A palavra que designa atualmente o país é de origem ocidental. A versão mais antiga que se conhece de “Brasil” aparece num mapa de 1367. Eram os tempos em que os vikings tinham bases em várias áreas celtas (Irlanda, por exemplo) e dali se aventuravam para o Ocidente pelo mar incógnito. Por isso, não é de se estranhar que o vocábulo “O’Brazil”, que em celta significa “Ilha Afortunada”, aparecesse no mapa para nomear uma das várias ilhas que existiriam a oeste do continente europeu, em pleno Atlântico. Eram tempos nos quais a vida dos deuses e dos homens se misturavam, de modo que os mapas também registravam ilhas como Atlântida.
A separação entre deuses e homens nos mundos material e espiritual, que conhecemos hoje como apanágio da civilização ocidental, começou a ser construída em Portugal. Para possibilitar a navegação oceânica regular foi preciso separar a astronomia da astrologia, a química da alquimia, a física da metafísica – o relato de viagens da narrativa fantástica, a religião da ciência.
Como o objetivo era navegar, o conhecimento livresco era revisto a partir do resultado de cada viagem. Dessa forma, o “Tratado da Esfera”, obra do século 14, de João de Sacrobosco, foi sendo atualizado a cada navegação. Começou como guia das projeções astrológicas da esfera terrestre sobre a terra plana e acabou como a representação de globo terrestre. Não à toa, Adam Smith considerava a criação da navegação oceânica “a maior descoberta da humanidade”.
A projeção da palavra celta sobre um território incerto seguiu o mesmo processo – tendo como contraponto a própria Bíblia. Os europeus que vieram a bater no Brasil viviam um momento delicado. Haviam saído de um continente onde a fome e as pestes eram constantes, a morte, um fantasma permanente — e os sonhos da mitologia bíblica do paraíso, a maior esperança para um futuro numa outra vida.
Para gente tão amarga, a chegada a um lugar onde a luz era exuberante o verde das matas permanente, a comida farta e o clima ameno lembrava uma descrição: a do paraíso no livro bíblico do Gênesis. Ali se falava que Deus, ao criar Adão, o tinha colocado num horto “da banda do Oriente”; que ali, por toda parte, havia plantas agradáveis à vista e boas para comida; que neste horto havia um lago, do qual saíam quatro grandes rios; que ali havia ouro e pedras preciosas em abundância.
A visão da natureza tropical, somada à de índios que pareciam viver no mais perfeito estado de inocência, coincidia perfeitamente com as muitas discussões escolásticas medievais, nas quais padres e ocultistas debatiam os trechos da Bíblia, procurando situar o lugar do paraíso na Terra. O próprio Cristóvão Colombo, grande leitor desses textos, foi um dos que acreditou piamente ter chegado ao Paraíso:
“Creio que, se passando pela linha equinocial, e ali chegando, lá está o Paraíso Terrestre”.
Como ele, muitos dos primeiros aventureiros que andaram pela América correram atrás desse lugar mítico. Dois eram os maiores objetos de buscas: a árvore da vida, que daria todo o conhecimento e vida eterna a quem colhesse seus frutos, e uma cidade inteiramente feita de palácios cravejados com pedras preciosas. Na primeira vertente, mais espiritual, andou o espanhol Juan Ponce de Léon; na segunda, mais terrena, Francisco de Orellana.
Descrita numa série de textos medievais, a árvore deveria estar plantada bem no meio do Jardim das Delícias. Os anjos, tendo à frente os querubins, a defenderiam do acesso dos mortais. Para se chegar até ela, era preciso guiar-se pelo clima: nem frio nem quente, ameno o ano inteiro. E, se os homens não conseguissem vê-la, não importava. Ao menos poderiam tomar a água da fonte que nascia a seu pé e que garantiria a eterna juventude. Ponce de Léon procurou essa árvore onde hoje está a Flórida, mas morreu antes de encontrá-la.
A segunda versão do Paraíso terrestre falava de um lugar mágico logo atrás de uma região de terras fertilíssimas e árvores sempre cheias de frutos, rios de ouro, palácios de ouro e prata cimentados por pedras preciosas: jaspe, safiras, esmeraldas, jacintos, topázios… Nos muros desses palácios, resplandecentes como o sol, havia doze portas, cada uma de uma gema. Torres de cristal, com laços de ouro puríssimo, completariam a visão. E, para se chegar até lá, caminhava-se por ruas também revestidas de ouro.
Tal cidade deveria estar num lago chamado Eldorado, no centro do continente do Paraíso. Francisco de Orellana não conseguiu encontrar o lago quando desceu o Amazonas, mas o relato de sua viagem deu a muitos a certeza de que estaria no interior do Brasil — e dele nasceriam o Prata e o Amazonas. Até o século 17 foram feitos centenas de mapas nos quais este lago e a cidade de Eldorado aparecem na região hoje chamada Pantanal, que fica exatamente no centro do continente e em torno da qual partem rios da bacia do Prata e Amazonas.
A passagem do registro mítico para o realista foi complexa — e durante esse tempo a cultura portuguesa foi perdendo sua característica única de pioneira do processo de separação. O primeiro livro intitulado “História do Brasil”, publicado em 1627 pelo Frei Vicente do Salvador, começa descrevendo um confronto entre uma designação metafísica, “Terra de Santa Cruz”, e outra, “Brasil” — esta já não mais empregada no sentido mítico celta, mas em sua materialidade comercial corrente na terra, da seguinte forma:
“O capitão Pedro Álvares Cabral pôs nome à descoberta de Terra de Santa Cruz e por esse nome foi conhecida por muitos. Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder o muito que tinha sobre os desta terra, trabalhou para que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau de mesmo nome de cor abrasada, e vermelha, com o qual se tingem panos, do qual há muitos nesta terra, com o que importava mais um pau que tingem panos que o daquele pau que deu tinta e virtude a todos os sacramentos.”
O processo de pensamento já era o inverso daquele que permitiu as navegações: em vez de afirmar a física e separá-la da metafísica, afirmava a verdade do livro divino contra a realidade humana da qual fazia a história — e contava como pecado ou derivação para além do mundo religioso a vida e a obra real dos que por aquela terra passavam.
Paradoxalmente, o modo original português de privilegiar a observação real, mesmo quando isso significava contrariar crenças metafísicas, foi inaugurada como representação de “Brasil” pouco mais de uma década depois do livro de Frei Vicente do Salvador — por um holandês, o pintor Albert Eckhout, que desembarcou no Brasil em setembro de 1637, na comitiva do príncipe Maurício de Nassau.
Eckhout era apenas um dos vários pintores, inicialmente de menor importância. Começou como auxiliar dos naturalistas Piso e Marcgraf, desenhando em pequenos cadernos os animais e espécimes vegetais que os dois descreviam. Mas aproveitou os intervalos para ir registrando também as pessoas, dos índios aos nobres. Sua habilidade acabou sendo reconhecida e ele ganhou do príncipe encomendas de maior escala.
Embora não haja total certeza a respeito, existe boa possibilidade de que ele tenha recebido de Nassau a incumbência de pintar telas monumentais para a decoração de um salão no palácio que o príncipe construía em Recife, por volta de 1643.
As pinturas foram terminadas na Europa e organizadas como uma tetrarquia: quatro casais de pessoas em quatro estágios de civilização, indo dos povos mais brutos aos mestiços mais civilizados. Assim, fez mais que os primeiros grandes retratos de pessoas vivendo no Brasil: criou uma chave de interpretação para ilustrar uma civilização — que nasceria do casamento entre pessoas de origem étnica diversa.
Um dos casais é formado pelo par intitulado “Homem Brasileiro” e “Mulher Brasileira”. Este é um dos mais antigos registros que se conhece do gentílico “brasileiro”, cuidadosamente evitado pelos portugueses para impedir a disseminação de uma consciência própria na colônia. Ele mostra um casal de índios de aldeamento, talvez miscigenado. Está um ponto abaixo do casal mais ocidentalizado, composto pelas telas “Mulato” e “Mameluca” — filhos do cruzamento de raças que seria próprio do Brasil.
Estavam formados assim os dois grandes paradigmas analíticos a partir dos quais até hoje se constroem as interpretações da vida no território. De um lado, um intérprete que, mesmo na terra, se identifica com o europeu exilado em território estranho e fala como alguém que tenta impor essa civilização a bárbaros. Do outro, alguém que interpreta os fenômenos locais a partir de sua especificidade, empregando a diferença em relação ao caso geral europeu para entender aquilo que há de próprio nela.
A primeira forma marcará o pensamento de uma elite que se define por contraste da massa que seria incivilizada, cujo protótipo arquetípico é a imagem do ocidental como “caranguejo que arranha o litoral”, criada pelo Frei Vicente do Salvador. No período colonial, o discurso característico era aquele da autoridade metropolitana em sua luta para se impor ao barbarismo dos coloniais. No Império, aquele do homem próximo à coroa civilizadora e distante do súdito não europeu, interesseiro e mercantil. Na República, aquele do detentor de conhecimento técnico que se distingue do cidadão ignorante.
A segunda forma de entendimento marcará entrada nos textos de intelectuais apenas muito mais tarde, pela altura da independência. Seu arquétipo é a frase de José Bonifácio de Andrada e Silva, que define a missão nacional brasileira da seguinte forma, em 1823:
“É tempo também que vamos acabando gradualmente com todos os vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar uma nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes. É da maior importância ir acabando com tanta heterogeneidade física e civil. Cuidemos, desde já, em combinar sabiamente tantos elementos discordes, em amalgamar tantos metais diversos, para que saia um todo homogêneo e compacto.”
Esta atitude interpretativa de “Brasil”, em vez de separar o autor do narrado em planos que não se tocam, exige colocar num mesmo plano o sujeito que analisa e o objeto que está sendo analisado — que já teria algo próprio de ambos numa unidade nova que seria a nação. Essa nação não seria mais parte do mundo ocidental metafísico, mas variante real na qual se constrói um todo capaz de lhe dar substância. Do ponto de vista intelectual, traz um grande desafio. Ao contrário do caranguejo, que é simples, fechado em si, o vira-lata é complexo, pois a unidade no termo vem do múltiplo autor/objeto.
Jorge Caldeira é o editor convidado da edição Delírio Tropical