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Casa escura, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoSociedade

Notas sobre a (in)satisfação negra

por Alexandro Silva de Jesus

Cena 1
Na rodoviária de Recife, mulher branca tenta impedir homem negro a ter acesso a uma poltrona isolada das demais e para a qual ele havia pagado uma taxa adicional, dando-lhe o direito de reserva. O comando da mulher, disparado de uma poltrona conexa à outra — quer dizer, de uma condição que lhe negava, economicamente, o privilégio da escolha —, era preciso: ele poderia alojar-se em qualquer uma — chegou mesmo a apontar uma ao lado de outro negro —, menos a colateral a ela. 

Cena 2
Distraído (para o mundo e para a transparência que nele há), homem negro espera suas malas surgirem na esteira de bagagens no aeroporto de Salvador, Bahia. Casualmente, deixa correr as vistas para o lado esquerdo do saguão, quando percebe uma mulher branca, com uma criança de colo nos braços, ao lado de um homem branco — entregue ele também à uma distração própria —, do qual ela se afasta para avançar em sua direção, tão logo apontar as suas duas malas e ordenar, sob a dispensa de qualquer protocolo de urbanidade, para que eu as retirasse da esteira. Pego de surpresa, o homem negro prontamente obedece, para logo constatar, numa surpresa que adoece, que ela viajava junto a seu companheiro.

Cena 3
Num dia bastante especial, homem negro deita-se na cadeira do dentista (um homem branco de cabelo ruivo e rosto pintado de sardas), boca escancarada.

Dentista, que, sentado em sua cadeira, já começava a operar seu dente: Está alegre, bicho?! Nem precisei pedir para você abrir a boca um pouco mais…

Homem negro: Feliz demais!. Resolvi parte grande da vida: passei num concurso público para professor.

Dentista: Massa. Do município?

Homem negro: Não.

Dentista: Concurso do Estado.

Homem negro: Não, fui aprovado para a universidade federal.

Dentista, enquanto interrompia por um instante o procedimento, como se quisesse assimilar melhor o que ouvira: Federal federal ou federal rural?

Homem negro, cuja mínima expressão que pôde fazer sugeria que nunca havia refletido sobre as instituições sob essa diferença: Federal federal …

Dentista, após alguns segundos que tomou para deglutir: Certo…

Começa a curvar-se novamente sobre a boca do homem negro, mas se ergue abruptamente: Mas foi para efetivo ou substituto?

As cenas acima são todas atualizações do evento racial, e dizem sobre a impossibilidade de satisfação negra, sobre o que impede de se fazer desse estado ou condição (estar satisfeito) um valor e justa medida para os racializados. Essa impossibilidade tem a mesma idade do mau encontro colonial, inaugurado entre nós no século XVI, e, desde lá até agora, traduz a poética que desencobre a pele negra — uma das superfícies abissais excretadas pelo mau encontro —, e determina sua economia no mundo. Por razões econômicas, será proveitoso recuperar aqui certa formulação que já ofereci sobre o que seja o mau encontro e suas condições de possibilidade a partir de seus efeitos produtivos:

O mau encontro colonial produz, a partir de uma vantagem bélica, uma primeira divisão do sensível, assentando uma assimetria radical entre os homens, que é, precisamente, a assimetria no acesso aos recursos energéticos. Desse momento em diante, a vida dos subordinados fica entregue à asfixia e à dissolução, muito embora a assimetria não seja capaz de impedir que a energia continue a atravessá-la e que nela se acumule ainda em excesso — a capacidade de trabalho e de procriação dos escravizados acusa esse acúmulo energético; mas o acúmulo se experimenta sujeito, então, a uma dieta de excesso mínimo.

Acontece mais que isso. Essa assimetria ocorre concomitante a uma dupla devolução ou redução do homem à existência fora de qualquer sentido. Na condição colonial, o sujeito colonizado é reduzido, por uma via, a mero recurso: pura energia em estoque, reserva disponível. Sua condição é bem expressa na imagem de um sol negro: fonte provedora de energia sem contrapartida; luz negra apropriada como parte maldita, somente. Por outra via, trata-se de suspender a fala para fazer emergir o puro animal ou o infante. Neste sentido, a questão de Gayatri Chakravorty Spivak sobre a possibilidade do subalterno falar deve ser entendida dentro da perspectiva clássica de Aristóteles sobre o modo próprio como o escravizado participa da comunidade dos falantes.

O que essa formulação organiza e encadeia, de novo, são os registros sobre as condições do nosso descaminho para marcar que haverá mau encontro, portanto, onde quer que se exerça — mais fundamentada em sua dimensão tecnológica que epistemológica — uma partilha do sensível e do abstrato cuja assimetria (da partilha) e posicionalidade dos seus sujeitos — daqueles sobre os quais se projeta a experiência de parcialidade e desapropriação — já respondem a essa dupla redução (à pura energia para consumo e ao puro animal inscrito no interior da política sob a figura do negativo).

Certamente, tal ponto de vista sobre o mau encontro acusa sua fundamentação econômica, mas cujo entendimento e cujas consequências não param ou se esgotam nos postulados da economia clássica — aqui tanto faz se liberal ou marxista, já que o que importa é a insuficiência explicativa do princípio ou primado da utilidade. Aqui, em particular, estamos mais próximos dos dados de uma economia geral e cósmica — nos termos de George Bataille —, onde o uso improdutivo — às vezes, antiprodutivo — do negro e, antes dele, do escravizado é tão fundamental quanto seu uso no interior da economia racional.

Desencobrindo o mau encontro sob essa circunscrição, a expressão “dupla redução”, que dizer de seu funcionamento diagramático, de um paradigma — complexo, em sua mistura desequilibrada de relações de poder e de estados de domínio que atravessa a experiência singular de dominação inaugurada pelo escravismo moderno, e cuja atualização só é possível pela sua capacidade de atravessar — e, em muitos casos, insuflar — corpos e posições dos sujeitos.

Definidos, pois, os termos do mau encontro (vantagem bélica, dupla redução, assimetria fundamental, os sujeitos que ele cria e posiciona), retorno às cenas para demonstrá-las como que atravessadas por sua economia.

Ora, a primeira cena demonstra que, decorridos mais de meio século desde o mau encontro, continua a figurar próprio ao ser branco o poder de comandar a partilha do sensível que nos cerca a todos. Esse poder é anterior — e superior — à regulação econômica (nesse caso, sobre as condições para pôr a poltrona sob reserva), já que o ser negro já se encontra desde sempre fora da cena do valor.

A segunda cena deixa mais evidente que a (in)satisfação negra é anteparo ou condição de possibilidade da satisfação branca. Na cena, o que se atualiza é a posição do negro como pura energia sob reserva, o que é o mesmo que dizer: disponível para o uso (ad hoc) sem medida (o nome disso é abuso).

A terceira cena, o espanto, a dificuldade de registrar o que se ouve (decidi a minha vida), a necessidade de acomodar essa escuta difícil (federal federal) e a experiência ainda hoje tão monocromática (de pertença institucional), tudo ali diz sobre o quanto figura antinatural ou contra instintivo verificar uma cena ou episódio negro de satisfação — e que alcançado, faz do negro um ser incrível (não crível).

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