Apesar da diversidade de corpos, o Brasil é retrato de uma estrutura que privilegiou – e privilegia – a branquitude. Segundo a última tabela do IBGE, que apresenta a distribuição percentual por cor ou raça (com base em autodeclaração), temos os seguintes números: 46,5% pardas, 43,1% brancas, 9,3% pretas e 1,1% amarela ou indígena. 56,9% da população brasileira é não-branca, ou seja, a maioria.
É interessante analisar a estrutura da tabela. A começar pelo termo raça, que apesar das complexidades e discussões, ainda é a nomenclatura institucionalizada. A coluna branca vem primeiro, seguida pelas colunas preta e parda, centralizadas. Por último, a coluna atribuída aos povos originários, que precisam dividir espaço com a cor amarela. Há, em muito pouco, a revelação de sintomas bem profundos.
A tabela é dividida por regiões, a menor amostra branca fica no Norte, 19,3%. No extremo oposto, a região sul é a região mais branca de todas, com 73,9% de pessoas e apenas 0,7% amarelas ou indígenas. Mas isso não representa a história sulista brasileira. De acordo com Aurélio Porto, historiador que foi diretor do Arquivo Público do Rio Grande do Sul, em 1787 havia 52,6% de brancos, 28,5% de negros e 18,9% de indígenas. Os livros de registro de batismo de Jesus-Maria-José mostram que, em 1738, houve o batismo de dois negros e dois indígenas para cada quatro brancos.
Apesar da produção sulista não ser tipicamente colonial, baseada em açúcar e café, havia uma grande presença de pessoas escravizadas nos trigais, na pecuária, e, principalmente, na produção de charque. No fim do século XIX, iniciou-se uma crise de mão-de-obra: a expansão da lavoura cafeeira provocou grande evasão dos escravizados do sul para o “norte”. Entre 1863 e 1887, o Rio Grande do Sul passou de 77.419 para um total de 8.500 escravizados (sendo que, em Porto Alegre, havia apenas 58). Para além das evasões, era um período de transição, em que as forças abolicionistas finalmente ganhavam tração.
Apesar da Lei Áurea ter sido assinada no dia 13 de maio de 1888, o Rio Grande do Sul aboliu a escravidão no mesmo ano em que o Ceará, estado pioneiro: 1884. A abolição foi resultado da força de muitos grupos, como o Centro Abolicionista e o Partenon Literário. Há, também, a aparição de Clubes Negros, que fortificaram a articulação. O primeiro foi fundado em 31 de dezembro de 1872, e se chama Floresta Aurora. Este ano completará 150 anos de existência, e segue atuante. Foi não apenas o primeiro Clube do Rio Grande do Sul, mas o primeiro Clube Negro do Brasil.
Os Clubes foram surgindo para que os negros pudessem obter um espaço social, algo que lhes era negado. O começo do clube veio com a necessidade de arrecadar dinheiro para ritualizar as mortes, pois, até então, negras e negros eram enterrados em valas rasas. Mesmo quando as pessoas já estavam com alforria, tinham o fim no mesmo espaço que os indigentes, doentes e criminosos Também se uniram para buscar recursos que auxiliavam na compra das cartas de alforria.
Segundo o próprio website do Floresta Aurora, hoje entitulado como Sociedade Beneficente e Cultural Floresta Aurora, “a história vem sendo transmitida de forma oral e o principal argumento de que se tem notícia, é o de que a união desses negros era para, além de se fortalecerem enquanto grupo, repudiando o regime escravocrata, mostrar a indignidade quanto às cerimônias de despedidas de seus mortos.”
Os Clubes foram os primeiros espaços que oficializaram o direito dos negros à celebração coletiva, onde podiam viver os benefícios da música e da dança. Os bailes brancos não aceitavam a presença negra, assim como escolas – que negavam o ingresso de negros livres. A discriminação fez com que buscassem criar os próprios espaços sociais. Contudo, os bailes sofriam invasões, rondas e ataques. Civis, soldados e paisanos brancos censuravam e desrespeitavam as vivências do Floresta Aurora. Isso se estendia para qualquer evento privado, caseiro – onde a ronda ia até lá para impedir festejos.
Em 1892, um jornal dos negros começou a circular em Porto Alegre, chamado O Exemplo. Nele, há algumas notas de repúdio, como essa redigida por Esperidião Calisto: “Um consôlo nos resta todavia… Nunca um grupo de homens de côr invadiu um salão, fomentou desordens e insultou famílias que pacificamente entregavam-se a modestos folguedos. (…) Censurando esse proceder indébito, sentimos apenas a desconsideração da parte das autoridades que não vêem nosso direito de equidade, negando-nos aquillo que, como cidadãos temos direito – a igualdade perante a lei e o respeito inquebrantável a nossos direitos civis”.
As críticas não se detinham às atitudes brancas. O Exemplo manifestava-se contra atitudes problemáticas em geral, compondo, assim, certas orientações morais. O mesmo Calisto recriminou um tumulto a mão armada, incitado por um negro no Club Recreativo Operário: “Lamentamos, repetimos, a pratica de tão feia acção, que só serve para nos deprimir aos olhos daquelles que se julgam superiores a nós e que vão por ahi affirmando ‘não haver baile de negro sem rollo’. E, na verdade, como não hão de dar curso a tal expressão desairosa, quando os nossos são os primeiros a abraçar a ingrata tarefa de nos desmoralizar, de aniquilar-nos?”
A discriminação se operava em diversas camadas, impedindo qualquer mobilidade social. O primeiro concurso público que teve um cidadão de cor parda aprovado, foi anulado por Gaspar da Silveira Martins, então presidente da Província do Rio Grande do Sul. A noção de liberdade, que os corpos alforriados buscavam, eram pautadas pela ideologia do embranquecimento. Entretanto, mesmo perseguindo os padrões da onipresença branca, os negros tinham acessos negados. A cultura africana foi tão sistematicamente reprimida, que a reconstrução da liberdade negra se asfixiava na impossibilidade de aceder à liberdade branca. Suprimiam a escravidão conservando o escravizado.
A artista Grada Kilomba observa que o processo do racismo segue os cinco estágios do trauma, no qual a primeira fase é a negação, seguida da culpa, da vergonha, do reconhecimento e da reparação. Infelizmente, grande parte da população ainda opera dentro do primeiro estágio, negando o racismo para manter o véu democrático erguido.
Os Clubes Negros são muito importantes nesse sentido, pois conseguiram tangibilizar o trauma. Os encontros sociais transportam a violência individual para uma dimensão coletiva, revelando os desafios como questões estruturais. Além do compartilhamento de memórias e saberes orais, a música e a religião auxiliaram na reorganização de uma subjetividade negra, que buscava rastros das raízes além-mar. Além dos Clubes, Casas de Nação foram sendo criadas, para que houvesse um espaço que permitisse o culto aos Orixás. As manifestações culturais foram muito perseguidas e alvejadas, mas com muita resistência – e persistência – o Batuque começou a ser finalmente solidificado no Rio Grande do Sul, no início do século XX.
Tais espaços de convívio e de resgate cultural seguem sendo atormentados até o dia de hoje. É por isso que o aniversário dos 150 anos do primeiro Clube Negro do Brasil merece atenção. Não é um Clube como os outros clubes. É um espaço vivo, responsável por reconstruir e manter o respeito à uma ancestralidade duramente traumatizada, é um ambiente que atua na luta antirracista de forma concreta e gregária.
O Clube já teve diferentes sedes e foi sendo expelido do centro de Porto Alegre por causa da especulação imobiliária. Atualmente, está situado no bairro Belém Velho, na Estrada Afonso Lourenço Mariante, 437. A gestão do Floresta Aurora, ainda hoje, busca recursos que possam oferecer dignidade a quem precisa. Durante a pandemia, conseguiram auxiliar inúmeras famílias do bairro.
Apesar de terem um século e meio de história, ainda não possuem recursos do Estado para se constituírem como um Patrimônio Cultural. Seguem buscando auxílio do poder público para que possam ter mais atuação e alcance.