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A redescoberta do corpo, da natureza e do futuro em Banzeiro Òkòtó

Publicada em outubro de 2021, a obra Banzeiro òkòtó, da jornalista gaúcha Eliane Brum, nos conduz a uma profunda reformulação das concepções de corpo, natureza e futuro. Já na escolha do título, Eliane nos convida, ou melhor, nos impõe através da linguagem a nos afastarmos do óbvio.

Segundo os povos do Xingu, banzeiro é o trecho mais perigoso e desafiador de um rio. Banzeiro seria um ponto de onde nem sempre é possível voltar — o ponto de não retorno. Encarar o banzeiro é se lançar na incerteza. Já òkòtó é uma palavra de origem ioruba, que representa um caracol que se move em espiral — o sem fim.

A narrativa apresentada pela autora é repleta de depoimentos, relatos próprios e vivências extremamente palpáveis, físicas. Utilizando as palavras da própria Eliane, “a Amazônia literaliza tudo”. A partir das conexões sensoriais com a Amazônia, a jornalista nos permite assistir à reconstrução de sua própria existência. Curiosamente, essa reconstrução não se deu a partir do campo teórico-acadêmico; é através de seu próprio corpo que nasce o entendimento de que este e a natureza ao seu redor são indissociáveis.

Essa indissociação entre a humanidade e a natureza está na base da construção de saberes ancestrais não ocidentais, como os dos povos indígenas e africanos. Esses saberes datam de muito antes da invasão deste território hoje chamado Brasil. São culturas que nascem com e da terra.

Em diálogo com a perspectiva dos povos amazônicos que costuram toda a obra, trago o exemplo da filosofia dos povos Bantu, que compõem o sangue que corre nas veias de grande parte da população deste país.

Henrique Cunha Júnior, pesquisador e professor titular da Universidade Federal do Ceará, descreve em seu artigo NTU a maneira como os povos Bantu compreendem as correlações entre humanidade, comunidade e natureza. Ele diz:

NTU é o princípio da existência de tudo. Na raiz filosófica africana denominada Bantu, o termo NTU designa a parte essencial de tudo que existe e tudo que nos é dado a conhecer a existência.

A população, a comunidade, é expressa pela palavra Bantu. A comunidade é histórica, é uma reunião de palavras, como suas existências. No Ubuntu, temos a existência definida pela existência de outras existências. Eu, nós existimos porque você e os outros existem; há um sentido colaborativo da existência humana coletiva. A organização das línguas Bantu reflete a organização de uma filosofia do ser humano, da coletividade humana e da relação desses seres com a natureza e o universo.

Para compreender a complexidade da floresta é preciso praticar NTU. É preciso se sentar para aprender com os mais velhos, e não me refiro apenas aos anciãos: me refiro a comunidades inteiras que, geração após geração, mantêm viva a sabedoria milenar de escapar do banzeiro e construir o futuro.

O corpo

Temos empregado o termo “desconstrução” para definir o movimento de ruptura com paradigmas político-sociais engessados e ultrapassados para a busca de uma evolução. Como uma cobra que troca de pele ou uma lagarta transmutando em borboleta, temos também o poder da mudança através da destruição do antigo corpo.

A partir de sua experiência com os povos indígenas, quilombolas e comunidades ribeirinhas da região Amazônica, sobretudo de Altamira, no estado do Pará, Eliane se desconstrói, mas não apenas dos valores e convicções adquiridos durante toda uma vida cercada dos privilégios que o contexto urbano proporciona em uma estrutura cartesiana e eurocêntrica. Ela se permite deixar desmoronar o corpo de mulher branca, sulista e de classe média para se tornar floresta. Eliane narra esse esfarelar do corpo citando os sintomas físicos que experimentou:

Desde que me mudei para a Amazônia, em agosto de 2017, o banzeiro se mudou do rio para dentro de mim. Não tenho fígado, rins, estômago, como as outras pessoas. Tenho banzeiro. Meu coração, dominado pelo redemoinho, bate em círculos concêntricos, às vezes tão rápido que não me deixa dormir à noite. E desafina, com frequência sai do tom, se torna uma sinfonia dissonante, o médico diz que é arritmia, mas o médico não sabe de corpos que se misturam.

A Amazônia não é um lugar para onde vamos carregando nosso corpo, esse somatório de bactérias, células e subjetividades que somos. Não é assim. A Amazônia salta para dentro da gente como num bote de sucuri, estrangula a espinha dorsal do nosso pensamento e nos mistura à medula do planeta.

O leitor, ao se entremear às páginas do livro, também é tomado por essa sintomática urgência de novo corpo. Procura tocar os pés no chão, tatear a pele, sentir o ar adentrando as narinas. É como se já não coubéssemos em nossa estatura. Precisamos buscar a terra para fincar nossas raízes para que então possamos, em coletivo, crescer e gerar frutos. Esse é o tipo de leitura que nos faz perceber que a individualidade urbana é estéril.

Amazônia mulher

Não é possível citar tantas vezes a palavra “virgem” e seguir adiante como se estivesse tratando do preço do pão. “Virgem” não é uma palavra qualquer, porque carne. Na Amazônia como na vida das mulheres está intimamente ligada à destruição. Não apenas à destruição de uma barreira como o hímen, mas pela destruição que se dá pelo controle, pelo domínio dos corpos. A escolha da palavra “virgem” para se referir à floresta e a outros ecossistemas ainda não totalmente dominados por homens, como representação do fascínio por um corpo “natural” e “selvagem” e “intocado”, ilumina as relações de poder que levam a Amazônia para cada vez mais perto do ponto de não retorno.

O trecho acima, que abre o capítulo “Amazônia mulher”, ilustra o uso magistral que Eliane faz da linguagem e das analogias para trazer à narrativa a imagem de uma Amazônia feminina, um corpo-floresta com traços de pureza “intocada”.

Corpos femininos em uma sociedade patriarcal capitalista são tidos como objetos de servidão, além de oportunidades de exploração para manutenção das relações de opressão, seja da estrutura machista sobre as mulheres, seja da opressão humano-empresarial-capitalista sobre a natureza.

Ao invadir o território amazônico, os colonizadores impuseram sobre a mata e todas as vidas que a integram sua violência disfarçada de projeto civilizatório. A violação dos corpos de mulheres indígenas e a destruição paulatina da floresta caminham juntas no decorrer dos séculos, nos lembrando mais uma vez da indissociação entre humanidade e natureza.

Pensar a Amazônia como o corpo de mulher está para além do olhar limitado e predatório do modelo patriarcal. Para entender a Amazônia, seus mistérios e, sobretudo, seu poder, é necessário olhá-la com olhos de fêmea, é preciso aprender a decifrar o segredo fértil das águas dos rios. A Amazônia é ventre parideiro de mundos possíveis.

Do banzeiro para o futuro – A potência na desestrutura

Banzeiro òkòtó é uma obra necessária para os nossos tempos, trazendo denúncias fundamentais para o avanço do debate sobre a questão ambiental no Brasil. O trabalho de Elaine é também uma ferramenta de resistência, um amplificador das vozes dos povos amazônicos que há tanto têm gritado por socorro. Ele traduz para nosso idioma a linguagem da mata, que se reivindica enquanto corpo vivo e sagrado.

Vivemos um momento crítico, quando inúmeros retrocessos ambientais protagonizados pelo atual governo federal ameaçam as perspectivas de vida de nossos descendentes. Nosso Legislativo apresenta “pacotes de destruição” em prol de um “futuro” que visa apenas ao lucro com a expansão do agronegócio, custando a vida de milhares de indígenas que lutam pelo direito a suas terras, custando a vida de milhares de animais, ou, como prefere a autora, de não humanes que queimam na mata. Não haverá retorno do banzeiro sem que façamos demolir as estruturas, a começar por nós mesmos. Que deixemos cair por terra o corpo que naturaliza o fim.

Os povos do Xingu sempre souberam escutar o rio, respeitando o momento em que ele se deixa atravessar ou que manda recuar. Que aprendamos com eles a potência que há em retornar ao passado quantas vezes for necessário para que se garanta o amanhã.