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A Onda, de Lucas Rubly (2024).
#52SatisfaçãoArquiteturaSociedade

Pá de cal, pá de concreto

por Jaime Solares

Há muitas formas de se soterrar uma cidade. Pompeia — a cidade soterrada por excelência — só se tornou eterna porque devorada pelas cinzas. Destruída não com um gemido, mas com um grito, ela resolveu ser para sempre. Invejo todas as pessoas que morreram em regozijo, notadamente o homem que morreu se masturbando. Morreram no clímax do prazer, no perfeito vértice da vida que ascende e que, segundo seguinte, decai. Copulando Eros e Tanatos, esse homem qualquer, essas pessoas quaisquer, há muito tempo, fizeram-se pedra e prazer. A mesma satisfação não pode ser encontrada nas cidades brasileiras. 

Soterradas não pelas cinzas do drama natural, mas pelo concreto do mercado imobiliário, nelas o passado não se catapulta para o Eterno, sendo, ao contrário, devorado pelo mesquinho presente. Lá é a memória que mata a vida, gerando o gozo da eternidade, enquanto aqui é a vida que mata a memória, solapando as delícias de se olhar para trás. Se é verdade que a memória não reside apenas na matéria, também é verdade que ela opera como um véu que pousa em encontros fortuitos do corpo com as coisas. Em momentos particulares, nosso olhar olha de novo e vê em prédios, praças, cais e torres o que um dia fomos, antes de sermos. Esse olhar reiterado, seja pelo dia a dia, seja pelos excepcionais reencontros, dá a escala de onde estamos. Quem não se lembra da imensidão de um quarto que, visitado após adulto, não passava de um cubículo? De igual maneira, revisitar qualquer espaço na cidade que nos toca e emociona é recalibrar nossa noção de si mesmo, corpo-distância, mas também corpo-memória. 

Por isso que construir sobre nunca é inocente. Cada vez mais, construir no Brasil tem se tornado destruir. Foi-se o tempo do otimismo desmesurado do laboratório americano, do continente como experimentação das ideias produzidas alhures, conquista, desbravamento, terra virgem. Mas se de um lado nossa terra nunca foi virgem, e muito menos descoberta, por outro a consumação do tal laboratório através de experiências urbanísticas como Brasília fez da utopia distopia, de tal forma disruptiva e longe dos sonhos de progresso que ficamos até hoje atônitos tentando entender o que aconteceu. O sonho tornado real ao alto custo de trabalho explorado ao seu limite fez florescer uma realidade já em duas faces. De um lado, a nova capital, cidade planejada, poesia e razão, monumentalidade e vida quotidiana; de outro, as cidades-satélites que iam se construindo ao seu revés, cidades de improviso e às pressas, para abarcar um contingente crescente de trabalhadores da construção e de serviços que iriam nutrir o sonho brasiliano. A desigualdade nasce não como projeto, mas como condição sine qua non dessa colonização do planalto central.

Mas se, na nova capital, o verso se constrói em simultâneo ao seu reverso, na antiga capital, Rio de Janeiro, foi necessário apagar a memória dos tempos de escravidão. O Cais do Valongo, assim como as covas sobre as quais se erigiu o Instituto de Pesquisa e Memória Pretos Novos, foram soterrados pela nascente República como forma de negação do passado colonial e reinauguração do Rio como uma metrópole moderna, cosmopolita e em vias de industrialização. Tal como em nossa Lei da Anistia, que perdoava torturadores e torturados num gesto violento de sublimação da memória, a zona portuária carioca passou por um soterramento urbano que colocava a palmos do chão tanto a história dos negros escravizados quanto de seus algozes, produzindo, assim, uma amnesia seletiva. Ironicamente, foram as reformas do Porto Maravilha que desenterraram, meio sem querer, esses monumentos elididos. O gentrificador processo de “revitalização” (entre aspas, pois não podemos aceitar a narrativa de que ali não havia vida) do centro do Rio acabou por fazer reencarnar um passado traumático, mas também jogou luz a tantos outros passados que conviveram e floresceram naquela região. Apelidado há séculos como Pequena África, essa região é também o berço do samba, núcleo pulsante do Candomblé carioca e local de encontro dos negros fugidos e forros, estivadores, portugueses pobres, entre outros. No fim, a desejada revitalização ocorreu quando se resistiu, com atuação importante de arqueólogos e ativistas, a um novo ciclo de apagamento através da memorialização desses espaços e das histórias do corpo e da cultura negras na capital fluminense. Afinal, apenas uma ferida aberta pode cicatrizar.

Outra forma de memorializar é preservar o que já está aflorado. O trágico desabamento de parte do teto da Igreja da Ordem Primeira de São Francisco, em Salvador, exemplifica como mesmo um monumento às vistas no coração da cidade pode cair à terra. Ao lado dos diversos incêndios pelos quais passaram museus brasileiros nas últimas décadas, esse infeliz episódio dá forma ao mosaico da miséria de como a cultura material tem sido tratada em nosso país. O desinvestimento nesse setor, nos últimos anos, a generalizada crise econômica global, alinhados a um ethos de desvalorização do antigo no Brasil arrisca transformar-nos de uma vez por todas em um povo “condenado ao moderno”, como dizia Mário Pedrosa. Obcecados em negar uma ancestralidade pré-moderna (seja do Barroco, seja da arquitetura indígena pré-colombiana), continuamos a emular uma nostalgia pelo futuro que alimenta e ratifica um contrato de insatisfação com a memória e com a capacidade de fazer dela vida. Ao arruinamento de nossas igrejas e nossos arquivos, no entanto, temos respondido com mais ruínas. Não só monumentos têm sido deixados à própria sorte, como nossos arquivos — notadamente do caso da arquitetura — têm sido expatriados de volta à nossa antiga metrópole, Portugal. Hoje o país já não conta com os acervos de importantes arquitetos como Paulo Mendes da Rocha e Lúcio Costa, e parte do argumento para esse deslocamento é que aqui não teríamos condições de conservá-los adequadamente. Pelo risco de perdê-los para a falta de infraestrutura (argumento questionável), arrisca-se perder a carne mesma da nossa memória.

Mas se o que foi construído torna-se papel e vai embora, as novas construções também ameaçam reiteradamente soterrar o que lembrávamos de nossas cidades, muitas vezes com toques de sadismo. É o caso, por exemplo, de um novo condomínio na Zona Leste de São Paulo cujo panfleto anuncia o plantio de uma nova árvore por unidade vendida! O que o anúncio não informa é que essa nova árvore seria construída após o desflorestamento dos lotes pré-existentes para a construção desse novo residencial. Um residencial cujo urbanismo é feito, do muro para dentro, pelo departamento de marketing das construtoras, produzindo uma lista infinda de inutilidades condominiais que vão da garage band à quadra de squash; e do muro para fora pelo mercado imobiliário, gerando um sem-número de ermos urbanos nos entremuros dos condomínios. Contradição fundamental, o muro gera “segurança” ao produzir uma cidade cada vez mais antissocial e menos segura. As crianças deixaram de brincar nas ruas, entre outros motivos, porque não há mais ruas para se brincar. Novamente a consequência vira sua causa, e alimenta-se um ciclo de irrefreável paranoia que sempre encontra no novo a solução para os problemas que essa mesma paranoia ajuda a criar.

E não quero com isso substituir a nostalgia pelo futuro por uma nostalgia pelo passado. O problema é a nostalgia em si. Nostalgia como um retorno a um ideal que nunca existiu, independentemente de quando se tenha imaginado existir. Nem o passado deve ser um totem que nos imobiliza, nem o futuro deve ser um trator que nos apaga. Estar perdido não é sempre não saber para onde ir: é também não se lembrar de onde se veio. Ao fazer de nossas cidades anti-Pompeias, soterradas pela construção desenfreada de injustiças, apagamentos e perdas de memória, estamos morrendo com um gemido — de dor, e não de prazer. 

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