O Gladiador do Amor mora num dos bairros mais caros da cidade. O endereço impressiona. Grades de ferro elétricas logo na entrada. O cenário higiênico bate de frente com a precariedade dos lambes-lambes dos postes. Rabiscados em tinta vermelha, anunciam os serviços de amarração. Subo os degraus da entrada, cruzo com duas pessoas. A primeira, uma mulher. Saião acinturado, uns trinta anos, cabelos ruivos e cacheados. Ela fala no celular e quando eu passo, espia. Um pouco antes do elevador, um homem de uniforme branco, com emblemas costurados nas duas mangas, segura uma boina de aviador e analisa o céu. No céu, duas massas robustas acinzentam ainda mais o asfalto. Aperto o botão do décimo andar. O hall do consultório é emoldurado por um papel de parede com flores violetas e os números do 1002 estão colados de forma irregular, lembram uma onda. A onda remete-me aos minutos de espera no meu pediatra, há anos. E a espera tinha o mesmo gosto de nuggets vencido.
— Escreva aqui embaixo o nome, completo, da pessoa para quem vou dirigir o trabalho.
— Então, Sacerdote. É uma longa história.
— É?! Conte, conte tudo!
O entusiasmo mexe com ele, o Sacerdote puxa para si o tarô, emparelha o monte de runas violetas e ajeita o pano indiano da mesa. Eu tento explicar a teoria; vim pedir um trabalho para os meus personagens, entende? Personagens de uma história que estou escrevendo, um romance, uma ficção! Que nome eu coloco aqui embaixo? O Sacerdote do Amor fita o meu terceiro olho (assim reconheço o gesto), ou seja, o olho contido dentro da pele que separa os dois olhos visíveis. Fixa o ponto na minha testa e muxoxa um mantra rabugento. Ele aponta com o nariz o vazio acima de mim e sentencia.
— Só posso ajudar se você disser nomes! Para efeito de amarração, o trabalho precisa de carne. É impossível fazer qualquer tipo de trabalho para personagens de uma história inventada pela mente. Nem Deus! Nem Deus! Escuta só: a magia está dentro da Verdade e a Verdade é feita de carne e energia. Tudo tem carne, entende? Sem carne não tem nada-nada que eu possa fazer por você. Pense num homem que você queira encontrar. Uma mulher quer tocar alguém, e isso eu faço!
Eu leio os lábios do Sacerdote sem prestar muita atenção no sentido daqueles sons. A boca estica as vogais e o seu olhar tão preto não separa a íris da retina. Uma única bola pisca, e na altura do meu terceiro olho, um calor desagradável condensa. Um inseto infiltra a sala pelos micro furos do radiador ao lado da janela. Não encontrando pouso seguro entre as dezenas de entidades, nem mesmo na organização cabalística das runas violetas, o inseto, meio mosca meio libélula, instala-se no ar, batendo mil asas por segundo; ele levita entre o Sacerdote e eu. O inseto é um bicho-oráculo. Encaro os mil olhos do bicho e eles espelham os diferentes ângulos do consultório, por fragmentos. As imagens se sobrepõem. A estatueta de Oxum caminha sobre as cartas abertas do tarô. A runa de número V rola no tapete de onça. As mãos de Shiva suspendem o chapéu do mago de cerâmica. Os colares pérolas de Yemanjá emolduram o ar condicionado encaixado na parede. Shiva abraça a Cigana das Sete Saias e uma criança de cera estica o arco de Oxossi. A Virgem Maria nina o meu dedo esquerdo agigantado. A porta do consultório caindo sobre o chão. Um certo enjoo rói as minhas costas, algo parece me atacar por trás. A mosca bate as asas. O Sacerdote ajeita o cabelo grisalho e desliza o anular na testa sem rugas, sem traços. O Sacerdote é quase uma máscara.
— Eu sinto que ele, o homem de carne, se esconde atrás da sua história inventada pela mente! Perversa mente! Serpente da ilusão! Você quer, Priscilla, uma ajuda para descobrir a carne desta pessoa que assombra você? Olhe para você, Priscilla, a sua aura está preta! Prefira saber o que deixa você tão menor… Entregue-se, Priscilla!
O Sacerdote apaga a luz do consultório. Eu deixo, apesar do medo do escuro, vim aqui com o intuito de explorar o fundo da minha teoria e dos meus personagens. Vou até o poço! A mosca encosta a pata na minha bochecha e eu quero abaná-la. O Sacerdote aplaca o meu gesto. Não, Priscilla, você precisa mergulhar em você mesma e o mergulho é imune às sensações, deixe a mosca, solte as cordas do presente e lance o corpo no mergulho do Divino, eu estou aqui para ajudar você nesta pequena morte. O Sacerdote repete bem perto dos meus ouvidos, eu engasgo. É quase pavor.
— Sacerdote, você pode acender a luz, por favor?
— Claro, Priscilla. Claro. Esse pouco de escuro já soprou o nome do seu homem. É Gustavo!
Em cima da mesa de jogo, a carta do Enforcado está virada. O nome Gustavo, assim, arrancado da minha cabeça em nanossegundos me deixa bamba. O Sacerdote me consola.
— Relaxa, Priscilla. Relaxa. Eu só quero ajudar.
Ele pede detalhes, qualquer detalhe. Preciso desenhar Gustavo, aglutinar nesse desenho o máximo de energias. O sacerdote adora essa palavra: energia. Começo a anotar na folha em branco. Gustavo gosta de manga. Gustavo dorme pelado. Gustavo anda de bicicleta. Gustavo planta manjericão na varanda. Gustavo mudou de celular e foi para Fortaleza. Gustavo só dava fora de área. Gustavo e a máquina fotográfica. Clique. Mais para a esquerda. Não, seja mais natural. Gustavo mora em São Paulo. Gustavo gosta de zonas de conflito. De homens com turbantes. De ketchup. De uva passa. De escovar os dentes deitado na cama. De falar francês e vestir bata peruana.
— Agora chega!
O Sacerdote grita como se cronometrasse o tempo da minha descrição. Como se o tempo curto, aqui, carregasse de mais Verdade o próprio Gustavo fabricado por mim. Pelos fragmentos dele jogados no papel. Mas o retrato é metade de Pablo, o personagem. Metade de Gustavo. Eu conto essas metades, do que é passado, do que é ficção. O Sacerdote arranca a folha com as minhas anotações e sanfona o papel. Risca um fósforo. Ateia fogo. As cinzas amontoam-se e o Sacerdote berra.
— Olhe para o fogo e diga em voz alta quem é Gustavo! Fale!
Eu mastigo palavras; Guerra, Ketchup, queijo, Gustavo, Pablo, manjericão, Gustavo de calção florido, celular sem rede, Priscilla, areia branca de Fortaleza, lente grande angular, Gustavo dorme pelado. Enquanto eu dito flashes para o fogo, o Sacerdote entoa um sermão pesadão que me lembra a aura preta em volta de mim e das minhas olheiras.
O Sacerdote ordena: – Assopra o monte de cinzas! Essas cinzas são Gustavo, você o quer de volta! Sopre! O chão do consultório incinerado, os pedaços de Gustavo e de Pablo amontoados. Sopre! As estatuetas gemem nas prateleiras e os Santos parecem suar. Clique. Este será o fim do meu romance. Clique. Após uma transa tântrica (posso intercalar Santos gemendo), Priscilla entra no mar (eles estão em Fortaleza) e Pablo foge enquanto ela mergulha. A última cena será a praia vazia, sem carne e sem memória. Fim. O tempo da consulta se esgota.
Despossuído e de voz suave, o Sacerdote recomenda um banho de flores vermelhas e frutas amarelas; é para Oxum e Maria Padilha acordarem de bom humor. Descanse por hoje, Priscilla, e tome um chá de margaridas bem quente. Você não precisa pagar pelo trabalho, é só deixar uma doação com a recepcionista. Não volte para a sua casa; é preciso descarregar. Deite uma rosa na encruzilhada mais próxima ao endereço do primeiro encontro com Gustavo e durma em paz. Gustavo morreu. Pelo menos, nunca mais tive notícias. Nem ouvi tambores.