Skip to content
Revista Amarello
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Entrar
  • Newsletter
  • Sair

Busca

  • Loja
  • Assine
  • Encontre
Brasa, série fotográfica de Gleeson Paulino, gentilmente cedida para a edição O Homem: Amarello 15 anos. Todos os direitos reservados.
#51O Homem: Amarello 15 anosCulturaSociedade

Warazu: a visão do branco

por Kaká Werá

Imagine carregar um gravador a tiracolo, desses antigos, cheio de botões quadrados, parecido com um tijolo longo e pesado, sob o olhar desconfiado de políticos e da imprensa, enquanto cada palavra que você registra denuncia injustiças. Nos anos 1980, um homem indígena fez exatamente isso, desafiando a imagem que a sociedade esperava dele. Em uma época em que a voz indígena era silenciada e a sua presença na sociedade totalmente invisibilizada, o cacique Mário Juruna não queria apenas registrar vozes — queria que o país ouvisse o clamor dos povos indígenas. No entanto, ele foi retratado pela mídia mais como uma figura bizarra, que dizia:

Warazu, o homem-branco, trata a palavra sem honrá-la, fazendo dela fumaça sem valor. Conta com o poder do vento que as leva, mas eu guardo aqui neste aparelho para que meus parentes saibam tudo o que falam e fazem e o que falam e não fazem.

Considerado excêntrico, por andar com um grande e pesado aparelho eletrônico, ele se destacava pela determinação em registrar a palavra dos políticos e denunciar a desconfiança dos indígenas em relação ao governo. Esse homem, Mário Juruna, acabou sendo retratado pela mídia como um clown da floresta, e o uso de seu gravador — embora carregado de intenção crítica — foi frequentemente reduzido a um “costume curioso”, mais folclórico do que uma séria denúncia sobre o descaso com os direitos indígenas.

“No Brasil, são mais de trezentas etnias espalhadas por todas as regiões, cada uma com sua identidade, sua voz e suas histórias de resistência”

Juruna, líder do povo Xavante, usava trajes tradicionais como expressão de sua identidade e do seu orgulho cultural, mas a sociedade e os veículos de comunicação viam essas vestimentas como “fantasias”, transformando-o em uma figura “exótica” ou “pitoresca”. Essa abordagem encobria o valor simbólico e político de sua aparência, deixando de lado a verdadeira mensagem que ele trazia. Quando se tornou deputado federal, Juruna provocou uma dissonância na forma como a sociedade enquadrava os povos indígenas, pois, para exercer o cargo, ele teve que obter um registro geral e um CPF, condições antes negadas às diversas etnias do Brasil. Em uma ocasião, ao ser convidado para um congresso internacional, Juruna foi barrado juridicamente, pois, sob a legislação da época, ele não era considerado “gente”.

A folclorização e estereotipação da cultura indígena se repetiu com o cacique Raoni, cuja imagem foi reduzida a símbolos visuais, como o botoque labial e o cocar, sem o devido reconhecimento de sua posição como liderança política em defesa da Amazônia e dos direitos de seu povo. Assim como Juruna, Raoni enfrentou um sistema que via suas vestimentas como uma curiosidade cultural, e não como parte de sua resistência e identidade. Nos anos 1980, Raoni foi catapultado à popularidade internacional pelo cantor de rock Sting, que o acompanhou em uma série de eventos para denunciar a destruição da Amazônia e defender os povos indígenas. Nascido por volta de 1930, Raoni é uma figura de liderança desde jovem, destacando-se por sua luta pelos direitos indígenas e pela preservação da floresta.

Estas duas figuras proeminentes representam a força e a luta de muitos. No Brasil, são mais de trezentas etnias espalhadas por todas as regiões, cada uma com sua identidade, sua voz e suas histórias de resistência. Juruna e Raoni nos lembram que a diversidade indígena é vasta e que suas lutas são as de centenas de povos que buscam o respeito, o reconhecimento e o direito de existir em seus próprios termos.

“A visão de que os povos ancestrais não eram humanos remonta ao século XVI, ao embate entre a Igreja Católica e os colonizadores”

Nas décadas anteriores, a narrativa predominante sustentava que os povos indígenas estavam “à beira da extinção”. Na década de 1960, os irmãos Villas-Bôas ganharam destaque ao coordenar a criação do Parque Nacional do Xingu, que visava proteger as culturas indígenas remanescentes da região. Essas culturas, ao longo da história do Brasil — desde o período colonial até a Monarquia e a República —, eram vistas pelas diversas constituições como “inferiores”. Apenas em 1988 a Constituição Federal passou a reconhecer os povos indígenas como plenamente humanos e portadores de direitos, embora ainda de modo limitado.

A visão de que os povos ancestrais não eram humanos remonta ao século XVI, ao embate entre a Igreja Católica, que condenava a escravização indígena, mas considerava essa população sem cultura alguma, e os colonizadores, que, em conluio com as monarquias europeias, justificavam o escravismo dos povos originários ao argumentar que, por serem canibais, os indígenas não poderiam ser reconhecidos como humanos. Desde então, os antigos povos reagiram a essa prática colonizadora de diferentes maneiras: fugindo para as florestas, resistindo em guerras genocidas, submetendo-se à catequização ou miscigenando-se, o que muitas vezes diluiu suas identidades e raízes.

Essa identidade fragmentada apresenta desafios profundos. A falta de coesão cultural enfraquece o sentido de pertencimento e a transmissão de valores, facilitando o isolamento e a exclusão, além de abrir espaço para conflitos internos e perda de referências culturais essenciais. Sabemos que uma identidade coletiva e cultural se sustenta em valores, símbolos e tradições compartilhados, que conectam os indivíduos a um sentimento de pertencimento e continuidade histórica. Elementos como língua, espiritualidade, arte e costumes criam um reconhecimento mútuo entre os membros, destacando o que os torna únicos. A identidade cultural é, portanto, uma herança e uma criação contínua, que se adapta e se reafirma diante de novos desafios.

Os territórios indígenas invadidos não foram apenas físicos, mas também imateriais. Esses espaços simbólicos e intangíveis, onde valores, memórias e práticas culturais são preservados e transmitidos, vão além de locais geográficos, existindo nos laços emocionais e espirituais entre as pessoas. São territórios invisíveis sobre os quais se erguem cosmovisões, moldando o entendimento que as comunidades têm de si mesmas e do mundo.

Folclorizações e estereótipos são resultado da destituição dessas visões de mundo. Um exemplo disso está na cosmovisão Guarani, profundamente integrada ao homem, à natureza e ao sagrado, que foi desarticulada pela chegada dos jesuítas no século XVI. Em nome da “civilização”, os missionários impuseram uma visão de mundo que desconectou os Guarani de seus territórios espirituais, levando-os a perder práticas e saberes essenciais para sua identidade. A organização social Guarani, que valorizava a liderança dos anciãos e a filosofia do bem-viver, foi substituída por aldeamentos controlados, com um sistema de ensino religioso que reprimia suas tradições. Esse processo, que estudiosos chamam de “etnocídio”, deixou traumas intergeracionais que ainda impactam a vida Guarani hoje.

Os legados de Juruna e Raoni são fonte de inspiração para movimentos indígenas contemporâneos que buscam reafirmar suas identidades e preservar seus territórios, tanto físicos quanto imateriais. As novas gerações de lideranças indígenas se apropriam de ferramentas tecnológicas, como as redes sociais, para registrar e disseminar suas próprias narrativas, como resistência à folclorização e à distorção. Essas vozes indígenas nos trazem uma mensagem clara: a identidade indígena não é um rótulo ou estereótipo; é uma experiência viva, construída e defendida ao longo de séculos de resistência. Figuras como Juruna e Raoni mostram que ser indígena é, acima de tudo, exercer o direito de existir e expressar seu modo de ser.

Quando o ancião Raoni, com seu corpo marcado pelo vermelho do urucum e a pintura do século em seus cabelos esbranquiçados, o rosto sulcado das lutas, o largo botoque nos lábios, é convocado a participar da solenidade da posse de um presidente lado a lado com este, é como se, pela primeira vez, o país reconhecesse a sua ancestralidade mais profunda. Mesmo que inconsciente e simbólico, o gesto vai tocar na revisão das narrativas escravocratas e políticas de dizimação que nasceram no século XVI.

Para toda uma diversidade de culturas ancestrais, quando se vê a imagem do cacique, já ancião, subindo a rampa presidencial — independente de ideologias ou tormentos políticos passados —, isso representa um marco histórico para a cidadania indígena no Brasil. Essa imagem, associada ao recente estabelecimento de um Ministério dos Povos Indígenas, aponta para uma nova etapa no reconhecimento e na valorização de direitos, identidades e outras inclusões. Representa um passo crucial para uma possível reparação histórica de séculos de marginalização, invisibilização e desrespeito.

Ao conceder esse espaço, o Brasil pode começar a cumprir um papel que muitos povos indígenas esperaram por gerações: uma cidadania plena, em que sua cultura e história sejam vistas não apenas como um legado, mas como uma parte fundamental do futuro do país. Juruna e Raoni abriram uma trilha difícil na floresta de aço e concreto.

Ao conhecer essas histórias, você se torna parte de um caminho de re-existência. De uma resistência que não se contenta com estereótipos e exige respeito e reconhecimento pleno. Estar disposto a caminhar nessa trilha com eles, ampliando o espaço para vozes e histórias antes ignoradas, é o desafio da juventude atual, neste paradigma tecnológico digital do século XXI.

O que é mais terrível e dramático é que o mundo vive um momento tão desassociado de si e da natureza, após ter esgotado sistematicamente recursos naturais que lhe garantem a sobrevivência, que as visões de mundo que podem verdadeiramente ajudar na reconciliação com uma vida mais digna e saudável estão intactas como bens preciosos por entre as identidades desses povos.

Compartilhar
  • Twitter
  • Facebook
  • WhatsApp

Conteúdo relacionado


Sonhos não envelhecem

#49 Sonho Cultura

por Luciana Branco Conteúdo exclusivo para assinantes

Meus tios se beijam no rosto: famílias negras no Brasil

#50 Família Sociedade

por Pâmela Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

O Recado de Orthon

#31 O Estrangeiro Crônica

por Vanessa Agricola

Em defesa das calçadas

#6 Verde Cultura

por Eduardo Andrade de Carvalho Conteúdo exclusivo para assinantes

Espaço do brincar

#25 Espaço Cultura

por Roberta Rodrigues Alves Conteúdo exclusivo para assinantes

Itcoisa: Casa Conrado

#42 Água Arquitetura

por Raphael Nasralla

Conversa com Fernando Schüler

#16 Renascimento Cultura

Editora Convidada: Helena Cunha di Ciero Mourão

#28 O Feminino Artigo

por Helena Cunha Di Ciero

Cada um por si e Deus contra todos: Werner Herzog colecionador de imagens

Cinema

por Revista Amarello Conteúdo exclusivo para assinantes

Funkeiros cults

#45 Imaginação Radical Arte

por Dayrel Teixeira

A Noite das Estrelas está, esteve e sempre estará aqui

#45 Imaginação Radical Cultura

por Wallace Lino

diante de homem com h maiúsculo, criação

#51 O Homem: Amarello 15 anos Cultura

por Ana O. Rovati Conteúdo exclusivo para assinantes

Uma série de sonhos

#22 Duplo Cultura

por Thiago Blumenthal Conteúdo exclusivo para assinantes

  • Loja
  • Assine
  • Encontre

O Amarello é um coletivo que acredita no poder e na capacidade de transformação individual do ser humano. Um coletivo criativo, uma ferramenta que provoca reflexão através das artes, da beleza, do design, da filosofia e da arquitetura.

  • Facebook
  • Vimeo
  • Instagram
  • Cultura
    • Educação
    • Filosofia
    • Literatura
      • Crônicas
    • Sociedade
  • Design
    • Arquitetura
    • Estilo
    • Interiores
    • Mobiliário/objetos
  • Revista
  • Amarello Visita

Usamos cookies para oferecer a você a melhor experiência em nosso site.

Você pode saber mais sobre quais cookies estamos usando ou desativá-los em .

Powered by  GDPR Cookie Compliance
Visão geral da privacidade

Este site utiliza cookies para que possamos lhe proporcionar a melhor experiência de usuário possível. As informações dos cookies são armazenadas em seu navegador e executam funções como reconhecê-lo quando você retorna ao nosso site e ajudar nossa equipe a entender quais seções do site você considera mais interessantes e úteis.

Cookies estritamente necessários

O cookie estritamente necessário deve estar sempre ativado para que possamos salvar suas preferências de configuração de cookies.

Se desativar este cookie, não poderemos guardar as suas preferências. Isto significa que sempre que visitar este website terá de ativar ou desativar novamente os cookies.