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Conversa Polivox: Nabiyah Be

Filha de pai jamaicano e mãe brasileira, Nabiyah Be é atriz, cantora e dançarina. Multiartista por essência, a jovem baiana, entusiasta do bairro do Rio Vermelho, em Salvador, nos conta sobre o impacto que a relação precoce com a fama teve em sua vida e carreira, a experiência em Nova Iorque e a preparação para o lançamento do seu primeiro álbum musical.

Você tem raízes no Brasil e na Jamaica. O seu pai, Jimmy Cliff, é uma grande figura da música, muito conhecido, mas ele certamente não te fez sozinho. A sua mãe, chamada Sônia, deve ser uma mulher intensamente interessante.

Exato, ela se chama Sônia Gomes. É psicóloga, professora e especialista em trauma.

Como foi a sua infância nesse contexto?

Eu nasci na Bahia e sinto que tive uma infância peculiar, no sentido da exposição à cultura e religião. Meus pais se conheceram numa cerimônia de ayahuasca, fui batizada muçulmana e cresci em Salvador. Devido ao trabalho do meu pai, viajei muito na infância, o que fez minha mãe me criar, de certa forma, sozinha, longe da família. A família por parte dela, contando [com os] nossos amigos como rede de apoio, estavam espalhados, na verdade, pelo país. Uma parte deles em Salvador, outra em São Paulo, e ainda uma parte no Recife. A família por parte de pai ficava espalhada pelo mundo, muitos na Jamaica, irmãos que cresceram no Canadá, alguns em Londres. Então, as viagens, desde muito nova, eram para visitar a família. Comecei a trabalhar com meu pai desde cedo, e dos 7 aos 11 anos eu já cantava e acompanhava ele nos shows. Nos meses em que estava com meu pai, percebia que essa itinerância não era algo comum na vida das outras crianças. Apesar de estar muito exposta a uma ideologia e maneira de viver muito afrocêntrica, por influência do meu pai e da parte da família jamaicana, na qual muitos são rastafári, a escola que meus pais escolheram, para que eu pudesse ter essa vida internacional, foi uma escola americana e bilíngue. Então, [uma escola] extremamente elitista, branca e, de certa forma, católica também. E a gente estava ali, eu com uma família bebedora de ayahuasca, muçulmana — depois, minha mãe se tornou devota de um guru na Índia —, toda essa confluência entre as vias de matriz africana e o mundo branco. Ao mesmo tempo, foi essa escola que me permitiu, posteriormente, viver em Nova Iorque por tanto tempo e transitar por diferentes culturas.

Na prática, você vive o seu exercício artístico desde muito cedo. Mas eu gostaria de saber quando você se entendeu como artista, com os seus próprios desejos e fabulações de criação? Tem um marcador, ou isso foi tão orgânico que você não consegue fazer uma divisão?

Eu separo em dois momentos. A performance em si sempre esteve muito presente. A minha primeira experiência de palco foi com dança. Aos 5 anos, participei de uma companhia de dança contemporânea. Eu saía do meio da plateia, saía correndo, entrava no palco, e começava a dançar com a companhia. Então, o palco para mim sempre foi um lugar sagrado e seguro, onde eu me reconheço como alma e em serviço. Só que, adentrando o psicológico de pessoas que são filhas de pessoas famosas, existe uma crença ali de que, para receber amor, eu preciso performar. Então, aos poucos fui reconhecendo que, apesar de ter muito amor por performar, eu tinha ali um lugar de obrigação. Foi quando senti que precisava pegar um instrumento, compor, fazer algo que não precisasse da presença de uma outra pessoa para validar o que eu estava fazendo. Eu sempre digo que o teatro, que a atuação salvou a minha vida, porque, quando criança, eu performava e dançava em turnês e, nesse processo de estar constantemente desinibida, vivi situações muito intensas na frente de muita gente. Aos 11 anos, comecei a murchar e o teatro serviu, quase como por emergência, num nível educacional, para regular o meu sistema nervoso e a minha vida emocional. Sempre digo que a atuação salvou a minha vida por me ajudar a ter esse lugar de segurança ao acessar minhas vulnerabilidades.

Faz sentido pensar no teatro como um caminho que foi dando instrumentos para você lidar com a sua urgência artística, digamos assim.

Sim, quando falo que houve dois momentos, é porque eu tinha muita noção de que, quando cantava ou dançava, era algo meio que “oh” na cabeça das pessoas. Eu tinha consciência desse meu poder quando criança. Mas eu não sabia o que fazer com ele, não sabia o que falar. Eu sabia apenas que, quando performava, acontecia uma atenção prazerosa na minha psiquê. Aí vem o segundo momento, quando [eu era] adolescente e fazia parte de uma companhia de teatro.  Lembro que estava de carro, passando pelo Rio Vermelho, em Salvador, quando me veio uma consciência de morte, ligada à ideia de que eu precisava fazer alguma coisa somente para mim, alguma coisa que não significasse a necessidade da presença do meu corpo. Senti, ali, que precisava compor, precisava criar algo que pudesse existir sem o meu corpo. Foi então que me debrucei a me envolver com composição e, bem depois, com produção.

No período em Salvador, você chegou a ter experiência com a cena do teatro?

Sim, comecei aos 15 anos e fiquei até ir embora. Fiz teatro de guerrilha, escrevendo, produzindo tudo, colocava a escola em editais, preparava nossas turnês locais. E foi muito importante para mim, porque eu era a única adolescente no meio de um pessoal da faculdade. Então, eu super me achava a intelectual, e realmente foi um grande aprendizado.

Aí você sai de Salvador com 18 anos e segue para os Estados Unidos?

Com 18 anos, fui para Nova Iorque sozinha, fazer faculdade. No primeiro ano, já comecei a trabalhar no circuito de teatro. Fiz muita Broadway, musicais, peças, atuei muito dentro do círculo de música brasileira e — pouco, é verdade — com as minhas próprias músicas. Sempre digo que Nova Iorque me fez a artista que eu sou, porque é um lugar de muita reverência e devoção para a arte e as escolhas artísticas de cada um. É uma cultura em que se diz, “ok, vamos estudar, vamos melhorar”. Em alguns níveis, pode não ser saudável, mas há essa cultura do aprimoramento que me fez crescer muito.

Você teve uma jornada que também se destaca na parte audiovisual. Entre filmes e séries, você elenca algum trabalho que foi muito engrandecedor internamente?

O Daisy Jones and the Six, sem dúvida. Tanto por ter sido a minha primeira experiência com uma personagem relativamente grande, de importância na narrativa, quanto pelo fato de ter sido um projeto de longo prazo, com muito tempo de pré-produção, de produção, enfim. Foi uma grande escola, porque pude contribuir com ideias de como adaptar a personagem do livro para as telas. Isso foi muito importante.

Você está em vias de lançar o seu primeiro álbum solo. Como você vê hoje os encontros e as parcerias que você encontrou até aqui? Como você as sente?

Eu percebo que quanto mais clareza tenho sobre o que quero transmitir para o mundo, ou o sentimento que quero acessar, mais fácil se torna reconhecer os meus parceiros. Com isso em mente, fica mais simples conhecer as pessoas e enxergar as suas qualidades. Foi assim com o Lucas [Carvalho] e o Marcelo [Delamare]. Desde o início, pensei, “o que e como eu posso aprender com vocês?”. Em termos de produção, musicalmente também. Eu iniciei a produção desse disco aprendendo a produzir. Aprendi a mexer um pouco, a fazer a engenharia de som e ir direcionando o que eu quero. Tive muita consciência e humildade nesse processo, por isso considero que fiz aprendendo, mesmo. Com muita confiança e um tanto de medo, mas sempre bancando o que eu sei e o que tenho clareza que desejo.

É muito importante o que você diz, de bancar o que se sabe. Você é híbrida, sai de um lugar, vai para outro e aprende no percurso. A Bahia, sem dúvida, te deu régua e compasso para confiar no seu axé. E quanto às referências culturais, o que está explícito no teu trabalho?

Sinto que a minha vivência internacional é muito explícita nesse trabalho. É um álbum híbrido, tanto de línguas como de gêneros. Cada vez mais têm me interessado artistas que vêm fazendo isso, propondo essas transições, misturando gêneros. Nós, enquanto sociedade, somos obcecados por termos uma identidade. Sempre nos definimos como isso ou aquilo. Eu acho que, de certa forma, existe isso nesse álbum. Todas as canções foram compostas, em grande parte, comigo no violão, usando as minhas progressões de acordes, que são muito brasileiras, algumas trazidas também do R&B. Consigo olhar para isso e pensar que é a minha raiz.

Você lançou Everybody, Poço azul e Hero, três músicas de forma separada. Queria saber sobre a sua experiência de realizar lançamentos independentes para apresentar o trabalho que está chegando.

Fiz esse disco em coprodução, em grande parte, com Marcelo Delamare e Lucas Carvalho, que coproduziu três faixas. A Everybody me deixa muito feliz, porque foi uma das primeiras experiências [que tive] de reconhecer uma produção minha e sentir que eu estou realmente conseguindo produzir. Eu cheguei com uma pré-produção muito pronta para eles, e, até na hora de gravar, eu tinha muita clareza. Da mesma forma, Poço azul foi uma consequência muito bonita do encontro desse trio, resultando em algo mágico. A Hero era uma música que estava bem encaminhada e o Marcelo a engrandeceu com o seu talento de arranjador e diretor musical.

E na parte da produção audiovisual?

No audiovisual, iniciei a ideia do roteiro, tanto de Everybody como de Poço azul, no período em que eu estava morando na casa da Leandra [Leal], e ela estava muito próxima das minhas questões internas, do que estava movendo os meus questionamentos. Então, foi superinteressante entender, através do meu corpo, da minha imaginação, como eu queria contar a história e entregar isso para as pessoas construírem em cima. Tanto a Leandra Leal, em Poço azul, como o Edvaldo Raw, em Everybody, me deram essas alegrias criativas. Você conseguir acessar algo sozinho e, ao mesmo tempo, também em colaboração é muito enriquecedor.

Os filmes têm uma escolha estética linda e envolvente. Além de você ser muito cativante. É interessante observar a artista se apresentando.

Que massa, fico feliz. Como comentei, a minha essência é a performance, então, esse é um lugar em que eu me reconheço e me sinto muito à vontade.

Prestes a fazer esse lançamento — que já está acontecendo de alguma forma, como falamos —, você mergulha no seu íntimo e o que encontra hoje, agora?

É muito interessante, porque, na minha crença, a gente recebe muita ajuda espiritual quando está criando, quando está preparando algo autoral. É um verdadeiro trabalho de cocriação com o divino fazer algo do zero. E muito da ajuda que eu sinto que recebi nesse processo, de composição e produção, foi do meu eu do futuro. Um trabalho artístico segue mudando à medida que o trabalho vai tomando forma, seja em show ou outros projetos visuais. Com isso, vou poder compreender melhor a força da mensagem desse álbum. Sinto que é algo conectado com o futuro, que ainda está por vir. Acho que tudo que tenho trazido enquanto autora carrega uma força de buscar viver com o coração aberto, custe o que custar.