INDICAÇÕES
Febem – Champions | A Colors Show
Minha primeira indicação de hoje julgo ser fundamental para o entendimento dos movimentos de vanguarda do rap e é apenas a ponta do iceberg da ebulição cultural que vive no underground da música e das periferias do brasil. A cena do Grime é uma das coisas mais interessantes do passado recente e vem cavando com força seu espaço no mainstream nacional.
O rapper paulista Febem, ainda que não se defina por um único gênero musical, é um dos rostos mais reconhecidos e respeitados desse movimento.
“A Colors Show”
“Champions” é seu lançamento mais recente, faixa inédita produzida por seu parceiro de longa data CESRV e gravada em performance ao vivo a convite da plataforma alemã Colors. A não ser que você tenha passado os últimos anos debaixo de uma pedra, os visuais vibrantes do canal não devem ser novidade. De qualquer maneira, vale dizer que Colors é uma das maiores plataformas culturais em atividade hoje: entre matérias, editoriais e entrevistas, os destaques ficam para as rendições ao vivo de artistas do mundo todo. Com uma curadoria incrível, é uma excelente porta para conhecer novos trabalhos.
Mesmo com uma proposta de pluralidade, demorou um bom tempo, desde os primórdios da plataforma, para que brasileiros conquistassem seu espaço em meio aos selecionados. Até meados de 2019, os protagonistas dos vídeos ainda ficavam concentrados, majoritariamente, por artistas americanos e europeus com carreiras já estabelecidas. Os EUA e a Europa ainda são gigantes exportadores musicais no mundo e o panorama mainstream se constrói em torno disso.
Com quase 6 milhões de inscritos e mais de 2 bilhões de visualizações no canal alemão, essa performance de FEBEM projeta para o mundo a voz de um recorte social marginal do Brasil e é um marco muito simbólico para o movimento Grime como um todo.
“Esse é meu estilo”
Sempre empurrando os limites de estilo e ainda questionando as fronteiras e definições categóricas acerca do seu trabalho, Febem apresenta um conteúdo lírico e estético que é essencialmente resultado da hibridização de diversas influências musicais e do intercâmbio cultural entre Brasil x Inglaterra..
Para compreender melhor essa mescla é preciso primeiro falar de Grime:
O gênero, nascido e cultivado em Londres, é derivado da música eletrônica, e mescla elementos dos instrumentais de UK Garage com jungle, dancehall e a lírica do hip hop. Abaixo, separei duas referências sonoras de ambos os estilos para ilustrar melhor cada sonoridade.
UK Garage: https://www.youtube.com/watch?v=x8kdG2jAPtQ
Grime: https://www.youtube.com/watch?v=MQOG5BkY2Bc
A sacada é: aqui no Brasil, o Grime tomou vida própria e incorporou o grosso da cultura nacional. Musicalmente, o ritmo e o bpm do do estilo gringo é muito próximo do funk brasileiro, por exemplo, o que tornou a incorporação algo muito natural. Essa proximidade dá toda a cara da versão brasileira do gênero, e a abrasileirada do Grime nos trouxe uma dicotomia que não pode ser ignorada: enquanto boa parte da cena do rap olhava para os Estados Unidos, Febem e outros artistas foram buscar referências muito mais próximas da realidade das quebradas daqui, correndo na contramão direta dos americanismos do trap, que vêm ditando a estética do mainstream na última década.
O amor pelo futebol, por exemplo, atua como um eixo de simetria entre o circuito periférico dos dois mundos (Brasil x Europa), e é um fator importantíssimo para o entendimento do movimento como um todo.
“Brasil Grime Show”
Catalisado por coletivos como o Brasil Grime Show e artistas como SD9, Fleezus, N.I.N.A e Leall, o Grime ganhou tração e números nos últimos anos, sinalizando um flerte com o mainstream e se tornando um estilo mais acessível e difuso também entre outras massas sociais. Isso também significa muito mais dinheiro injetado, interesse de marcas e atenção da mídia.
Brime! (2020)
Brime! é um álbum de 2020 de Febem, Fleezus e CESRV. Resultado de uma viagem à Inglaterra e de um trabalho de pesquisa sonora dos integrantes, é uma excelente porta de entrada para entender melhor o que aconteceu com gênero no Brasil.
Em Raddim, faixa que abre o projeto, o produtor CESRV apostou no uso de percussões brasileiras e graves distorcidos, em consonância com timbres mais clássicos de Grime – como o sample que toca no fundo e estabelece a base da canção – para criar o que ele mesmo apelidou de Grime de Paredão.
Em Yin Yang, os versos de Fleezus são mais melódicos e cantados ao invés de rimados; sobrepostos a uma batida de funk e adotando uma estética de baile. A caixa bate forte usando de um timbre que não é padrão, mas imprime a mesma sensação. Quando FEBEM entra (00:52 – 01;17), o tempo desloca e o beat desliza em direção a uma célula de grime, e o flow das rimas acompanha a transição.
A canção tem uma sacada simbólica no final, que é a inversão dos papéis: Fleezus canta em cima do Grime e Febem rima no funk, quase que poeticamente atestando a ingestão da cultura gringa, digerida, remodelada e regurgitada em algo novo e local.
“Vai Corinthians”
Voltando um pouco a “Champions”, é Impossível falar do Febem e não destacar a sua destreza lírica, extremamente ácida e sua facilidade para desdobrar os flows de rima.
“Moleque problema, filho bastardo da cena
Que te dá a melhor cadeira e deixa pronta a guilhotina
Onde ‘cê vira prêmio em dois ponto’ de vista
Com a coroa na cabeça ou com a cabeça na bandeja.”
O título da faixa “Champions”, entoado em coro e que enaltece a Liga dos Campeões da UEFA, é costurado por comentários sociais no refrão e reforçado no final com cantos de torcida: “Olê, olê, olê, olê“. Destaque para o arranjo comedido da faixa, que possui poucos elementos, muito bem orquestrados entre si, ainda mantendo uma característica estética muito original.
A cereja do bolo vem no final:
Existe algo muito irônico no fato de que um músico que veio das quebradas de São Paulo; que produz um catálogo artístico em um estilo que não é padrão comercial; que se apresenta no maior e mais importante canal de música do mundo; e finaliza sua performance com:
“Vai corinthians”.
Ouça:
Brime! (álbum completo – 2020)
Febem – Jovem OG (álbum completo – 2021)
ESTREIA
O gospel é o segundo gênero musical mais consumido no Brasil e um dos segmentos da indústria fonográfica que mais movimenta capital. Para quem circula por bolhas um pouco distantes desse meio, o estilo pode muitas vezes parecer até mesmo um mundo à parte.
Sinto que o quarteto brasiliense Amen Jr. vem também para provocar a cadeia produtiva já bem estabelecida da música gospel e das noções estereotipadas dos limites entre a produção cultural secular e religiosa. O grupo está muito longe de ser definido apenas como uma banda cristã, ou como uma banda de rock. O maior trunfo da Amen Jr. é, justamente, conseguir dialogar com todo e qualquer tipo de público.
“Mysterio” é o último lançamento do grupo. A faixa é impecavelmente calculada, cautelosamente produzida e recheada de referências aos anos 1980. O trabalho vem acompanhado de um videoclipe dirigido por Cadu Millet e Xerxes Frozi, que materializa muito bem a paisagem sonora da banda. Existe um carinho estético na apresentação do trabalho que é surreal, e que prepara o terreno para o lançamento do seu antecipado primeiro álbum, intitulado “Buraco no Tempo”
Desde 2018, a banda amadureceu um estilo que recorta algumas referências muito específicas dos anos 1980 e as remodela para criar uma identidade única. De Michael Jackson a Phil Collins, passando por Yes e Tears for Fears, a produção musical absurda de Carlos Bezerra transborda pesquisa de timbres e alta proficiência técnica.
“Mysterio” presta homenagens a vários clássicos (a introdução da faixa, por exemplo, é um aceno a “Beat It” do Michael Jackson e “Owner of a lonely heart” do Yes), e utiliza recursos como sintetizadores, reverbs e timbres de guitarra da época para criar uma sensação de viagem no tempo que vai além da simples provocação nostálgica. As escolhas minuciosas de arranjo e dos timbres brincam com as noções de passado, presente e futuro.
Amen Jr. atravessa os mais jovens porque promove identificação e os mais velhos exatamente pelo mesmo motivo. Para além do domínio do universo oitentista, a ideação criativa da banda gera representatividade independente da crença religiosa.
Ouça: Voltar no Tempo, Ethos, Futuro.
RADAR
Melly – Azul
Tive a oportunidade de assistir a um show da Melly no Trapiche Barnabé em Salvador, e posso afirmar que o que aconteceu durante a apresentação dela é raro. Todos os muitos ouvidos presentes ficaram atentos, os olhares surpresos e houve um um clima espesso de arrepio coletivo. Dona de um textura vocal muito marcante, a artista baiana parte do R&B para criar composições pop, com classe nas escolhas melódicas e que passeiam por várias vertentes da música preta.
Do soul ao axé; do jazz ao samba. Azul é o EP de estreia da cantora – e é uma excelente porta de entrada para entender sua pluralidade artística.
Fala que eu te escuto: Estou sempre em busca de sonoridades novas, e todo mês reviso e ouço com muito carinho todo o material enviado. Aguardo sua sugestão e, se possível, uma justificativa breve do motivo da escolha — [email protected]
Esta coluna faz parte do projeto Escuta, um ambiente de entrevistas e debates sobre música e cultura de realização do Instituto de Apoio à Orquestra Sinfônica do Paraná. Siga as nossas redes abaixo para mais informações!
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