Sem título, gravura de Anna Maria Maiolino. A artista ítalo-brasileira é uma das homenageadas da 60a Bienal de Veneza (Divulgação).

“Temos que reconhecer que, apesar de estarmos na era das Grandes Recessões, da austeridade e da estagnação, o que define a vida no Ocidente são os problemas de excesso, não da falta. Nem sempre a sensação é essa — afinal, quem não quer, ou mesmo precisa, de mais dinheiro? —, mas o fato é que, comparados a nossos antepassados, vivemos em meio à superabundância.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Sinais dos tempos: antes, usávamos a palavra “conteúdo” para nos referirmos a uma abordagem de tema mais aprofundada ou mesmo como algo positivo que alguém possuía; hoje em dia, como um aceno cínico ao estado geral em que estamos, usamos a palavra para designar tudo aquilo, não importa o quê, que as redes sociais produzem. O “conteúdo”, feito bexiga de festa, vem se esvaziando, não sem fazer questão de soltar um barulho ao mesmo tempo estridente e moribundo.

Michael Bhaskar, em 2014. Foto: Bernd Hartung/ Frankfurter Buchmesse

Incrustados no excesso de informações dos dias atuais, envoltos sem direito de escolha nessa verdadeira contenda pela nossa atenção que faz com que cada visita ao celular se assemelhe a um desembarque violento em terras ocupadas, é essencial reconhecer a importância de se fazer escolhas conscientes que dizem respeito a conteúdo. Sob a névoa da guerra, o que consumir e o que não consumir? 

Existem duas razões principais que fundamentam essa necessidade: o gerenciamento do tempo (cada vez mais valioso) e a avaliação da relevância, qualidade e validade das informações recebidas. 

Considerando a limitação do tempo que temos disponível, é fundamental direcionar nossa atenção para aquilo que nos interessa e consideramos pertinentes. Se alguém se deixa levar, lá se vão horas e horas por dia num scroll infinito de informações extremamente descartáveis e pouca, para não dizer nenhuma, retenção de qualquer elucidação que em outro contexto seria válida. Nos tempos modernos — não exatamente iguais aos de Charles Chaplin, mas talvez mais análogos do que imaginamos num primeiro momento —, a inércia das redes sociais pode ser cruel. Com uma quantidade cada vez maior de conteúdos disponíveis, é inviável absorver tudo indiscriminadamente. Para que se cultive a saúde mental e se priorize alguma praticidade, desviar dos muitos dos estilhaços — numa lista rápida: postagens que retratam uma vida irreal e tóxica, influencers de qualquer tipo, pautas pouco desenvolvidas que se resumem às manchetes, notícias inexpressivas sobre o pé dessa ou daquela celebridade —, evitar que o jogo vire e que tudo nos consuma, é um mínimo.

Aos poucos estamos aprendendo, mas, sim, é verdade: nem tudo que chega até nós é factual ou representa uma opinião válida. Curioso pensar como muitas vezes obter uma informação em algum perfil do Instagram ou em qualquer site se assemelha ao que, antes, era ler algo no jornal, apesar deste estar cada vez mais desvalorizado. A lógica, ora, é praticamente a mesma: se está ali, se chegou até mim, então deve ser verdade. Porém, a lógica pregressa era um tanto mais sensata, já que, naqueles tempos — no vendaval do mundo digital, dizer “naqueles tempos” é pensar em praticamente tudo que está a mais de dois ou três anos de distância —, havia uma responsabilidade maior com o que era ou não noticiado, muito embora o poder manipulativo proveniente disso seja tão assustador quanto o das fake news atuais que nem se preocupam em parecer reais. A disseminação de desinformação e opiniões enviesadas é uma das realidade mais aterradores dos nossos tempos.

Desde o surgimento da internet e das mídias sociais, somos constantemente bombardeados por uma quantidade inimaginável de conteúdo. Notícias, artigos, vídeos, músicas, livros e tantos outros produtos, que, pelo volume exacerbado, chegam a ser nocivos, estão disponíveis em uma escala sem precedentes. Eleições já foram decididas tomando proveito disso e quem negar que elas têm papel crucial na formação de opiniões estará sendo, no mínimo, ingênuo. Portanto, é imprescindível desenvolver habilidades de avaliação crítica e discernimento para filtrar o conteúdo que encontramos. Isso envolve questionar a fonte das informações, verificar sua credibilidade, analisar diferentes perspectivas e considerar o contexto em que a informação está inserida. Ao fazer escolhas conscientes sobre o que ler, estamos adotando uma postura crítica e responsável em relação ao conhecimento que absorvemos.

Calma lá. Essa seleção criteriosa não significa fechar-se em uma bolha informativa ou limitar-se a apenas um ponto de vista. Pelo contrário, implica em buscar diversidade de fontes e opiniões, mas de forma consciente e fundamentada. Mais do que nunca, é de suma importância expor-se a diferentes perspectivas e ter acesso a informações confiáveis e embasadas, a fim de ampliar nossa compreensão e formar opiniões com base em ponderação, mas com um pequeno adendo: direcionar para o que nos é mais relevante, tanto pelas nossas predileções quanto pela necessidade de avaliar a qualidade e a validade das informações que nos chegam. Ao adotarmos uma abordagem consciente e crítica em relação à seleção de conteúdos, podemos otimizar nosso tempo, obter conhecimentos relevantes e desenvolver uma visão mais informada e equilibrada do mundo ao nosso redor.

Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso (2020), escrito por Michael Bhaskar, é um livro que explora a importância da curadoria, como uma forma de seleção proativa, em um mundo invadido por agentes com propósitos diversos, por vezes escusos. Como podemos navegar nesse oceano de excessos e encontrar valor e significado por meio da seleção? Como dar um sentido à loucura que é o bombardeamento de informações? Como é possível a abundância ser esmagadora e causar, paradoxalmente, uma sensação de esvaziamento?

“No contexto de excesso, curadoria não é só um modismo. Ela dá sentido ao mundo.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Bhaskar é um profissional reconhecido na área da curadoria e do mundo editorial. Sua experiência prática o levou a explorar a importância da seleção como um meio de filtrar e dar significado em meio ao fluxo constante de informações disponíveis. À medida que somos inundados por uma quantidade avassaladora de informações, produtos e opções, a seleção se torna um poderoso mecanismo de autopreservação, filtragem e atribuição de valor.

Nos últimos duzentos e poucos anos, projetamos sociedade e negócios para que não parem de crescer, para que continuem somando. Mas, atualmente, os acréscimos provocam mais mal do que bem. Se muitos problemas são decorrentes de criar mais, não teríamos motivos para questionar esse pressuposto? Vivemos em um mundo fragmentado: nossas vidas se espargem por essas e aquelas redes sociais, com porções que se rompem cada vez mais e causam um danoso desmembramento de vivências, de personalidades, de visões de mundo. No fim, neste mundo estilhaçado, somos nós retalhos, frações, meros vestígios. Versões que gostaríamos de ser, mas não somos.

Ao criar um certo ideal de vida plena e satisfatória que muitas vezes parece inalcançável, uma ideia que se vê salpicada aqui e ali, a cultura e a sociedade amplificam um sentimento generalizado de perda. Perda daquilo que nunca se teve; perda daquilo que nunca se foi — fragmentos que nunca serão o todo. 

Adam Phillips, um renomado psicanalista britânico, escreveu O que você é e o que você quer ser (2012), um livro que explora a natureza humana e as escolhas que fazemos ao longo da vida. Partindo da ideia de que todos nós temos uma vida não vivida, uma vida alternativa que imaginamos ter se tivéssemos feito escolhas diferentes, ele argumenta que essa vida não vivida é uma fonte de angústia e sofrimento para muitas pessoas, pois dá a sensação de que estamos perdendo algo essencial e valioso. Mas questiona se devemos realmente nos lamentar por aquilo que não vivemos e propõe uma reflexão sobre a importância de abraçar as escolhas que fizemos e encontrar significado e satisfação na vida que temos.

“Como sabemos agora mais do que nunca sobre os tipos de vida que é possível viver (…), somos sempre assombrados pelo mito de nosso potencial, do que poderíamos ter em nós mesmos para ser ou fazer. Então, quando não estamos pensando, como o personagem do poema de Randall Jarrell, que ‘As maneiras pelas quais sentimos falta de nossas vidas é a vida’, estamos sofrendo, lamentando ou nos ressentindo por não sermos nós mesmos como imaginamos que poderíamos ser. Compartilhamos nossas vidas com as pessoas que deixamos de ser.”
Adam Phillips em O que você é e o que você quer ser

Adam Phillips, em 2017. Foto: Richard Saker/The Observer

Pensando nas escolhas que temos que fazer no que diz respeito ao que lemos e o que não lemos, aos vídeos que assistimos e aos que não assistimos, temos que saber que nem todas as vidas podem ser vividas. Inevitavelmente, algum assunto do momento passará batido — o que é bom. A curadoria motivada pela sobrevivência vai além da simples escolha, envolvendo também a capacidade de dar contexto, criar conexões e despertar emoções por meio das escolhas feitas. Talvez pareça algo simples, mas, diante do muito que vemos nas redes sociais e na mania que temos de optar pela manifestação célere ao invés de um momento de reflexão, não é algo que vem naturalmente. O natural é opinar sobre tudo, ao mesmo tempo, sempre que algum assunto amplamente discutido surgir — e, sim, ele vai surgir. Mas e se não fizéssemos isso?

É inevitável, e preocupante, o tanto que é possível nos enxergar na seguinte provocação: “Temos entretenimento constante, mas somos cada vez mais distraídos.”

Pensar no papel da seleção em um mundo abarrotado de informações é também refletir sobre como uma habilidade e um processo que pode nos auxiliar, e muito, na sinuosa navegação do mundo contemporâneo do excesso. 

“A curadoria é mal interpretada porque raramente é vista em todo o seu contexto. Curadoria tornou-se um modismo porque a ser resposta para uma série de problemas que antes não existiam: os problemas decorrentes do excesso. Há duzentos anos, vivemos num mundo que promove a criatividade, que busca o crescimento acima de tudo, que aumenta a produtividade sem dar trégua e que quer sempre mais: mais gente, mais recursos, mais dados, mais tudo. A cada dia que passa, porém, fica mais claro que estamos sobrecarregados.”
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais do que selecionar: dar contexto e significado aos conteúdos escolhidos. Bons curadores, no contexto artístico em que estamos acostumados, são capazes de contar histórias, criar conexões e despertar emoções por meio de suas seleções, certo? Não seria ótimo poder aplicar isso à vida cotidiana?

“Por sorte, a natureza do problema sugere uma resposta: já estamos vendo uma revolução na forma como abordamos o valor. Se o valor, pecuniário ou de outro tipo, antes tinha a ver com a produção primária, agora, num mundo que deixou de ser dominado pela escassez, ele mudou. Hoje o valor está em resolver esses problemas e reduzir a complexidade. Curadoria tem a ver com construir empresas e economias em menos opções mais apropriadas, mais personalizadas. Essa é a diferença fundamental e a grande tendência subjacente que ainda estamos começando a entender.” 
Michael Bhaskar em Curadoria – O Poder da Seleção no Mundo do Excesso

Mais e mais também pode significar menos e menos. Esse, na verdade, é um paradoxo comum da vida. Se você tem muitas amizades, isso talvez signifique que você não tem amizades profundas; se você consumir 7 livros por semanas, isso talvez signifique que você não vai lembrar de nenhum deles daqui a uma semana. 

O excesso, afinal, também é o vazio cada vez maior de espaços livres. Talvez, com um pouco de seleção, o cenário abarrotado possa se inverter. 

Menos é mais, less is more, e nem sempre pingar é melhor do que secar.

#43MiragemCultura

Mirar retomada

por Jéssica Hipólito

Crista da região de Cross River, na Nigéria.

Há uns anos escrevi um texto sobre a primeira vez em que fui a um museu, ainda criança, com uns dez anos de idade. Agora lembro da última vez, poucas semanas atrás, em que estive em um. Vinte anos de diferença entre uma experiência e outra, e a sensação que tenho é que nesse período houve séculos, isso mesmo, séculos de mudanças e que, ainda assim, muitos outros precisam estar por vir.

Tenho o costume de pensar que museus me atraíram, numa primeira vez, pela falta. Seguem me atraindo mais pelas lacunas e entremeios. Tenho a suspeita de que isso provavelmente não vá mudar. Procurei e procuro por rachaduras nas paredes, tintas descascadas, quadros tortos e tacos soltos no chão. Procurei e procuro por quaisquer pistas que gritem que os chamados “Templo da Memória”, estes espaços dedicados à contemplação e fruição das artes, ciências e histórias, lugar-testemunho da história vivida do homem, escondiam, em seus vazios e silêncios, aquilo que mais queria ver.

Os primeiros museus brasileiros foram criados em meados do século XVIII, no contexto da vinda da Família Real Portuguesa, que, fugindo de Napoleão Bonaparte, traz consigo, para a então colônia, a biblioteca real, objetos raros, obras de arte, documentos e artefatos que darão origem à Biblioteca Nacional e ao Museu Real, posteriormente renomeado por Museu Nacional. Enquanto o Louvre, um dos primeiros museus modernos públicos data de 1793, o Museu Nacional tem sua fundação, ainda como Museu Real, em 1818. Assim, o primeiro museu brasileiro, não só é contemporâneo do museu mais conhecido do mundo, como teve em sua gênese a responsabilidade de ser o pilar da memória e da história de duas nações: uma consolidada como um dos maiores impérios marítimos da Europa; e a então colônia, elevada pelas circunstâncias, à sede monárquica de Portugal. 

Myrian Santos aponta, em Museus brasileiros e política cultural, que os primeiros museus brasileiros têm o caráter de serem instituições responsáveis pela preservação e disseminação da memória e identidade nacionais, mas que, ainda assim, muitos deles, deixam a desejar no que diz respeito ao compartilhamento da origem de seus acervos e coleções. Explicita ainda que, por anos, as críticas aos museus estavam pautadas na percepção desse espaço cultural como meio para disseminação de narrativas das elites e de histórias e memórias oficiais. 

O museu é elaborado como um espaço onde são materializados e reforçados, através de objetos, símbolos e narrativas, os ideais nacionais. Os acervos expostos são testemunhas materiais de uma história a ser contada sobre um passado nacional comum, em que se cria a ideia de uma unidade nacional na qual território, língua, simbologias e narrativas constroem a perspectiva identitária de uma nação. Quais objetos, narrativa e símbolos foram os selecionados como representativos dessa identidade nacional? Que elementos foram exaltados e quais foram suprimidos? Que ideia de nação e quais memórias foram selecionadas para construção narrativa do que era, ou mesmo deveria ser, o Brasil?

Todo processo de elaboração de museu é uma seleção, o mesmo ocorre com todo processo de elaboração da memória. Para além, vale deixar evidente que rememorar, lembrar, ou mesmo que a noção de memória esteja restrita a uma reelaboração ou revisita a um passado genuíno e que a memória seja compreendida apenas inserida numa perspectiva que se estabelece entre o lembrar e o esquecer. A memória é elaborada sob a lógica do lembrar e do esquecer no presente, em que o que lembramos e esquecemos está intrinsecamente relacionado às nossas vivências individuais e coletivas, aos meios sociais a que pertencemos e de que fazemos parte e, consequentemente, está intrinsecamente imbuída de parcialidades diversas. 

Por muito tempo, a noção de uma identidade nacional brasileira disseminada pelo espaço museal e no tecido social era baseada na perspectiva da formação de uma nação miscigenada e multicultural. Essa mesma ideia da miscigenação ainda é bastante presente nos discursos cotidianos, mas esconde toda a violência e a hierarquização orquestradas desde a colonização. Os diversos elementos indígenas e negros foram ou completamente apartados, ou incorporados à lógica nacional. Optou-se por abrasileirar aquilo que se convinha e a, propositadamente, esquecer o que não se convinha. Já as aproximações com as culturas europeias passam a ser exaltadas e difundidas. 

É preciso, então, que percebamos o espaço museal inserido num processo repleto de  construções discursivas selecionadas, que refletem determinadas realidades, evidentemente parciais, e que para servir também como espaço de reconhecimento, identificação e problematizações, precisa se colocar como passível de reflexões e contestações. 

A quem serve determinados esquecimentos? Quais construções narrativas foram e são elaboradas sobre história, memória, arte e cultura? É possível vermos hoje um movimento de retomada no espaço museal que possibilita sua reformulação, a insurgência de museus de cunho comunitário e socialmente engajados. A perspectiva decolonial, por exemplo, tem sido amplamente colocada como reflexão crítica-integrante em alguns espaços, muito devido a artistas contemporâneos indígenas e negros e na ocupação desse lugar de poder que são os museus, por equipes mais diversas e politicamente comprometidas com a transformação narrativa e estrutural desses espaços. Movimentos de repatriação de artefatos, obras de arte e objetos são cada vez mais frequentes, contestação de discursos cristalizados e monumentos históricos dedicados a colonizadores e demais opressores estão cada vez mais sendo colocados em cheque.

Achille Mbembe, em Políticas da Inimizade, dedica uma das suas reflexões à necessidade de pensarmos um Antimuseu, que rompa com os pressupostos eurocentrados, hegemônicos e racistas, que não comportam racialidades outras que não a branquidade; que, para existirem em completude nesse espaço e não como simulacro de si mesmas, memórias, histórias e narrativas historicamente marginalizadas, precisam de que o museu se torne o seu reverso.  Pensar antimuseu é utopia, aquilo que nos faz mover e movimentar. Antimuseu é miragem, é desejo. É preencher as lacunas, os vazios e trazer à tona os escondidos.

Autorretrato com Máscara Africana e Bandeirinhas (Volpi), de Rosana Paulino (1998)

Retornar ao passado para ressignificar o presente com futuros possíveis, assim nos diz o ideograma Sankofa, oriundo dos povos Akan, o qual sabiamente se tornou uma ética que versa a recuperação da ancestralidade e do protagonismos pelas quais Abdias Nascimento apresenta em suas obras. Artista, pensador, filósofo, político e uma série de outras pluralidades que transbordaram na busca incessante da libertação e da liberdade de si e do seu povo, através da visão africana que foi deflagrada pela colonização.  

A transmissão de valores e tradições da história cultural africana e diaspóricas são o fio condutor das produções de Abdias Nascimento, centradas nas raízes africanas, em especial, a cultura Ioruba, na qual os Orixás são as bases de referências pictóricas, reflexão direta e experiencial – estética de si como homem, no sentido mais humano da palavra, e como continuidade africana. O legado deixado por Abdias nos convoca a um devir coletivo de rompimento da brancura imposta nas produções artísticas contemporâneas que renegam a erudição, o caráter plástico e de comunicação que essas referências transbordam para além do lugar de uma única universalidade.  

A partir dos caminhos abertos por Abdias e Beatriz Nascimento, o conceito de quilombo torna-se uma prática para a manutenção existencial enquanto povo e como proposta para autoafirmação e sistema alternativo para correção de diferenças para além de um lugar utópico e distante.  Num contexto racial artístico embebido de tantas limitações e amarras coloniais, defender um revisionismo de diferenças e defender o direito de pertença aos vários níveis de saber, decisão e criação nos campos das artes, tornam-se fundamentais e urgentes.  

Nos últimos anos, vemos um determinado aumento de artistas, pretos e pretas, compondo exposições e espaços mercadológicos da arte. Muito desse movimento é oriundo de proposições construídas pelos movimentos raciais e sociais do século passado que abriram caminhos nas políticas públicas de inserção racial e cultural em várias ramificações da sociedade.   

Dentro dessa perspectiva e desse posicionamento político, o meu vir a ser existencial coloca-se páreo ao axioma profissional nas quais meu lugar hoje, de atuação, versa. Propor uma equidade artístico-visual dentro dos projetos curatoriais de que faço parte – a partir das duas últimas exposições do Museu de Arte do Rio: Crônicas Cariocas, em 2021, e Um defeito de cor, em 2022, onde componho a equipe curatorial que contou com percentual majoritariamente de pesquisadores e curadores pretos, liderados pelo curador – chefe Marcelo Campos – é essencial para que nossas histórias sejam contadas, pesquisadas e protagonizadas a partir de novas perspectivas. 

Em Um defeito de cor, exposição homônima ao livro da autora Ana Maria Gonçalves, que também foi uma das curadoras da mostra. É válido apresentar que foi um projeto que contou com mais de 95% de obras expostas de pessoas pretas, em especial mulheres negras, que historicamente são apagadas da história da arte brasileira. Tendo também um marco, atrasado por sinal, de obras comissionadas e produzidas por mulheres negras transgêneros dentro do espaço museal. 

Simbiose Africana n.3, de Abdias Nascimento (1973).

Voltando a Abdias Nascimento, que nos últimos quatro anos tem figurado com suas obras, tardiamente, instituições tradicionais de arte como Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC – Niterói), Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio),  Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP) e Instituto Inhotim (MG), em exposições individuais e com determinada visibilidade social e artística em exposições que contam, em sua maioria, com a curadoria ou a composição curatorial de profissionais pretos que fazem parte dessas instituições, como a diretora artística do MAM-Rio Keyna Eleison; Amanda Carneiro, curadora assistente do MASP; Deri Andrade, curador assistente no Instituto Inhotim.  

Vale salientar a construção histórica e de imensa relevância do acervo do 

Museu de Arte Negra, hoje sob tutela do Ipeafro, ambos criados por Abdias Nascimento e sua visão curatorial que se opõe ao conceito cunhado pelo ocidente. Trata de coletivizar e resgatar a memória visual e artística do legado afro-brasileiro, dentro das várias possibilidades de criação. A curadoria de Abdias não propõe uma separação, uma escolha, na ideia superficial do que poderia ser ou não ser arte. 

O Museu de Arte Negra teve sua primeira e única exposição no Museu da Imagem e do Som, curada por Abdias em 1968, data que marcou os 80 anos da abolição da escravatura e também seu exílio de treze anos dentro do contexto da ditadura militar. É interessante também observar que essa data marca o início da sua produção pictórica que se transformou em mais um pilar de conexão com sua ancestralidade e suas raízes afro-brasileiras.  

Aquilombar e trazer novas possibilidades e espaços a pessoas pretas são as premissas que mantêm a minha humanidade vívida, nítida e presente. 

Telas, performances, curadorias, pesquisas, ações, objetos, visualidades de corpos e corpas, nascidos em gerações diversas, comungam e bailam sob o arcabouço construído pelas mãos e voz desse Griot, chamado Abdias Nascimento, que, mesmo dentro das contradições e dualidades de si, demarcou África como berço civilizatório e como o lugar a ser centrado e revisitado. 

Afinal, como diz a filósofa Katiúscia Ribeiro, “O futuro é ancestral.”