio da separação entre ela e seu filho Oxóssi.

Um dia, Oxóssi decidiu que era o momento de seguir em busca de sua liberdade. Ao ver o filho partir, Iemanjá chorou tanto que, primeiramente, o seu pranto e, em seguida, ela mesma transformaram-se nas águas salgadas que formam os mares e oceanos.

No contexto histórico da construção das diásporas africanas, os mares assumem a função de caminho. Foi, através deles, que pessoas africanas submetidas à condição de escravizadas fizeram a travessia para as Américas. Muitas delas não resistiram a esta travessia, sendo, então, absorvidas pelas águas da Kalunga[1] grande, o mar.

Aqueles que chegaram aos territórios colonizados das Américas trouxeram consigo seus valores civilizatórios, dentre eles, suas fés, suas divindades e seus cultos. Através da organização e da resistência destas pessoas, perpetua-se até hoje uma grande devoção por Iemanjá, considerada uma das Orixás mais populares no Brasil.

Conhecida também pelos nomes de Inaê, Janaína, Ogunté, entre outros, Iemanjá move multidões na direção de seus mares durante seus festejos, como é o caso do dia 2 de fevereiro, sobretudo, no estado da Bahia.

Foto: Bruno Acioli

Toda a popularidade de Iemanjá no Brasil, porém, está cercada de tramas sociais complexas, sendo a principal delas o racismo que resultou no embranquecimento dessa orixá. Sua representação mais conhecida imprime a imagem de uma mulher de pele clara e longos cabelos lisos, fenótipo que sabemos não se aplicar às mulheres do continente africano, sobretudo àquelas pertencentes à região onde nasce o culto a Iemanjá. A aceitação de uma divindade africana como importante marco cultural brasileiro tornou-se viável a partir da aproximação de sua aparência ao padrão atribuído ao Deus Cristão, ou seja, o padrão europeu. 

Não apenas Iemanjá foi embranquecida para se popularizar, mas rituais característicos das religiões afro-brasileiras foram apropriados e distanciados de sua origem para que hoje sejam amplamente reproduzidos. Um grande exemplo dessa apropriação é a prática de pular sete ondas na virada do ano. Muitos desconhecem que este é um rito da liturgia de Umbanda e tem por objetivo saudar a senhora dos mares, pedindo a ela proteção e boas novas.

Neste sentido, percebemos a contradição de uma sociedade que lança flores ao mar e pula ondas em 31 de dezembro enquanto produz índices alarmantes de violência contra o povo de axé nos outros 364 dias do ano.

Águas sagradas, purificação, conexão e renascimento

Foto: Arquivo Shutterstock

Embora haja profundas diferenças culturais quando comparamos a relação que os povos africanos estabelecem com a natureza e a relação estabelecida com ela pelos povos europeus, a água como elemento ritualístico não é uma exclusividade das religiosidades afro-brasileiras. Dentro do catolicismo e do protestantismo, por exemplo, a água exerce a função de purificação e renascimento.

O maior exemplo do uso da água em rituais cristãos é o batismo, que é compreendido como um processo de iniciação, uma porta de entrada para a vida em comunhão com a Igreja de Cristo. É preciso passar pelas águas para ser validado como um filho de Deus.

Já nas religiões afro-brasileiras, para além das significações já abordadas neste artigo, a água está presente como elemento base em muitos momentos, como é o caso do ìpàdé, ritual consagrado a Exu, no qual a água tem a função de acalmar e fertilizar as energias de acordo com a necessidade. Outro exemplo é a cerimônia das águas de oxalá, em que a água atua como fonte de purificação da comunidade daquele terreiro.

Como pensar a nossa existência sem a presença das águas? A água é o sangue branco, a grande portadora do axé da vida. A água é a mulher e a força do seu ventre. A água é aquela que nutre, acalma, purifica e refresca a terra, os corpos e os oris[2].

Que os saberes produzidos pelos povos africanos e perpetuados pelas comunidades de terreiro sirvam de referência para toda a sociedade no que diz respeito ao cuidado e a preservação dos recursos naturais. Que a pedagogia dos Orixás, sobretudo, das yabás nos ensine que mesmo aquilo que hoje é abundante, um dia, pode escassear.


[1] Palavra originária do tronco linguístico bantu, que tem significados diversos, tais como “imensidão”, “Deus” e o próprio “mar”. No contexto afro-brasileiro, a palavra “kalunga” ou “calunga” é utilizada para nomear o lugar em que recebe os mortos (cemitério).

[2] “Ori” é uma palavra de origem iorubá e significa “cabeça”.