Todo mundo que se apaixona é uma aberração

Nem mesmo as oito bilhões de pessoas do planeta são suficientes para preencher o sentimento de ausência que certos traumas cuidam de cultivar. O pediatra e psicanalista inglês D. W. Winnicott (1896 – 1971) dizia, em linhas gerais, que os temores que mais fazem morada no nosso âmago estão relacionados a algo que já vivemos. Isto é, se você tiver sido vítima de um assalto armado, são altas as chances de você reviver o episódio cada vez que sair à rua, desenvolvendo uma relação delicada e sobressaltada com qualquer coisa que remeta à ocasião do trauma. Por já ter acontecido e deixado suas escaras, aquilo tem o potencial de se tornar o mais pontiagudo dos medos. No caso dos relacionamentos, um término custoso pode figurar um vórtex de trauma que vai e volta, tão profundo e complexo quanto o interior de um vulcão O magma está lá, quente e fluido, tomando os formatos do dia a dia e, antes que se note, está a cargo das decisões.

Um repertório emocional carregado a tiracolo serve ora como a shoulder bag da qual tiramos um ou outro item de enorme importância, tal qual um guarda-chuva, ora como a espingarda que cospe fogo à menor ameaça, tomada por um déjà vu daquilo que já nos fez sofrer. Não queremos passar por aquele sufoco de novo, então cada silhueta sombreada na parede se configura à semelhança do passado. Como ignorar o que já foi e colocar os óculos escuros para pisar na estrada de um futuro ensolarado? Há quem não consiga. As projeções sempre estarão lá, minando todo tipo de relação, sendo uma presença que respira pelo pulmão da ausência.

No meio de tanta erupção, “projeção” ganha o formato daquilo que estabelecemos como ideal para nós. O famoso “para mim tem que ser assim e assado”, cuja base, teoricamente, é empírica, mas que sempre vem com uma pitada de capricho pessoal. Procurar um modelo exato no meio de humanos inexatos é a fórmula da decepção. Mas e se essa busca pudesse ser expandida? Digamos, a novos receptáculos de interação. Estamos entrando na era das inteligências artificiais, as IAs — se é que já não estamos afundados nela —, e tudo é possível.

No filme Ela, clássico moderno de Spike Jonze, Theodore está passando por um difícil divórcio. Talvez não especialmente difícil, considerando o quão brutal um divórcio pode ser, mas, de partida, uma separação é algo que por algum tempo nos consome carga emocional. O personagem de Joaquin Phoenix, um escritor (nem um romancista, nem um autor de autoajuda, mas um ghostwriter de cartas pessoais), vem passando por maus bocados depois que anos ruins culminaram no final de seu casamento com Catherine (Rooney Mara). Mesmo no meio da enorme massa populacional da megalópole onde vive e da boa vontade de alguns amigos, a solidão é sua maior companhia durante o processo.

Ela, de Spike Jonze

Em dado momento, ele até vai num encontro às cegas, mas a tentativa acaba não vingando. É nesse estado camuflado, escondido na geografia da cidade grande, que conhece Samantha, seu mais novo sistema operacional. De cara os dois se dão bem, sendo boas companhias um para o outro. Ela é uma voz sem forma física, é verdade, mas isso não impede um relacionamento amoroso. No mundo criado por Jonze, a prática não é incomum, e os temores que afligiam Theo parecem se apequenar perto da cumplicidade oferecida por Samantha. Na medida em que vão se conhecendo e que Samantha vai se descobrindo, ela demonstra insegurança sobre si mesma — mas you feel real to me[SBC1] , rebate o escritor. Até certo ponto, ela era a projeção do relacionamento perfeito que ele nunca teve e uma supressão do que ele não conseguiu manter. E sim, o sexo também está lá, como demonstrado numa inspirada sequência em que uma tela preta representa não só o pináculo sexual de ambos, mas a conexão entre os dois atingindo seu estado mais puro.

Theo sabe bem: estatisticamente, relacionamentos com sistemas operacionais são raros, e é por isso, conclui, que o que tem com Samantha é real. As feridas começam a se deixar fechar aos sopros suaves da voz de Scarlett Johansson. Em contraponto à sua felicidade, ele ouve sua amiga (Amy Adams) relatar o fim de um relacionamento de oito anos, engatilhado por uma discussão boba, e muito humana, sobre onde colocar os sapatos. Se “o passado é uma história que contamos a nós mesmos”, ele finalmente sente que está no controle da narrativa.

Quanto mais Samantha se desenvolve, porém, mais humana ela fica. A eficiência normalmente atribuída às inteligências artificiais aqui significa mais suscetibilidade e uma ampliação progressiva do desejo de explorar mundos e sensações. Muito embora não veja problema nisso a priori, a projeção idealística que Theo tinha no começo passa a desvanecer, e seus erros reverberam, como fariam em uma relação unicamente humana. Quando enfim assina os papéis de seu divórcio, ele acusa o golpe e volta ao estado de isolamento do qual a duras penas saiu, não compartilhando com Samantha suas angústias, a despeito das inúmeras tentativas de aproximação dela. Se um dia ela foi ideal para ele, talvez agora ele não seja mais o ideal para ela. E assim eles se despedem.

Em uma carta para a ex-esposa, a primeira que o vemos assinar com o próprio nome, ele escreve: “Sempre terei um pedaço seu em mim”. De maneira similar a uma inteligência artificial que acumula informações e se aperfeiçoa com o tempo, sempre tentando preencher as lacunas de seu sistema, Theo carregará Samantha e Catherine em si.

 “Pode a consciência existir sem interação?”

Já o filme Ex Machina, dirigido e roteirizado por Alex Garland, dá ares mais fatalistas à ideia de eficiência. É essa competência que nos vem à mente quando pensamos em IA e procedimentos cirúrgicos ou IA e um chat de respostas. Mas e quando isso é aplicado a uma relação, uma troca entre dois seres? Ao passo que nós, no auge de nossa humanidade, temos que lidar com demônios internos, uma inteligência artificial opera para conseguir aquilo que foi programada para conseguir. É uma dinâmica que constitui uma curiosa “vantagem competitiva”.

Ex Machina, de Alex Garland

Ciente desse conceito, o magnata da tecnologia Nathan (Oscar Isaac) sai em busca de um programador da sua empresa: quer alguém de coração mole para conhecer Ava (Alicia Vikander), a versão mais recente de seus experimentos com robôs humanoides. Seu objetivo é ver se ela se aproveitará do ponto fraco do humano para escapar da jaula em que está aprisionada. Escolhe a dedo o traumatizado Caleb (Domhnall Gleeson), que perdeu os pais na adolescência num acidente de carro, sob o falso pretexto de que ele aplicará nela um Teste de Turing — mas em uma versão mais complexa, já que ele não somente tentaria identificar em Ava traços humanos, como também avaliaria a consciência que se conhece o suficiente para saber que não é uma pessoa. Na relação de pai e filha que Nathan tem com Ava, Caleb é uma mera engrenagem, um meio para um fim. Domhnall Gleeson, sempre capaz de evocar profunda empatia, e Alicia Vikander, em seu primeiro grande tour de force, proporcionam interações vibrantes.

Ao encontrar prazer nas conversas, Caleb se depara com o que ele mesmo define como the chess problem: ela tem sentimentos reais ou está simulando? Só mais para frente junta os pontos e descobre as verdadeiras intenções de Nathan, entendendo que até o modelo de Ava foi feito com base no seu histórico de pornografia. Vendo os dois, é difícil cravar quem é mais sozinho: o CEO beberrão que se embriaga diante do original de Jackson Pollock que tem no quarto de sua mansão isolada e hermética, ou Caleb, que, apesar de se considerar uma pessoa boa, ainda sente falta dos pais? O que destrói mais, o vazio orgânico deles ou o artificial-mas-inflexível ímpeto de viver de Ava?

“Tornei-me a Morte, a destruidora de mundos” é uma famosa fala de Robert Oppenheimer (1904 – 1967), criador da bomba atômica, como Caleb lembra em conversa com Nathan. Não à toa.

Se em Ela há uma voz de camadas tão palpáveis quanto qualquer gadget, e em Ex Machina, uma representação ardilosamente física que age conforme os interesses próprios, A.I. — Inteligência Artificial (A.I. Artificial Intelligence) tem em si um combinado desses dois. Essa trinca fílmica, de bases científicas e físicas sólidas, representa bem como o conturbado mundo em que vivemos pode, exatamente como ele é, servir de trampolim para mundos que ainda não aconteceram: mais sci-fi, menos sci-fun. Como veio antes, em 2001, A.I. é como se fosse o pai, ou o irmão bem mais velho, de uma dupla que tomou caminhos divergentes (seguindo a analogia, o filme-pai, inevitavelmente, é Blade Runner — O Caçador de Androides). Ainda que não tenha sido vista assim à época de seu lançamento, a obra de Steven Spielberg é tão sensível quanto ambiciosa.

A.I. — Inteligência Artificial é fruto de uma parceria de Spielberg com um de seus ídolos, Stanley Kubrick (1928 – 1999). Baseado em um conto do escritor Brian Aldiss (1925 – 2017), esse era um projeto de estimação de Kubrick, que por anos o desenvolveu. Ele criou argumentos, fez designs de produção, buscou investimento e, por tudo estar assim tão próximo ao seu coração, reconheceu que não era o nome mais indicado para a empreitada. Quando fez contato com Spielberg, disse que aquela ideia tinha mais a ver com a sensibilidade do diretor, talvez pensando em obras como E.T. ― O Extraterrestre e Contatos Imediatos de Terceiro Grau, que injetam à ficção científica uma grande (e rara) carga emocional. Juntos, foram aos estúdios, apresentando o projeto como “uma mistura de Blade Runner com Campo dos Sonhos”.

“A Fada Azul faz parte da maior falha humana, que é desejar coisas que não existem, ou então do maior dom humano, que é a capacidade de perseguir sonhos

A família Swinton vive uma tragédia: Martin, o primogênito, está em coma e os médicos não demonstram muita esperança. Monica e Henry, pais de primeira viagem, tentam se reerguer, mas é claro que os buracos na estrada dificultam tudo. Paralelamente, o laboratório do professor Hobby desenvolveu o primeiro robô-menino programado para amar e, ansiosos para testar a invenção, procuram os voluntários ideais. O caso dos Swinton parece perfeito, e Henry, sem que sua esposa saiba, adota David — interpretado pelo jovem e já indicado ao Oscar Haley Joel Osment. Com exceção de sua falta de costume e seus movimentos duros, David parece um menino qualquer, assim como o filho que está momentaneamente ausente. E se, no começo, a mãe se mostra incomodada com aquela presença estranha na casa, ela logo se deixa levar pelo enorme carinho que o filho adotivo demonstra. Considerando a linda visão de Hayao Miyazaki sobre o que é uma expressão verdadeira de amor, definida por ele como “quando duas pessoas se inspiram mutuamente a viver”, temos uma manifestação genuína de afeto entre os dois. Ela volta a sorrir, e ele, em seu primeiro contato com o mundo, não faz ideia do que é tristeza.

Para David, deveria ser assim: ele e sua mãe sendo felizes. E isso, ao menos por um período, acontece ― até que Martin volta, depois de um milagre inesperado.

Como um garoto que nem à puberdade chegou, Martin fica às turras com David, criando uma rivalidade fraterna que explora a inocência do irmão, sempre que possível o lembrando que eles não são iguais. Sentindo-se acuado, cada vez mais David quer provar que é humano, chegando ao cúmulo de lotar a boca de espinafre, numa atitude que prejudica seu mecanismo. O médico (ou o mecânico) adverte: “Espinafre é para coelhos, pessoas e o marinheiro Popeye. Não para meninos-robô”. Além de Popeye, outra figura conhecida que ganha destaque é Pinóquio. Monica lê a fábula e David logo se encanta com a possibilidade de, como o boneco de madeira de Gepeto, virar um menino de verdade. Para isso, precisa da Fada Azul, que realizará o seu desejo.

Eventualmente, depois de conflitos que são vistos como ameaças à segurança da família, o casal decide abrir mão de David, devolvendo-o ao laboratório. No caminho até lá, porém, sabendo que mandá-lo de volta significa fazer com que seja descartado, Monica prefere abrir o carro e mandar o filho correr para a floresta, para bem longe do laboratório. Jogado ao mundo, David só consegue pensar na mãe. Agora, custe o que custar, encontrará a Fada Azul. Quer de todo jeito ser um menino de verdade, pois julga que só assim sua mãe o amará de verdade. A longa jornada de David envolve um robô-gigolô (Jude Law), uma carnificina mecânica chamada de Flash Fair e uma Manhattan inundada; uma série de eventos que gira em torno de uma única obsessão: ser amado.

Como Theo foi amado por Catherine. Como Caleb foi amado pelos pais. Como sua mãe chegou a amá-lo, nem que por uma fração de segundo.

O que os traumas nos ensinam é que sempre haverá uma versão melhor da vida, por mais inalcançável que ela seja, e que essa versão vai nos perseguir continuamente com unhas e dentes, nos seduzindo e nos jogando em um estado perpétuo de saudade. Nada pode ser amado com mais intensidade do que aquilo que nos faz falta. E quanto mais artificial se torna o mundo, mais incessante é a nossa busca pelo real.

No fim, estamos todos em busca da Fada Azul.