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#54EncantoCultura

Floresta de imagens: a miração Huni Kuin como uma das várias poéticas indígenas insurgentes

por Rafael Fares


Yube Inu Yube Shanu [Mito do surgimento da bebida sagrada Nixe Pae], 2020.
Ibã Huni Kuin, Bane Huni Kuin, Kássia Borges Karajá, Ayani Huni kuin, Nawa Ibã Neto Huni Kuin.
Movimento dos artistas Huni Kuin (Mahku), 2013.
Foto Eduardo Ortega. Acervo MASP.

Temos acompanhado, nas últimas décadas, o surgimento e crescimento da literatura indígena em nosso país. Claro que ela já existia nas narrativas, nos cantos e nos rituais dos mais diferentes povos, mas, com o direito garantido aos indígenas de viverem plenamente suas línguas e costumes a partir da Constituição de 1988, ela pôde ser escrita nas línguas indígenas e em português, adentrando, assim, as escolas diferenciadas, os livros, os filmes e a internet. São centenas de livros publicados, nos últimos anos, que nos apresentam uma diversidade imensa de línguas, narrativas e cosmovisões.  

Toda essa produção amplia e enriquece o que chamamos de literatura brasileira, ou podemos pensar que deforma, ou invés de formar, tal literatura. Deforma no sentido de que transforma a imagem do que consideramos Brasil. Além das diversas línguas que passaram a circular, para além do português, essa produção gera fissuras no imaginário do país ao incluírem outras visões de mundo.  

Várias são as poéticas, ou, como denominado em um livro Yanomami de 1974, as mitopoéticas indígenas viventes no país. Mitopoéticas pois os mitos são atualizados constantemente na vida cotidiana. Quantas não são as histórias de criação do mundo, do roubo do fogo, dos porquês da vida breve, do surgimento de costumes, das relações visionárias com os animais, os rios e as plantas? Quantas imagens e saberes das florestas brasileiras não poderemos conhecer com as centenas de mitopoéticas indígenas existentes no território brasileiro? 

Mas essa imensa massa narrativa ainda precisa chegar para a população brasileira. Em 2008, foi promulgada a Lei nº 11.645, que obriga o ensino das culturas indígenas nas escolas de todo o país, assim como as africanas e afro-brasileiras, porém, ainda há dificuldade para que essa lei seja cumprida. Primeiro, porque existe pouco acesso a esses livros, o que tem melhorado com políticas de difusão do livro, como o kit afroindígena distribuído pela prefeitura de Belo Horizonte e de outras capitais. Segundo, porque falta formação para os professores trabalharem com tais livros nas escolas. Participando como mediador no Programa Erês — Curso de Formação Continuada em Infâncias, Educação Infantil e Relações Étnico-Raciais da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG), que atualmente conta com aproximadamente 4.000 professores das mais variadas escolas públicas e privadas de todo o país, podemos perceber a demanda por mais conhecimento sobre os povos indígenas brasileiros para enriquecer o trabalho com os livros indígenas. Um sintoma dessa questão é que poucas são as universidades brasileiras que oferecem curso de literatura indígena em seus currículos.  

Diante desse quadro, pretendo discorrer aqui sobre uma mitopoética muito rica: a dos Huni Kuin. Poderíamos tomar aqui outros povos para fazermos uma leitura mais detida, mas a ideia é apresentar uma das centenas de possibilidades que as literaturas indígenas trazem como contribuição, ou deformação, para a(s) literatura(s) brasileira(s).  

Os Huni Kuin são um povo que habita o Brasil, na região do Acre, e também o Peru, do outro lado da divisa. De acordo com o site do Isa, o Instituto Socioambiental, são aproximadamente 12 mil Huni Kuin no Brasil e 25 mil no Peru. Eles são falantes da língua hatxã kuin e vivem em diversas aldeias localizadas próximas aos rios Tarauacá, Jordão, Breu, Muru, Envira, Humaitá e Purus.  

Ao menos desde 1995, com a publicação do livro Shenipapu Miyui, os Huni Kuin têm trabalhado na produção de sua literatura escrita e bilíngue. O livro é fruto do projeto Uma experiência de autoria, realizado pela Comissão Pró-Índio do Acre (CPI), que se tornou uma ação emblemática para a realização de livros indígenas. Podemos citar aqui também, por exemplo, o trabalho do grupo Literaterras, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), que, inspirado pela iniciativa da CPI, editou e publicou, com o apoio do governo brasileiro, mais de uma centena de livros.  

Anos depois, em 2005, Ibã Huni Kuin, um dos pesquisadores Huni Kuin formado pela CPI do Acre, publicou sua pesquisa com 34 cantos. Ele aprendeu, gravou e transcreveu o ritual do Nixi Pae, o chá do Huni (cipó), também conhecido por ayahuasca. Nessa publicação, Ibã nos conta a história do Nixi Pae. Resumidamente, a narrativa diz de um Huni Kuin (Yube Inu) que se encontrou com os seres encantados da anta e, através desta, com a mulher-jiboia (Yube Shanu) e vai viver no fundo do rio com ela, entendendo que todos ali são humanos como ele. Porém, ao tomar o chá do Huni com sua família cobra, ele descobre que não pertence àquele lugar e inicia uma jornada de volta para casa. Ao chegar em casa, ele então ensina aos seus a feitura do chá, e estes, ao tomarem a bebida, se tornam encantados com a jiboia, que tornará a surgir em suas mirações. Ibã explica que essa história explica como os Huni Kuin aprenderam os cantos e outros conhecimentos, como, por exemplo, as pinturas corporais e os desenhos que são utilizados na tecelagem.  

Mito de origem da ayahuasca, 2018. Foto de Rochelle Costi.

Em 2025, esses cantos ganham uma tradução para o português e o espanhol com o trabalho conjunto de Ibã, da professora Maria Inês de Almeida e de Marcelo Piedrafita Iglesias no livro Nixi Pae: espírito da floresta, uma continuidade da primeira edição do livro. Essa tradução é uma oportunidade única para adentrarmos um pouco mais na mitopoética Huni Kuin e compreendermos as imagens potentes que são cantadas por esse povo nos rituais do Nixi Pae.  

O que esses cantos nos apresentam são imagens poéticas da miração, visões encantadas que estabelecem a relação entre o céu e a terra, entre os animais, em especial a jiboia, os humanos e o cipó. Essas imagens constroem um grande ritual que se assemelha à viagem proporcionada pela ingestão do cipó. Assim, numa sessão de Nixi Pae, há um primeiro momento, chamado de Pae Txanima, quando os cantos iniciam um chamamento para a força da floresta que virá. Quando a força chega, os cantos se tornam mais densos e acelerados. É o momento do Dau Tibuya, o “alinhamento” da miração. Nesses cantos, são evocadas imagens que orientam a miração. Por fim, os cantos do Kayatibu desaceleram a força, fechando a sessão e pedindo a cura. 

Vejamos um exemplo, o canto Hawe dautibuya, traduzido por miração:  

Assim a miração 
Jiboia colorida 
Amarelada pena de japó 
Céu estriado 
Vem zoando pelo topo da cabeça 
De longe céu ensinamento 
Filho mais novo 
Broto de bambu 
Chegando o som 
Rabo de tatu-canastra 
Na boca soprando 
Som forte 
Bico do nambu 
Riscando o céu 
Estridente 

São imagens impressionantes de uma jiboia se transformando no pássaro japó, que vem descendo do céu estriado e, zoando pelo topo da cabeça, traz um ensinamento. Imagens sinestésicas que seguem uma montagem musical digna de um poeta como Rimbaud, em que o outro, como na formulação  “eu é um outro” (je est en autre) do poeta, seria a floresta. São associações imagéticas impressas nos cantos que apresentam uma expansão espacial e temporal que permitem aos seres romperem seus limites cotidianos, nos apresentando, assim, profusões visionárias, percepções sensoriais da floresta, de paisagens amazônicas, ricas em detalhes. Uma oportunidade para o conhecimento de novos olhares para a floresta. São mitopoemas extremamente elaborados e constituintes de uma poesia que não deixa a desejar a nenhum grande poeta da tradição literária do Ocidente e que, infelizmente, ainda é pouco conhecida no país.  

Para dar conta da profusão semiótica de um ritual no qual reside um canto como este, Ibã criou, em 2013, o grupo Mahku, o Movimento dos Artistas Huni Kuin, propondo que os cantos fossem transformados em pinturas para o enriquecimento do entendimento das imagens ali cantadas. Numa experiência sinestésica entre som, imagem e palavra, o grupo se tornou um dos principais movimentos artísticos contemporâneos, expondo suas obras em galerias no mundo todo e em importantes museus brasileiros, como o MASP, ou ainda na Bienal de Veneza. Um exemplo é  a obra a seguir, que conta a história de Yube Inu e sua jornada para o fundo do rio para viver com a mulher-cobra. 

Enfim, o que o coletivo Mahku e as traduções desses cantos nos apresentam é uma pequena amostra da força da arte e dos conhecimentos indígenas que precisam ser mais estudados e difundidos pelo país. São mais de 300 povos, e suas literaturas ficaram por muito tempo inviabilizadas para o grande público leitor brasileiro. Estamos acessando o potencial delas aos poucos desde a garantia dos direitos aos povos indígenas de viverem plenamente suas culturas, prevista pela Constituição de 1988, mas o que esse movimento pode apresentar e produzir na literatura brasileira e nas artes de maneira geral é de uma grandeza que ainda não podemos medir. É conhecer para ver!  

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