Por que as pessoas se importam tanto com a vida dos outros? Não que elas estejam realmente interessadas em você, mas nunca deixam passar algo que lhes incomoda. Uma mulher de meia-idade dormindo de pijama no carro com a boca suja de iogurte. Isso é algo tão perturbador assim? Elas poderiam simplesmente seguir seus caminhos e cuidar das próprias vidas ao invés de fingir que se importam. E eu, sinceramente, não tenho escolha; preciso me justificar, inventar qualquer história, ou as coisas podem ficar bem complicadas.
Todos os dias crio relatos variados. Eu já disse pra um policial que bebi martínis demais depois de um vesperal com velhas amigas da faculdade, por isso acabei pegando no sono dentro do carro. Pra um homem que se dizia padre, expliquei que briguei com meu marido e que preferia morrer a ter que voltar pra casa. Já contei pra uma advogada bem-disposta a me ajudar que, na verdade, eu gostava de me esconder no banco do carro pra ter um pouco de privacidade, já que a minha filha tinha muitas crianças em casa e minha novela era sagrada. No geral, todos acreditavam em qualquer coisa que eu dizia.
E o iogurte? A gosma branca escorrendo em meu rosto era um ponto bem difícil de encaixar nas minhas explicações estapafúrdias, mas ninguém estava realmente interessado em boas histórias. No geral, todos apontavam para a própria boca, usando o indicador no canto dos lábios bem arreganhados em o — um sinal para que eu pudesse perceber a sujeira no meu rosto. Eu fingia espanto e me limpava rapidamente usando o antebraço. Era suficiente. Todos, absolutamente todos, partiam depressa depois disso. Eu colocava as mãos no volante e fingia que ia ligar o carro.
Se não estavam realmente interessados, por que eles simplesmente não passavam pelo meu velho Celta com seus narizes empinados e seus tênis esportivos e seguiam, saudáveis e indiferentes, com suas vidas? Seria mais fácil pra mim. Mas era sempre isso, alguém sempre queria ajudar a pobre senhora sozinha e em apuros. Depois que partiam e eu podia ter certeza de que não havia mais ninguém por perto, começava o meu dia. Eu saía do carro, me espreguiçava bem e, antes de fazer qualquer coisa, descia para um mergulho no mar.
Pular sete ondas era sagrado, além de me benzer com um ramo — o dia de ramos era sagrado pra mamãe. Sem isso eu não era capaz de prosseguir. Morar em um pequeno carro estacionado em uma avenida à beira-mar pode parecer algo idílico pra alguns, mas, no geral, é bem perigoso. Por isso fiz amizade com Fumaça, um mendigo já acostumado a dormir no calçadão da praia e que sempre me ajudava a tirar o mato que crescia em torno dos pneus em troca de um pacote de salgadinhos. Essa pequena vida tão delicada que se insinuava em um objeto feito de petróleo e aço poderia colocar tudo a perder. Ele também ficava de olho no Celta enquanto eu ia fazer o meu trabalho na loja de conveniências que ficava a apenas trinta passos de onde meu carro estava estacionado.
Fumaça era conhecido e temido. O corpo coberto de fuligem dos carros que passavam furiosos na avenida davam a ele uma aparência fantasmagórica. Ninguém se atrevia a mexer com ele, nem os policiais. Louco! Quando ele tentava se aproximar, davam algum dinheiro e deixavam pra lá. Como eu precisava passar o dia inteiro dentro da conveniência, a minha amizade com ele foi fundamental pro meu novo estilo de vida. Pra ele também: nos últimos anos, ninguém mais andava com moedas no bolso, tudo virou pontos acumulados em um cartão de plástico e transferências online.
No começo, quando eu ainda atuava sozinha, meu veículo foi diversas vezes saqueado, e viaturas locais tentaram rebocar o que eles chamavam de lataria esquecida. Mas depois da minha parceria com o fantasma as coisas começaram a dar certo: o meu Celta ocupava eternamente a mesma vaga sem maiores problemas, e Fumaça sempre dava um jeito para que não parecêssemos assombrações ocupando um automóvel em ruínas.
O dia ia ser longo. Eu precisava ganhar dinheiro suficiente pra comer durante duas semanas. Fumaça ia fazer um pequeno procedimento cirúrgico, e eu prometi ajudá-lo. Ele iria dormir comigo no carro enquanto se recuperava, só assim eu poderia cuidar dele. Eu já produzia conteúdo pras redes sociais há mais de um ano, e tinha pegado a manha de como conseguir mais grana, caso fosse necessário parar por uns dias. Estava disposta a pular o almoço para bater a minha meta de pontos.
Fazer dancinhas na internet. Foi o próprio Fumaça que me deu a ideia quando viu o celular na minha mão. Dava algum dinheiro. No começo achei que seria humilhante, mas me acostumei rápido e até peguei gosto pela coisa. Meu conteúdo era basicamente sobre nutrição para idosos, e o meu forte era propaganda de iogurte. Nos últimos dias com a minha mãe, isso era praticamente tudo o que ela podia comer, então eu tinha me tornado especialista em sabores, marcas e detalhes nutricionais: desnatado, integral, saborizado, sabor idêntico ao natural, kefir de leite, sem açúcar, vitaminas adicionadas, sem lactose, com pedaços de frutas.
Na conveniência da praia, era o produto que mais vendia, junto com algumas modalidades de frozen, e eu combinei com o dono uma parceria de divulgação em troca da utilização dos seus produtos e do cenário da loja pra fazer os meus conteúdos. Comecei o vídeo da manhã com um boomerang de um desnatado de morango com trilha sonora de Sidney Magal. O meu sangue ferve por você! ativava a libido da mulherada, e as vendas iam muito bem. Durante minhas performances, era bem comum juntar uma roda de clientes empolgados com o meu pequeno espetáculo, e, às vezes, eles até participavam da dança. Ajudava muito no engajamento. Eu mal sabia que meu quadril podia se movimentar, mas, fazendo as dancinhas todo santo dia, não só aprendi a rebolar como compreendi os diferentes gostos musicais do meu público, e até alguns passos que eram sucesso na rede, como desenrola, bate e joga de ladinho.
Eu tinha consciência de que todo o sucesso vinha do ridículo de uma mulher da minha idade dançar para ensinar componentes nutricionais de produtos alimentícios pra idosos. Mas funcionava. Eu batia os pontos necessários e conseguia boas transferências pra minha conta. Tudo o que eu precisava era comer e dormir em paz no meu Celta. Até o fim dos meus dias. Era pedir muito? Mas a doutora Glória tinha que aparecer justamente naquela avenida, naquela praia, naquela loja de conveniência com seus insuportáveis tênis de corrida:
— Doutora Thereza?! — Eu fingi que não era comigo e continuei firme no Ooohhhh eu te amo! Eu te amo, meu amor! Iogurte no alto, derrama um pouco na boca. — Sim! É ela! Eu tenho certeza! — ela comentou com o marido, que analisava algumas opções de energéticos. O homem me encarou com um olhar de repulsa e continuou indiferente na análise de uma opção de pêssego com morango que tinha nas mãos. — Doutora Thereza?
Eu continuei firme. Tinha esperança de que a pequena multidão ao meu redor a impedisse de continuar a investigação, mas ela não se intimidou. Afastou algumas pessoas e ficou bem na minha frente. Eu não parei. O iogurte escorria pelo meu corpo. Caprichei no rebolado. Alguns aplaudiam, outros gritavam vai, vadia!, e eu dançava enquanto parodiava a canção: fonte de proteínas de alto valor biológico, cálcio, fósforo, vitaminas do complexo B. Glória estava em choque.
Ela tinha sido minha chefe, mas isso já fazia uns dez anos. Uma mulher silenciosa e de uma gentileza agressiva. Conhecida e importante executiva no ramo da indústria alimentícia local. Da última vez que a vi, ainda não tinha rugas tão profundas nos olhos e seu bigode chinês não era perceptível. Ela jamais faria procedimentos no rosto, era do tipo que acreditava na discrição absoluta. Quando fui conversar com ela sobre a licença para acompanhar o tratamento da minha mãe, ela sorriu levemente, disse claro! e retomou a atenção na tela do computador. Fala com a Susana do RH e não esquece de entregar todos os arquivos. Nós trabalhávamos sob a pressão de um rigoroso e detalhado contrato de sigilo, e em mais de vinte anos de casa eu jamais havia deixado qualquer informação vazar. Entreguei tudo. Ao final da licença a que tinha direito já sabia que seria demitida.
Eu preferi acompanhar os últimos dias da minha mãe. Erámos só nós duas. Papai morreu jovem, de infarto, pra completo alívio de mamãe, que pode usufruir ainda de alguns anos de liberdade. Eu nunca quis me casar, focada no trabalho e na minha independência, como ela havia me ensinado. Mamãe até tinha uma pequena poupança, que fez escondida por segurança, e gostava de costurar, mas nos últimos tempos as pessoas preferiam comprar roupas prontas em um famoso site chinês. Eu também tinha minhas economias, então poderíamos ficar confortáveis durante anos, mas a doença foi longa e agressiva. Não quis que ela sofresse um único dia. Quando tudo acabou, só me restou o Celta. Mamãe adorava esse carro. Nós passeamos e viajamos muito nele pelo interior do país. Foram dias felizes.
Quando o grupo de pessoas se dispersou e eu pude guardar meu equipamento — luz, um pequeno microfone de lapela e tripé do celular —, ela se aproximou de mim e, com a sua costumeira gentileza, me intimou:
— Você precisa parar com esses vídeos.
O marido a observava de longe, no caixa, com uma sacola de energéticos variados e dois frozen, um de morango e outro de kiwi.
— Você devia levar um iogurte natural — respondi. — Esses frozen são só química, como você bem sabe.
Ela olhou para o marido com ar de reprovação. Ele passava o código de barras dos produtos no autoatendimento; acrescentou ainda duas barras de chocolate com amendoim.
— Você sabe que o nosso trabalho exige sigilo absoluto. Por que você está fazendo esses vídeos? — ela questionou.
— Nosso trabalho? Vocês me demitiram. Há anos!
— Você não estava mais batendo as metas da empresa… E faltava muito às reuniões presenciais.
— A minha mãe ficou doente. Vocês sabiam disso. Em vinte anos de casa eu nunca falhei com a empresa. — Me virei, peguei a sacola com meus equipamentos e continuei: — E os vídeos são só iogurtes. Só venda de iogurtes! Afinal, todos precisamos vender, não é?
Pensei em levar alguma comida pro Fumaça enquanto aquela mulher desagradável ia embora. Peguei dois pacotes de salgadinhos de milho, dois refrigerantes e dois copos com macarrão instantâneo. Decidi almoçar. Depois voltaria para bater as minhas metas do dia.
— Agora você come essas coisas? Nem parece que conhece de perto a indústria.
— O que é que você tem a ver com a minha vida? Eu como o que eu quiser! Trabalho com o que quiser! Agora sou dançarina e como comida de pacote! Não tenho mais relação alguma com vocês! Vocês me demitiram! Quando a minha mãe estava com câncer! Câncer, porra! — Todos da conveniência me olharam depois do xingamento, e Glória, que detestava escândalos, me puxou para fora da loja. Ficamos na calçada, encerrando a discussão no sol quente.
— Você sabe que não pode fazer esses vídeos. Está no seu contrato! Discrição! É a reputação da empresa que está em jogo. Você foi uma de nossas analistas mais influentes durante anos! Vai manchar a imagem da empresa.
— Problema de vocês! — De longe eu já avistava o meu Celta e só pensava em entrar no carro e dividir os salgadinhos com Fumaça.
— Nós vamos te processar!
— Pode processar!
Eu saí andando e ela veio atrás de mim. Chegamos as duas em frente ao meu carro. Ela não queria largar do meu pé. O marido estava logo atrás dela, a uns cinco passos largos de distância, esperando a confusão terminar. Ele mordia um pedaço da barra de chocolate e olhava firme para o mar. O pescoço rígido.
— Quanto você precisa pra parar de fazer os vídeos?
— Eu não quero nada de vocês! — Eu abri a porta do carro e entrei. Ela fez que ia entrar junto, mas hesitou e tapou o nariz.
— Você mora aí agora?
— Olha só, o que é que você quer de mim? Diz logo e vai embora.
— Se o seu problema é dinheiro, eu posso te ajudar. Você só não pode mais ficar fazendo esses vídeos.
— Ah! Santa doutora Glória! Vai me ajudar! Que amor! Mas quando a mãe da funcionária mais produtiva da empresa estava com câncer, quem pensou em ajudar? Ninguém! Demissão! Na lata!
— Olha só, Thereza, foi um erro nosso, mas agora estamos dispostos a corrigir. Vamos te pagar uma indenização por tudo o que você passou…
— Eu não quero nada de vocês! Nada! — Eu gritei com tanta força que Fumaça, que estava ao meu lado no banco, ficou assustado. Glória continuava na beira da calçada. A testa suada, as sobrancelhas arqueadas. Ela realmente estava preocupada com a repercussão dos vídeos. A doutora Thereza compartilhando segredos industriais com dancinhas na internet. O marido parecia impaciente, mas continuava aguardando sem reclamar. Apenas olhava para o mar.
— Já sei! Tem algo que você pode fazer por mim. — Vi os olhos da minha ex-chefe ficarem cheios de esperança. Ela se aproximou do carro, colocou o rosto na janela do carro e conteve o impulso de tapar o nariz.
— Você pode dar um beijo no Fumaça!
— Você tá de sacanagem? — ela perguntou, surpresa, e revirou os olhos.
— É brincadeira! Mas, falando sério, se você conseguir um emprego pro Fumaça eu paro com os vídeos.
— Não… — Fumaça murmurou logo atrás de mim.
— Eu dou um beijo nele! — Glória sussurrou e olhou para o marido, que seguia aguardando sem virar o rosto em nossa direção e comendo o chocolate.
— Hahaha! Eu sabia! — Abri a porta do Celta. Ela pulou por cima do meu colo e ficou ao lado de Fumaça. O marido indiferente.
— Se você queria a sua vingança… — Ela me encarou com o seu sorriso gentil de sempre. — Vai ter! Mas depois, nada de vídeos. Combinado?
— Combinadíssimo! — respondi, empolgada.
Fumaça abriu a boca, e Glória quase vomitou no banco do carro. Além do cheiro, ele tinha estranhos pontos esverdeados nos poucos dentes que lhe restavam. Ele não hesitou e lhe deu um longo e molhado beijo. Quando ela saiu do Celta, vomitou.
— Espero que você cumpra sua parte no nosso acordo. Eu vou ficar de olho — ela disse, e saiu apressada, limpando a boca com a barra da blusa. Pegou a sacola do marido com violência e partiu, não sem antes tomar uma golada generosa de energético e cuspir tudo logo em seguida.
Fumaça me olhou espantado. Ele não era de falar muito, mas eu sabia que estava preocupado. Como eu iria conseguir dinheiro agora? O cheiro da purulência de seus pés estava cada vez mais forte.
— Não se preocupa. Ela nunca vai me achar. A internet é um mundo, e eu conheço os algoritmos. É tudo uma questão de ser recomendada para a pessoa certa.
Depois do incidente, decidi mudar o meu Celta de lugar e Fumaça, meu fiel fantasma, quis vir junto comigo. Achamos um lugar perfeito logo no fim da praia. Distante, solitário e perto das estrelas. Como sempre, havia muitas lojas de conveniência ao redor.