
Cores suspensas no tempo: a redescoberta de Eleonore Koch
No coração dos Jardins, em São Paulo, uma ampliação da Paulo Kuczynski Galeria de Arte abre suas portas com uma retrospectiva dedicada a Eleonore Koch (1926-2018). A escolha não poderia ser mais acertada: a artista, que passou grande parte da vida nas sombras do reconhecimento, dando continuidade a uma redescoberta que vem acontecendo nos últimos anos, finalmente tem sua obra reavaliada com o devido destaque. A exposição inédita, aberta desde 17 de março, cobre cinco décadas de produção, oferecendo um aprofundamento nas singularidades de seu trabalho, em que cores suaves, composições meticulosas e silêncio visual compõem uma obra de imensa densidade.

Nascida em Berlim, Koch ainda era criança quando sua família, de ascendência judia, emigrou para o Brasil para escapar da escalada nazista na Alemanha. Instalados em São Paulo, seus pais buscaram um novo começo e foi então que ela deu os primeiros passos na arte. Desde cedo, interessou-se pela pintura e pelo desenho, tendo sua formação influenciada por nomes fundamentais para o modernismo brasileiro, como a pintora Yolanda Mohalyi (1909-1978), a escultora Elisabeth Nobiling (1902-1975) e o pintor Samson Flexor (1907-1971). No entanto, sua maior referência viria anos depois, com ninguém mais ninguém menos que Alfredo Volpi (1896-1988).

Entre 1949 e 1952, Koch viveu em Paris, onde estudou com Árpád Szenes (1897-1985) para se dedicar mais ao desenho e à escultura. A experiência na capital francesa deixou marcas na precisão de sua composição, mas foi ao retornar ao Brasil e estudar com Volpi que encontrou a técnica que definiria sua obra: a têmpera a ovo. Esse método milenar, utilizado desde a Idade Média, consiste na mistura de pigmentos com gema de ovo e água que resulta em uma tinta de secagem rápida e acabamento fosco. A têmpera dá maior densidade às cores, tornando-as vibrantes e luminosas, ao mesmo tempo que permite uma aplicação em camadas finas e realça a solidez das formas.
Em suas mãos, essa técnica transformava superfícies planas em composições de textura aveludada e contornos delicadamente definidos, criando um efeito de suspensão no tempo. Sua aproximação com Volpi fez com que, por algum tempo, erroneamente fosse vista como um desdobramento do geometrismo colorido do mestre. Porém, ao contrário dele, que dissolvia a figuração em elementos abstratos, Koch jamais abandonou a representação. Suas pinturas são caracterizadas por uma atmosfera silenciosa e contemplativa, com interiores e paisagens despovoados que transmitem uma sensação de pausa, como se cada cena estivesse à espera de um acontecimento. Isso confere ao trabalho da artista uma dimensão quase cinematográfica de dilatação do tempo, remetendo a fotogramas de um filme interrompido, diante dos quais a pessoa espectadora é convidada a imaginar a narrativa que ali se desenrola.
Koch trabalhava com uma economia de elementos, reduzindo suas composições ao essencial. Suas cenas muitas vezes apresentam apenas um ou dois objetos, meticulosamente dispostos dentro do espaço pictórico. Em suas representações de vasos, portas, janelas e mesas, por exemplo, há um equilíbrio entre solidez e leveza, entre presença e ausência. Outro aspecto distintivo de sua pintura é a relação entre forma e fundo, como uma investigação da fusão entre objetos e espaço que cria superfícies planas onde os elementos parecem se dissolver no ambiente. Essa abordagem remete à tradição da pintura modernista, mas sem os excessos do abstracionismo radical. Sua obra mantém um vínculo com a realidade, ainda que filtrada por uma sensibilidade minimalista


A sensação de espera tão presente em suas produções, aliás, reflete de forma curiosa o tempo que Koch passou sem o devido reconhecimento. Depois de décadas de trabalho, com suas cores suspensas no tempo e sua solidez irredutível, a expectativa enfim se rompe: sua obra, que enquanto a artista estava viva nunca teve o destaque que merecia, enfim vem recebendo a valorização há tanto aguardada.
É verdade que Eleonore Koch tinha um nome. Chegou, inclusive, a participar de quatro edições da Bienal de São Paulo (1959, 1961, 1963 e 1967) e se consolidou como uma artista respeitada. Mas nunca era colocada na prateleira dos grandes. Em 1968, portanto, mudou-se para Londres, onde permaneceu por vinte anos. No cenário brasileiro da década de 1960, dominado pela abstração geométrica e pela arte concreta, sua pintura figurativa encontrava pouco espaço. Em Londres, porém, encontrou um círculo mais receptivo e passou a expor na Mercury Gallery. Seu trabalho atraiu o interesse do colecionador e mecenas Alistair McAlpine, que adquiriu diversas obras e ajudou a divulgar seu nome no circuito europeu.
Apesar do relativo sucesso, Koch teve que se reinventar profissionalmente para sobreviver. Por mais incrível que pareça, chegou a trabalhar como tradutora para a Scotland Yard, mantendo a pintura como um exercício constante, mas sem a projeção que ela sonhava.

Em 1989, Eleonore Koch retornou ao Brasil e retomou sua produção em São Paulo. Foi apenas então, nas décadas seguintes, que sua obra começou a ser reavaliada de forma mais ampla. A grande virada veio nos últimos anos, com exposições importantes, como a retrospectiva no Museu de Arte Contemporânea da USP no ano passado, que reuniu cerca de 190 pinturas e revelou a extensão e profundidade de seu trabalho. Agora, com a retrospectiva inédita na nova ampliação da galeria de Paulo Kuczynski, a artista volta ao centro do debate, reafirmando sua relevância na história da arte brasileira.

Seu trabalho vem sendo redescoberto, acima de tudo, por sua capacidade de criar um universo pictórico singular, no qual a quietude e a precisão se transformam em poesia visual. Koch criou uma pintura que é, ao mesmo tempo, rigorosa e poética, construída com uma precisão quase arquitetônica, mas que, de algum jeito, emana uma suavidade que a torna profundamente humana.
E, assim, alguns anos após a sua morte, vem se abrindo essa nova etapa no entendimento do que produziu, não mais como um eco de Volpi e nem como uma artista periférica: como uma voz essencial na arte do século XX. A solidez de sua pintura, por tanto tempo subestimada, agora se impõe com a força que sempre teve — e, mais do que nunca, ninguém há de destruí-la.